“Baleia (a cachorra) cochilava, de quando em quando balançava a cabeça e franzia o focinho. A cidade se enchera de suores que a desconcertavam”
– Graciliano Ramos –
Tentáculos da pandemia
A crise no âmbito da cultura e da economia criativa é dramática. Museus, teatros, livrarias, centros culturais, cinemas, circos (fechados); exposições, espetáculos, festivais, eventos, encontros, seminários (cancelados) sine die – estas são as pontas de um iceberg de liberdades trocadas pelas angústias das necessidades de sobrevivência (alimentação, moradia, transporte, comunicação…). Na esteira da individualização nas plataformas digitais, as auto-reinvenções funcionam quais paliativos para as terríveis perdas no período. Como é impossível separar as obrigações do Estado das manifestações de má vontade do governo central, o quadro não é auspicioso agora e, decerto, não o será na sequência imediata à pandemia.
Mesmo onde houve retomada dos espaços culturais, o “novo normal” não atendeu às prospecções otimistas. As estruturas comportamentais e mentais de longa duração (habitus, na formulação de Pierre Bourdieu) não impediram a queda de 40% na frequência de museus tradicionais. Ocorreu desaceleração no Prado (Espanha), no Louvre e no Beaubourg (França) que, a exemplo de instituições similares na Itália e na Alemanha tiveram diminuição significativa de visitantes. Nada indica que a situação será sublimada a curto ou médio prazos. Se atingiu nichos consagrados do turismo inteligente, o que dizer das clareiras culturais de menor apelo.
No Brasil, de acordo com o Sistema de Informações e Indicadores (IBGE, 2018), o setor respondia por 2,6% do PIB e contava com 5,7% da totalidade de trabalhadores ocupados. O equivalente a 5,2 milhões de brasileiros(as). Destes, 2,7 milhões foram informalizados sem proteção social. O mercado editorial recuou 65% (confecção de livros e revistas, distribuição…). Avolumaram-se falências. Lives viraram escapes para salvar o ganha-pão da intempérie trazida pelo vírus mensageiro da morte. A pandemia estimulou a digitalização (Twitter, Instagram…) e a busca por saídas atomizadas – de raros feedbacks. A Covid-19 teve um alcance global na cadeia produtiva que sempre enfrentou barreiras para se afirmar e diversificar.
Governos fazem diferença
Diante do cenário caótico, a Organização das Nações Unidas para a Educação a Ciência e a Cultura (UNESCO) apoiou a realização de uma pesquisa extensiva. Uma parceria reuniu o Serviço Social do Comércio (Sesc), a Universidade de São Paulo (USP), o Fórum Nacional de Secretários e Dirigentes Estaduais de Cultura e treze Secretarias Estaduais de Cultura. O estudo foi finalizado em setembro de 2020. Os dados foram preocupantes. Entre março e abril, 41% dos respondentes viram o caixa volatizar. Entre maio e julho, a proporção aumentou para 49%. Os prejuízos maiores impactaram o Distrito Federal, os menores o Mato Grosso do Sul.
As Artes Cênicas foram as mais abaladas. Na área do circo, 77%. Em casas de espetáculos, 73%. No teatro, 70%. As organizações demitiram 44% dos colaboradores. A renda individual média ficou em três salários mínimos. Os serviços de terceiros tiveram redução de 100%. A expectativa para o semestre seguinte também era baixa, o que se confirmou. Um dos setores mais prejudicados foi o de festivais e feiras. Os setores de designer e serviços criativos foram os que menos reduziram contratações. Os números ajudam a dimensionar o tsunami que avançou, inclemente, sobre as atividades culturais e artísticas.
A reação dos governos faz a diferença. Uruguai, Filipinas e Zimbábue estabeleceram fundos de apoio aos fazedores de arte na pandemia. Alemanha e Emirados Árabes Unidos comprometeram-se com encomendar obras de seus fazedores. No Brasil, através da Lei Aldir Blanc, recursos foram transferidos sem critérios nítidos para a cultura. Inexistiu uma política continuada de fomento e assistência. Produtores e artistas foram arremessados à informalidade, onde a discriminação das mulheres persistiu em fazer-se notar com rendimentos inferiores aos dos homens.
“Políticas públicas eficientes, que estabeleçam incentivos concretos para a criação, a produção, a distribuição e o acesso à cultura são peças-chave para que a economia criativa, com sua fonte renovável, sustentável e ilimitada usufrua novas oportunidades para empreender e integrar profissionais de diferentes áreas produtivas, sem que ninguém seja deixado para trás”, sublinhou a representante da Unesco no Brasil, Marlova Jovchelovitch, na imprensa. Não obstante, isso é o que falta ao desgoverno que não esconde o desejo de puxar o revólver quando ouve falar em cultura. Não à toa, o boçal irresponsável atual da pasta anda armado…
Metáfora do rato morto
O neoliberalismo autoritário submeteu as políticas culturais aos interesses da iniciativa privada. Permitiu que empresas decidissem os rumos da cultura. Concentrou o financiamento na alçada do círculo de aderentes do neofascismo. Caracterizou-se “pela agressiva e intensa guerra cultural contra todas as manifestações, obras, pensamentos e sensibilidades não afinados e alinhados com as conservadoras posições oficiais”, conforme o ex-secretário de Cultura da Bahia, Antonio Rubim (Democracia Socialista, 30/04/2021). Com o que, somente 30% dos proponentes foram contemplados com aportes financeiros. Quanto aos 70% de maus brasileiros (sic), na gíria da pornocracia bolsonarista: “Pra puta que pariu!”
A Lei Rouanet, com isenção ou devolução parcial de impostos pelas pessoas jurídicas, é o principal instrumento de financiamento público da cultura. A centralização de recursos e as proposições aceitas, contudo, abrangem sobretudo as regiões Sudeste e Sul. Se a lei já era questionada pela abrangência restrita, imagine-se numa conjuntura de precariedade econômico-social, depois do fechamento de milhares de empresas no território nacional. Soma-se a atitude beligerante de um governicho escroto que não tem nenhum projeto, nenhuma política, exceto o prazer pervertido de provocar polêmicas falso-moralistas simultâneas na área. Se vingar a proposição do líder do PT no Senado (Paulo Rocha/PA) sobre Projeto de Lei Paulo Gustavo, que prevê a execução de R$ 3,8 bilhões provenientes do superávit financeiro do Fundo Nacional da Cultura (FNC) e do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), e o destravamento de R$ 342 milhões do Orçamento de 2021 do FNC – a coisa melhora. Para evocar Júlio César “alea jacta est” (a sorte está lançada).
A longo prazo, solução está na interação da cultura com as instituições educacionais. Na programação multidisciplinar baseada em redes que sustentem o esqueleto cultural. Luta, não de saudosos de ditaduras e dispositivos discricionários para calar a liberdade de expressão de oponentes da necropolítica. Luta de quem coloca-se ao lado dos movimentos dialógicos para a construção de uma autêntica cidadania cultural, com respeito à variedade de expressões estéticas e aos direitos humanos: pilares da modernidade iniciada com a Revolução Francesa. “Sem a cultura, e a liberdade relativa que ela pressupõe, a sociedade por mais perfeita que seja não passa de uma selva”, na observação de Albert Camus (A Peste, 1947).
A propósito, a novela A Peste, do escritor franco-argelino, começa nos anos 40 quando ao sair do consultório o doutor Bernard Rieux tropeça num rato morto. Era o sinal da moléstia pandêmica na cidade. Com a quarentena, os habitantes são levados a estados emocionais, do sofrimento à loucura, passando pela compaixão. O rato morto metafórico é a extinção do Ministério da Cultura, rebaixado à Secretaria Especial da Cultura sob o Ministério do Turismo, pelo presidente ignaro Jair Bolsonaro.
Não foi o seu maior crime e não será o último, com certeza, se considerarmos a total ausência de empatia com o sofrimento do povo: “Chega de mimimi!… Gente morre todo dia!… Vão se foder!… Eu não sou coveiro!…” Para abreviar a lista de insultos canalhas. A pandemia é a oportunidade que um condutopata aproveitaria para matar em grande escala. O genocida agarrou-a com as duas mãos infectadas de vírus.
Pandemia e neoliberalismo
Obviamente a precariedade em tempos de pandemia não se restringe ao ambiente da cultura e da economia criativa. Hoje o desemprego (direito ao trabalho negado pelo Estado e pelo mercado) soma 26 milhões de desalentados no país. 32 milhões de subcidadãos só acham ocupações fortuitas e precárias. 59% dos domicílios padecem de insegurança alimentar, as pessoas não sabem se comerão amanhã. 15% passam fome todos os dias. A pobreza alastra-se pelas ruas como procissão de vidas secas.
“A pandemia escancarou as disparidades de renda e qualidade de vida, as quais são tamanhas que a incidência da doença, inicialmente trazida por viajantes do exterior, concentra-se na população negra, pobre, suburbana e favelada”, sublinhou o assessor do Conselho de Direitos Humanos (CDH) da Organização das Nações Unidas (ONU), José Lindgren-Alves (Humanitas, abril 2021). Trata-se de um espectro antidemocrático, que concerne aos excluídos especialmente.
“Queremos tão somente comida no prato e vacina no braço. Viver e ter saúde com trabalho e renda. Para a juventude, educação de qualidade e oportunidades. E, para as mulheres, relações igualitárias e não-violentas”, denunciou o presidente da CUT/RS, Amarildo Cenci, na mobilização do Primeiro de Maio. O capital, tendo à disposição o exército de precarizados, sequer se preocupa com a reprodução da força de trabalho desse contingente desvalido.
A luta contra a pandemia trava-se em combinação com a luta contra uma razão de mundo incompatível com um projeto humanista de convivialidade. Uma razão de mundo que subestima a importância de se respirar, imaginando que a economia prescinde dos sujeitos. A quantidade abissal de óbitos, por incúria na prevenção e na aquisição de vacinas, conquanto estas tivessem sido oferecidas ao governo, acabou por transformar a pátria amada em uma “ameaça global” ao bem estar do planeta, nos termos de importante jornal britânico (The Guardian, 04/03/2021).
Seria útil prestar atenção no aviso do sociólogo espanhol Manuel Castells: “O Brasil é um caso particularmente grave pela inépcia criminosa de um governo negacionista” (Valor Econômico, 30/04/2021). Negacionismo que emula atos com o slogan “Eu autorizo o presidente” (leia-se, autorizo o genocídio da população). A extrema-direita adonou-se do sentimento antissistema, identificando o sistema com a democracia. O que contraria suas falas sobre alternative facts proviria da fonte sistêmica de enganos financiados “pelas elites”, logo, não merece credibilidade. No balaio da ignorance oficial cabem a cultura, as artes, a intelecção, além da ciência. Para vencer os fatos alternativos do desgoverno, só devolvendo os desgovernantes ao esgoto da história donde saíram. Para vencer a indiferença, a solidariedade!
- Luiz Marques é professor universitário, UFRGS
Edgardo W . Oliveira
Atelier Pedro Grapiúna, RJ
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