Se existe um consenso sobre a existência do problema, o mesmo não pode ser dito sobre as formas de enfrentá-lo. Cresce no país o número de defensores das políticas de internação compulsória de usuários do crack. Em cidades como o Rio de Janeiro e São Paulo, as prefeituras têm se utilizado abertamente deste expediente para promover uma higienização social das áreas centrais da cidade, com pouca, ou nenhuma, implicação na queda do consumo e da venda da substância. Existem, porém, aqueles que alertam para a ineficiência e para a inconstitucionalidade desse tipo de política.
Nesta entrevista, concedida à companheira Marcela Baptista, o coordenador do Laboratório de Estudos do Trabalho e Subjetividade em Saúde da Universidade Federal Fluminense, o psicólogo Túlio Franco, fala sobre os problemas da internação compulsória e aponta soluções alternativas, que têm sido bem utilizadas em outros países, com destaque para Portugal.
A mídia coloca hoje o crack como o grande problema da saúde pública no Brasil. Vimos o espaço que isso ocupou nas eleições presidenciais e também nas municipais deste ano. Como você analisa esse problema?
O crack é um grande problema, mas não é o único. Convivemos ainda com altos índices de violência, exclusão social e abandono. E estas questões estão associadas ao alto consumo de crack, que aparece no cenário das existências humanas, como a possibilidade de um rápido momento de prazer proporcionado pela pedra que é consumida. O crack é sintoma de uma sociedade doentia e, para combatê-lo, é necessário além de uma rede de cuidado aos usuários, políticas sociais abrangentes. Felizmente o tema está na agenda da atual gestão do Ministério da Saúde, que propõe a construção de uma Rede de Atenção Psicossocial que entre vários dispositivos terapêuticos propõe a organização de consultórios na rua, uma experiência inovadora e que promete qualificar o cuidado aos usuários assim como à população de rua.
Mas em geral política de combate às drogas ainda é de caráter repressivo, como foi demonstrado por pesquisa realizada pela UFRJ com apoio da Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça e do PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Este estudo revela o grande aumento da população carcerária relacionada às drogas desde que a nova Lei de Drogas foi aprovada em agosto de 2006. De 2007 a 2010, essa população aumentou 62,5%, um acréscimo que se deu justamente sobre pessoas que eram rés primárias e não tinham envolvimento com o crime organizado. Os usuários sofrem com abordagens repressivas e violentas. Descriminalizar é o passo fundamental para políticas mais efetivas de combate às drogas, por parâmetros humanitários e de cidadania. Em lugares onde a droga foi descriminalizada os usuários perderam o medo de buscar ajuda, aumentando em muito aqueles que ingressavam nos serviços de saúde.
Como você vê a política de combate ao crack no Rio de Janeiro?
A política de combate ao crack no Rio de Janeiro é violenta, autoritária, militarizada e anti-cidadã. O recolhimento compulsório usado como dispositivo para impor o tratamento aos usuários tem por base o argumento de que essas pessoas “perderam o governo da sua própria vida” fazendo com que o estado intervenha sobre elas. Com este discurso o governo do Rio de Janeiro legitima junto à classe média o “arrastão oficial” que rouba os corpos da sua vida por meio violento, os tira da rua encarcerando-os para um pretenso tratamento. Esta prática é ilegal porque restringe o direito constitucional de ir e vir, comprovou ser ineficaz tanto socialmente, porque o isolamento reforça a descriminação, quanto tecnicamente, pois se sabe que o índice de recaídas para os que passaram por tratamento compulsório é em torno de 96 a 97%, o que faz com que a internação compulsória seja condenada pelo Programa Nacional combate às drogas de Portugal, uma das boas referências no mundo. A estratégia usada no Rio de Janeiro visa apenas o curtíssimo prazo. O sucesso do cuidado ao usuário depende do manejo de recursos não materiais como o estabelecimento de vínculo pela equipe, com a necessária confiança que isso proporciona para criar adesão do usuário ao tratamento; o acolhimento deste usuário sem o julgamento moral sobre sua conduta; percepção da real necessidade dos usuários. Tudo isto associado aos recursos que uma rede de cuidado integral pode proporcionar, como a RAPS que está sendo proposta pelo Ministério da Saúde. A política atual, sobretudo no Rio de Janeiro, trata o usuário como algo que deve ser simplesmente removido da paisagem urbana.
As críticas à política de internação compulsória são muitas. Quais são as alternativas para enfrentar o problema?
Em primeiro lugar é necessário descriminalizar o uso, reconhecer o usuário como cidadão pleno nos seus direitos, merecedor de atenção, respeito, afeto. Vários dispositivos têm sido usados para o cuidado, como os consultórios na rua, formados com equipes multiprofissionais e atividade diária junto à população; estratégias de redução de danos, com vistas a gerar confiança e criar vínculos entre profissionais da saúde e usuários, tendo em vista projetos terapêuticos mais duradouros e eficazes. Precisamos ter uma variada oferta de ações assistenciais e apostar na criação da Rede de Atenção Psicossocial e qualificar o seu funcionamento.
“É preciso parar de perseguir o doente e perseguir a doença” e “trocar prisão por tratamento”, são alguns dos preceitos do programa Português, que já está sendo replicado para Argentina, México, República Checa e mais recentemente a Noruega e é considerado um dos maiores sucessos do mundo. Próximo da nossa cultura, o modelo de Portugal nos serve bem como subsídio.
O jornal português “Econômico” publicou matéria der Catarina Duarte – em 26/07/2010 – em que apresenta uma avaliação do constitucionalista norte-americano Glenn Greenwald, no seu relatório “Descriminalização da droga em Portugal: lições para criar políticas justas e bem sucedidas sobre a droga”, afirma o seguinte: “desde 1o de julho de 2001, altura em que a aquisição, posse e consumo de qualquer droga estão fora da moldura criminal e passaram a ser violações administrativas, o consumo de droga em Portugal fixou-se ‘entre os mais baixos da Europa, sobretudo quando comparado com estados com regimes de criminalização apertados’. A explicação, segundo Greenwald, reside nas oportunidades de tratamento. ‘As pessoas deixaram de ter medo do sistema judicial e perderam o receio de procurar ajuda. Por outro lado, mesmo as que continuam a consumir são merecedoras da ajuda do Estado’, diz o presidente do IDT. Em 2009, 45 mil pessoas integravam uma das fases de tratamento, incluindo pessoas com problemas de alcoolismo, um número recorde. E destas 45 mil pessoas, 40% trabalham ou estudam, acrescenta o presidente do IDT”.
Dados de 2006 mostram que a prevalência do consumo de drogas em Portugal desceu de 14,1% para 10,6% face a 2001 nas idades entre os 13 e os 15 anos, e de 27,6% para 21,6% na faixa etária entre os 16 e os 18 anos.