Democracia Socialista

Contra o inverno conservador, uma primavera feminista

Hoje, 12 de novembro, é mais um dia em que nós, mulheres de todo o país, vamos às ruas para garantir nossas conquistas já estabelecidas e ir além, para reivindicar mais. Diante das recentes iniciativas parlamentares e ameaças de retrocessos na política nacional, nossa luta cotidiana ganha força como uma ação permanente na defesa de nossas vidas, nossos corpos e uma agenda que se propõe a mudar o mundo através do feminismo.

Por Helena Zelic e Sarah de Roure

O Projeto de Lei 5069/2013, de autoria do atual presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha, é parte deste processo. A proposta restringe o atendimento a mulheres vítimas de violência sexual e o acesso delas ao aborto legal, exigindo Boletim de Ocorrência, exame de corpo de delito e retirando das instituições médicas a obrigação de realizar procedimentos, ceder medicamentos como a pílula do dia seguinte e o coquetel anti-DSTs e até de prestar informação às mulheres violentadas que desejam abortar dentro dos marcos da lei. Passar a exigir Boletim de Ocorrência e Exame de corpo de delito é retroceder em uma conquista nossa de muita importância: o reconhecimento da voz das mulheres como a única “prova” necessária para dar início ao atendimento médico.

Impedir a aprovação deste projeto é fundamental para assegurar os direitos das mulheres, e legalizar o aborto é urgente para garantir que mais nenhuma mulher seja silenciada, ameaçada, perseguida e morta por decidir sobre seu próprio corpo.

A proposta do deputado Eduardo Cunha se insere em uma agenda conservadora que não é nova, mas que há muito vem se articulando em diferentes espaços de poder, e que não por acaso tem nas mulheres um de seus principais alvos. Se estamos em marcha contra Eduardo Cunha hoje, é porque já há muito tempo marchamos contra outras pautas retrógradas que atingem a nós, mulheres. Na Marcha das Margaridas, maior manifestação de mulheres rurais do Brasil, nós, 70.000 mulheres, fomos pioneiras na campanha #foracunha, e Brasília ouviu nossa canção, que dizia “marcha, mulher, marcha, sua bandeira na mão empunha! Viemos de todo o Brasil pedir a cabeça do Eduardo Cunha”. Podemos citar, como parte dessa onda do conservadorismo dentro do Congresso, várias iniciativas de lei e mudanças constitucionais que alteram de forma significativa o cenário dos direitos atuais.

A resistência das mulheres aos retrocessos

Entre estas propostas, se destacam o PL 4330/2004, que colabora na precarização do trabalho através da terceirização, impactando de forma direta as mulheres negras, maioria entre as categorias excluídas de direitos trabalhistas; e a redução da maioridade penal que, somada à justiça racista e à polícia militarizada, atinge jovens negros, mas também às mulheres e meninas periféricas, seja por serem consideradas “cúmplices” de crimes, seja pelos cuidados a seus familiares presos.

Outra proposta tramitando no Congresso é o PL 3722/2012, que pretende revogar o Estatuto do Desarmamento e usa a nós, mulheres, como desculpa: como se precisássemos que os homens se armassem para nos defender, ao invés de mais políticas públicas para combate à violência contra as mulheres. Também está em discussão o Estatuto da Família, que compreende como família apenas a união entre homem e mulher e ignora todas as famílias de lésbicas, bissexuais e gays, além das tantas relações familiares possíveis em um mundo onde os homens não são responsabilizados por seus filhos.

Foi formulado o PL 215/2015, que altera os direitos assegurados no Marco Civil da Internet e permite a espionagem virtual sem necessidade de ordem judicial, o que para nós, mulheres em movimento, é ainda mais um risco à nossa segurança; e foi desarquivada por Cunha a PEC 215, que transfere para o Congresso Nacional – ocupado por ruralistas – a palavra final no já lento processo de demarcação de terras indígenas e quilombolas e torna político o processo que hoje é administrativo.

O mundo sob a ótica feminista

Esses enfrentamentos fazem parte de uma agenda feminista que, através da auto-organização e da aliança com movimentos sociais, luta pela autonomia das mulheres, desmilitarização, autodeterminação dos povos, alternativas produtivas dos territórios e pela garantia do Estado laico. O movimento de mulheres, junto com outros movimentos sociais, nos mobilizamos contra essa onda que parece tomar conta do debate público e nos manifestamos apresentando nossas alternativas.

As mulheres seguirão em marcha, hoje contra as ameaças impostas por Eduardo Cunha, a Bancada “Boi, Bíblia e Bala” e o Congresso mais conservador do período democrático – estaremos no dia 18 de novembro, na Marcha das Mulheres Negras, contra o machismo e o racismo e pelo bem viver, e no 25 de novembro, Dia Internacional de Combate à Violência contra as Mulheres, para um ato nacional localizado simultaneamente em diversos estados do país; e seguiremos em marcha permanentemente, rumo ao mundo que queremos: com igualdade, liberdade e autonomia para decidirmos sobre nossos corpos, nossas vidas e nossos territórios. Ocupamos mais uma vez as ruas para exigir a legalização do aborto e o direito de decidir sobre a maternidade. Ao lado de todas as mulheres que se mobilizam agora contra o retrocesso, lutamos pela possibilidade de construirmos, juntas, uma vida que vale a pena ser vivida.

Helena Zelic e Sarah de Roure, são da Marcha Mundial das Mulheres

 

Publicação original em 12 de novembro de 2015: http://brasil.elpais.com/brasil/2015/11/12/opinion/1447347110_733026.html