Por José Graziano da Silva
A urgência e a viabilidade de erradicar a fome e a pobreza extrema em nosso tempo, um consenso que cresce em sintonia com avanços concretos na legislação e nas políticas públicas voltadas a esse fim, sinalizam a possibilidade de um novo ciclo de crescimento regulado pela lógica do interesse social.A experiência recente de vários países da América Latina e Caribe corrobora a pertinência dessa aposta, que não deve ser ofuscada pelo turbulento momento econômico que o mundo atravessa.
Embora a pobreza e a fome persistam, o que é especialmente inaceitável numa fronteira que tem como um de seus apanágios ser um dos maiores fornecedores de comida do mundo, negar os avanços sociais dos últimos anos seria equiparar o presente a um passado cuja lógica a democratização regional optou por mudar.
Trata-se de nova referência que soma às responsabilidades já consagradas da democracia uma tarefa regulatória que pode marcar a face do século XXI: reconciliar a macroeconomia do crescimento com o imperativo da justiça social.
O reducionismo economicista costuma atribuir ao ciclo de alta das commodities a responsabilidade maior por essa virada. Ingressos líquidos de receitas e a maior afluência de capitais contribuíram sem dúvida para afrouxar o torniquete da vulnerabilidade externa. Mas a disponibilidade de recursos, embora seja um requisito, não substitui as escolhas do desenvolvimento.
A singularidade regional consiste justamente em ter elaborado respostas que fizeram da inclusão social um novo mediador de crescimento. O escritório regional da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) tem participado desse redirecionamento histórico, num aprendizado que também pode ser útil à escala global.
Desde 2006 impulsionamos um amplo leque de iniciativas que inscreveram a segurança alimentar no edifício institucional desse novo momento latino-americano e caribenho. Destacam-se aí a defesa do fortalecimento da Agricultura Familiar e a criação de canais para o maior engajamento da sociedade civil na luta contra a fome. O fermento da cidadania amplifica a capilaridade e o alcance de ações voltadas ao fomento e à qualificação das comunidades mais pobres.
Atualmente, um em cada cinco habitantes da América Latina e do Caribe recebe transferências condicionadas de renda. Esse ponto de partida transcende a rigidez do assistencialismo ao abrir portas de cidadania e inclusão econômica a mais 120 milhões de excluídos na nossa região. Nos orgulhamos de ter contribuído para que os países adotassem essas políticas e pudessem elevar o debate sobre o tema ao âmbito internacional.
A Agricultura Familiar, considerada por muitos um passivo, na verdade é um ativo estratégico dessa travessia. Ela aglutina a carência e o potencial de milhares de comunidades onde se concentram os segmentos mais frágeis da população. Qualquer ganho na brecha de produtividade aí ampliará substancialmente a disponibilidade de comida na mesa dos mais pobres e de toda a sociedade, reduzindo a dependência em relação a alimentos importados e protegendo a economia da volatilidade das cotações internacionais.
Às portas da Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável (Rio+20), é preciso destacar a contribuição que ela pode dar a um desenvolvimento mais sustentável. Ela estrutura a produção para o consumo local; recupera o consumo de alimentos tradicionais na dieta das famílias; e reduz o custo de transporte.
Hoje, a importância da Agricultura Familiar para a segurança alimentar é reconhecida pelo conjunto de países da América Latina e Caribe, que definiram o apoio ao setor como uma das prioridades da FAO na região.
Criar círculos virtuosos de combate à fome e à pobreza, interligando as pontas da produção e do consumo é uma das maiores aspirações das políticas de desenvolvimento da atualidade. O programa brasileiro de compras locais da Alimentação escolar é um desses exemplos, que está sendo compartilhado com outros países da região por meio da FAO.
A construção de políticas públicas de segurança alimentar, sendo um dever intransferível dos Estados, aglutina interesses e forças de abrangência ecumênica. Trata-se, ademais, de um dos canais mais receptivos à participação da sociedade nas decisões estratégicas e práticas do desenvolvimento.
A Iniciativa América Latina e Caribe Sem Fome é um exemplo dessa repactuação em marcha. Desencadeada em 2006, ela fez do mosaico regional um bloco mundialmente pioneiro em assumir o compromisso de erradicar a fome antes de 2025.
A criação da Frente Parlamentar Contra a Fome na América Latina e Caribe reforçou a governança necessária a esse objetivo, ajudando parlamentares a sedimentar uma nova agenda na vida das nações. Hoje, a metade dos países da região já adota ou está em processo de implantação de legislações voltadas para a segurança alimentar, propiciando uma âncora institucional consistente à articulação de esforços nessa área.
Parcerias do escritório regional da FAO com outros organismos internacionais, regionais e nacionais, foram multiplicadas nos últimos anos com o mesmo objetivo, favorecendo uma rica sinergia de especialidades e foco. O conjunto ampliou o alcance e a eficácia da assistência ao diagnóstico e à execução de políticas públicas, robustecendo a producão.
A visão estreita do desenvolvimento frequentemente dispensou à alavanca social o epíteto de “assistencialismo”. A transparência da crise atual despejou um solvente de história nesse preconceito. A força da experiência latino-americana emergiu como uma nova referência na qual às responsabilidades consagradas da democracia, veio se somar a tarefa regulatória que pode marcar a face do século XXI: reconciliar a macroeconomia do crescimento com o imperativo da justiça social.
* José Graziano da Silva é representante Regional da FAO para a América Latina e Caribe e diretor-geral eleito da organização, cargo que assumirá em 1º de janeiro de 2012.
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