Não é difícil imaginar os problemas oriundos dessa triste correlação. A própria Flavia lista um exemplo emblemático, em entrevista publicada recentemente pela Folha de São Paulo (13/10). Como lembra a pesquisadora, nenhum critério técnico ou científico foi mobilizado quando da (trágica, porém felizmente frustrada) decisão de Temer de por fim à Renca (Reserva Nacional do Cobre e Associados), na Amazônia.
Pois a ciência nacional tem hoje um diferente tipo de alerta a fazer para os atores políticos brasileiros – um alerta que, mais do que nunca, não pode ser ignorado:
Mantido o amplo processo de corte de recursos imposto pelo governo Temer, o campo de pesquisa científica no Brasil dificilmente sobreviverá.
Esta é a principal mensagem do movimento Conhecimento sem Cortes, iniciativa protagonizada pelas principais associações de pesquisa científica do país, e que retoma o movimento de denúncia dos cortes e contingenciamentos que o Ministério da Ciência e Tecnologia, bem como outras agências de pesquisa e inovação vem sofrendo do governo Temer.
Tal iniciativa tem organizado diferentes atividades, junto à sociedade civil e ao Congresso Nacional. A mais recente delas ocorreu na última terça (10/10), em audiência pública na Comissão de Ciência, Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI), da Câmara dos Deputados. Mais uma vez, os pesquisadores que ali se apresentaram dispuseram aos parlamentares dados que demonstram a inequívoca relevância da pesquisa científica para o país.
A presidenta da Academia Brasileira de Ciências, Helena Nader, enumerou os diversos feitos recentes alcançados pela ciência brasileira. Segundo ela, o ciclo de investimento continuado em universidades e instituto de pesquisas fez com que o crescimento da produção científica no país alcançasse, nos últimos dez anos, médias superiores à produção científica mundial. Apenas em 2007, tal superioridade ficou na casa 24%.
Esse mesmo ciclo permitiu que o Brasil ampliasse o número de doutores e doutoras formados, bem como de artigos científicos publicados – posicionando o país à frente de nações como Holanda, Rússia, Suíça, México e Argentina.
Disso também deriva a posição de liderança ocupada pelo Brasil em diferentes campos de pesquisa, como agricultura, produção animal, automação (bancária, eleitoral, de plantas industriais), produção de aeronaves, biocombustível, extração de petróleo em águas profundas, controle biológico de insetos, medicina nos trópicos. Vale lembrar que a recente identificação dos casos de microencefalia como derivados da ação do zika vírus foi uma conquista de pesquisadores brasileiros.
O ciclo virtuoso de investimento enfrenta, contudo, seus últimos momentos. O presidente da Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência, Ildeu de Castro Moreira, lembrou que o orçamento real do Ministério da Ciência e Tecnologia em 2017 foi de R$ 3 bilhões, valor três vezes menor ao praticado em 2013. Para 2018, esse montante será ainda menor, limitando-se os gastos com custeio e investimento a R$ 2,3 bilhões.
Ildeu lembrou ainda da situação minimamente surreal vivida pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, que tem desempenhado um papel fundamental no apoio às instituições de ensino e pesquisa e às empresas inovadoras. Apesar de as rubricas que o abastecem garantirem R$ 4,5 bilhões em 2018, o orçamento proposto pelo governo Temer prevê que apenas R$ 350 milhões serão efetivamente liberados – ou seja, o equivalente a somente 8% do valor original.
Essa realidade faz com que os prognósticos para as principais agências indutoras de pesquisa no país sejam ainda piores que a realidade vivida em 2017. A redução do orçamento da Capes será de 32%. A previsão de recursos para o CNPq assegura que, em 2018, o pagamento de bolsas será possível, no limite, por apenas seis meses.
Diante desta realidade, não é de se estranhar que casos como o de Flávia Donadelli, citada no início deste artigo, repitam-se com frequência daqui por diante. Não menciono a qualidade de sua pesquisa, mas o fato de seu doutorado e exercício da profissão de pesquisadora serem sediados no exterior. Flávia doutorou-se pela London School of Economics, na Inglaterra.
Esse é um dos alertas feitos pela carta assinada por 23 cientistas de todo o mundo, ganhadores do Prêmio Nobel, dirigida recentemente a Temer. Em entrevista a O Globo, dois desses signatários, Claude Cohen-Tannoudji e Serge Haroche – ambos também vencedores do Prêmio Nobel – vaticinam a possibilidade de o Brasil enfrentar brevemente uma diáspora científica, com a emigração dos principais pesquisadores nacionais para outros países.
Diante desse improvável horizonte, cabe repetir a provocação feita por Helena Nader aos deputados e deputadas da CCTCI. Sabemos que o corte de gastos de Temer dirige-se a “agradar o mercado”. Mas que mercado? O especulativo ou o produtivo? Aquele baseado em mão de obra desqualificada e de baixos salários, ou de profissionais qualificados e bem remunerados? Voltado para um mercado de bens primários em estado bruto ou de produtos de alta tecnologia?
O Brasil hoje paga pela mediocridade de seus atuais governantes. O espírito de subserviência que acossa esses políticos os impede de reconhecer os riscos à soberania nacional impostos ao país, ou mesmo a oportunidade de crescimento desperdiçada que avança a passos largos.
Infelizmente, esses mesmos governantes ignoraram os apontamentos feitos por outra grande pesquisadora, a italiana Mariana Manzucato – que inclusive contribuiu com o Ministério do Desenvolvimento durante o governo Dilma. Em sua principal obra, Mariana lembra que sem investimento público não há inovação tecnológica.
É característica do capital privado um comportamento impaciente, ansioso por resultados imediatos. Não é assim que opera a área de pesquisa e inovação. Sua prática depende de esforços continuados, muitas vezes necessitada de experimentos de tentativa e erro – até que o sucesso seja alcançado. Para tanto, o investimento feito deve ser paciente, mirando o médio e longo prazo – o que só é possível quando feito por um ator (o Estado) com espírito empreendedor.
O Brasil tem condições de assumir tal missão. Para tanto, necessita de um efetivo e valorizado sistema nacional público de universidades e institutos de pesquisa. Precisamos de investimento regular, sustentado. Até 2015, tais características iniciaram um processo de consolidação, mas que agora é interrompida.
Se isso não for revisto, se o orçamento da pesquisa e inovação não for recomposto, não nos tornaremos uma potência mundial competitiva – tal qual merecemos e tal qual outras nações já fizeram, como a Coreia do Sul.
Sem isso, permaneceremos presos não à voz iluminada do conhecimento, mas sim à fome voraz do mercado.
Margarida Salomão é deputada federal (PT-MG)
Artigo originalmente publicado na Mídia Ninja