Democracia Socialista

Cultura e Política | Luiz Marques

I

Cada período histórico-social exprime um estilo hegemônico de literatura e música. Na literatura, entre as décadas de 50-70, foram marcantes as obras de ficção científica. O best-seller de Erich von Daniken (Eram os Deuses Astronautas, 1968) confirma-o. Então a robótica introduzia-se no processo de produção de automóveis. O satélite da ex-União Soviética denominado Sputnik explorava o Kósmos. A Apolo 11 desbravava a superfície lunar. Os meios de comunicação noticiavam a Guerra da Coreia, a Revolução Cubana, a Guerra do Vietnã e o Maio de 1968. Em San Francisco, o movimento Hippie pregava o amor livre, o respeito à natureza, ao pacifismo e à vida simples, sem taras consumistas. Em São Paulo, o experimentalismo espacial do Concretismo reinventava a tradição poética ao celebrar a fruição visual na arquitetura dos versos, com o talento dos irmãos Campos (Haroldo e Augusto) e Décio Pignatari.

Na música impunham-se os acordes de grupos marginalizados que rompiam o dualismo da alma e do corpo, essa platônica herança judaico-cristã. A sensualidade do Rock ‘n’ Roll pedia passagem. Recuperava a expressão dos negros estadunidenses do início do século XX para designar o ato sexual. A época anunciava a revolução nos costumes e o empoderamento da juventude. Paralelo ao incremento da luta por liberdades civis e pela objeção de consciência, reivindicava uma sonoridade que evocasse a rebeldia, o script de um destino traçado com autonomia. Sintetizava múltiplas tendências libertárias. A luta por um mundo mais verde da ecologia, a afirmação da negritude, o combate à hipocrisia burguesa: “You may say I’m a dreamer / But I’m not the only one”, cantava John Lennon em Imagine, pouco antes de Richard Nixon renunciar à presidência dos Estados Unidos)… tudo isso ocorria sob o céu da resistência às ditaduras militares na América do Sul. No Brasil, o programa Jovem Guarda exibido pela TV Record (1965-68) ajudaria a batizar a fenomenal explosão musical e estética do Rock.

Em meio à estridência das guitarras elétricas, surgia também a Bossa Nova. Para o jornalista Ruy Castro, (Chega de Saudade, 2016), “uma simplificação extrema da batida da escola de samba”. João Gilberto foi seu porta-estandarte, reconhecido internacionalmente. Diz-se, de forma jocosa, que o tom baixo das canções bossanovistas era para não incomodar os vizinhos nos edifícios de classe média da Zona Sul do Rio de Janeiro.

Impulsionada pelos festivais (1965-69), logo ganhava igualmente notoriedade a chamada Música Popular Brasileira (MPB), com forte influência do folclore. Composta por Geraldo Vandré e Theo Barros, interpretada por Jair Rodrigues, Disparada (“Prepare o seu coração, / Eu venho lá do sertão”) dividiria com A Banda (“Estava à toa na vida / O meu amor me chamou / Pra ver a banda passar / cantando coisas de amor”), de Chico Buarque, o primeiro lugar no festival de 1966. A dupla premiação fez jus ao sincretismo da MPB, que propagava a fusão do engajamento folclórico de raiz dos Centros Populares de Cultura (CPCs), da União Nacional dos Estudantes (UNE) com a sofisticação remanescente do bossanovismo.

A Tropicália, que nomina a canção e a corrente liderada por Caetano Veloso, por igual, disse presente nos famosos festivais de antanho (“Sobre a cabeça, os aviões / Sob os meus pés, os caminhões / Aponta contra os chapadões / Meu nariz… Eu organizo o movimento / Eu oriento o Carnaval / Eu inauguro o monumento / No Planalto Central do país”). De início foi mal aceita e, no cotejo com o perfilamento político da MPB, classificada de modo pejorativo como uma epifania da esquerda festiva. A história do tropicalismo e a crônica da geração à volta de 1964 foi descrita por Veloso em sua autobiografia (Verdade Tropical, 1977), onde abordou questões estético-políticas ligadas ao ofício de pop star nas condições do Terceiro Mundo. Mereceu uma crítica literária de Roberto Schwarz (in: Martinha versus Lucrécia, 2012), que desagradou o artista.

Nas periferias, as inovadoras modalidades musicais privilegiavam as aflições rotineiras dos pobres, dos negros, das mulheres, dos gays, escancarando a insofismável violência policial. A produção cultural nas favelas, como ainda agora, abrigava a esperança de que a arte pudesse, num ambiente hostil, promover oportunidades de trabalho e a participação política. O Hip-Hop recende as batalhas por direitos civis of blacks in the USA. O Miami Bass, subgênero do Hip-Hop, repercutia batidas e a proficiência dos DJs em manipular vinhetas para ampliar a presença dos sem voz.

II

A partir dos anos 80, a coisa tomou outro rumo. Com a hegemonia do neoliberalismo, viveu-se um retrocesso civilizacional. Nenhum país que adotou o modelo elevou o seu Produto Interno Bruto (PIB). Muito menos o Produto Interno de Felicidade (PIF), por não coadunar as políticas de crescimento com as de distribuição de renda, praticando sempre a disjuntiva entre crescer e distribuir. A supremacia do paradigma estipulado no artigo de Milton Friedman, “A responsabilidade social das empresas é aumentar seus lucros” (1970), jogou tudo ao léu, sem a proteção do Estado e sem o prumo das instituições (partidos, sindicatos, profissões) que forneciam um perfil identitário aos indivíduos. Restou-lhes o sentimento de abandono.

Na literatura, a expressão desse abandono (pós-moderno) alavancou as vendas dos livros de Auto-Ajuda e abriu colunas na imprensa às crônicas escapistas, que não cansam de enaltecer o heroísmo egóico do “eu” e de lamentar a degradação da sociabilidade. É tanto eu para cá e eu para lá nas croniquetas caça-níqueis, que cansa. Falar do próprio umbigo e de como uma personagem pode triunfar, ou soçobrar, no labirinto de sua aventura terráquea virou moda – bem remunerada. As livrarias estão abarrotadas da psicologia de manuais de autoconhecimento e aconselhamento, dicas para um casamento duradouro e uma velhice feliz. Registre-se que os escribas do nicho rejeitam com veemência o rótulo de Auto-Ajuda, a exemplo de Augusto Cury e Içami Tiba.

Na música, o individualismo narcísico realizou-se no Sertanejo Romântico e no Universitário, com a mercantilização do sofrimento gerado por traições e desencontros amorosos, que desembocavam na solitude. Traições, seja do parceiro(a), seja do Estado de Bem-Estar graças ao desemprego e à falta de perspectiva de futuro. Entoava-se, sem consciência disso, a perda de amores inconfiáveis em face de uma realidade externa cruel com os perdedores. À época, as emissoras de rádio quase que unicamente dedicavam-se às procissões de infelicidade, que se arrastavam pelos salões. Nem adiantava trocar de estação radiofônica. O Sertanejo imperava. Como em Se Quer Beber, de Gusttavo Lima com participação de Neymar: “Misturamos o sertanejo que virou batidão. / Com Gusttavo Lima balançando a multidão… / Ela me chama me pedindo pra voltar. / Na minha muvuca ela não pode mais entrar”. A propósito, azar dela, dele ou de quem ouve?

Das periferias, invadindo os centros urbanos, com uma proposta ao largo da breguice do conformismo caipira, adveio o Funk com denúncias às agruras dos segmentos banidos socialmente, como na música Som de Preto, de Amilcka e Chocolate (“É som de preto, de favelado / Mas quando toca ninguém fica parado – tu tá ligado – / … O nosso som não tem idade / Não tem raça e nem vê cor / Mas a sociedade pra gente não dá valor / Só querem nos criticar pensam que somos animais / … Libere o seu corpo, vem pro Funk, vem dançar / Nessa nova sensação que você vai se amarrar). Sua dança simulava a liberação erótica de uma comunidade reprimida, sexualmente, pelo cansaço físico do trabalho braçal e pelo espaço exíguo de casebres sem privacidade. Não faltaram admoestações moralistas, na esteira das que foram endereçadas ao sensualíssimo gingado de quadril de Elvis Presley, quando o Rock emplacou nas paradas de sucesso.

Tudo posto na balança, hoje, embora a adversidade do momento, os trabalhadores da arte e da cultura jamais alimentaram O Esquecimento da Política, para emular o título do livro organizado por Adauto Novaes (2007). As agressões reiteradas do governo protofascista à cultura, assim como a drástica redução de recursos para o exercício do métier são objeto de denúncias constantes pela communauté artistique. Esta: “Segue assumindo cada vez mais atributos oposicionistas em atividades como a de dizer a verdade diante do poder, ser testemunha de perseguição e sofrimento, além de dar voz à oposição em disputas contra a autoridade”, para salientar uma passagem de Edward W. Said em Cultura e Política (2012). Letargia não há no arraial cultural. Quem se calava, participa de carreatas, lives, protestos, manifestos. Vai à luta. Retoma bandeiras guardadas no armário, com intervenções criativas para modificar o que está aí. Não compactua: “Não canto para bolsominion”, afirmou a cantora Teresa Cristina no Roda Viva (22/02/2021).

Em conclusão, no período histórico-social que atravessamos por onde deveriam seguir a cultura e a política, na acepção aristotélica de esforço para o “bem comum”? A resposta está num poema de Fernando Pessoa: “A rota que deviam seguir estava escrita nos ritmos, / os ritmos perdidos das canções mortas do marinheiro de sonho…” Ninguém tolera mais tanta violência simbólica e material às atividades artísticas e intelectuais, por parte do desgoverno de ignorantes sustentados pela elite financeira. A canga da ignorância e da intolerância à liberdade não nos impedirá de reencontrar os ritmos extraviados. Com o velho marinheiro, de volta à linha de frente, é possível derrotar o espectro do obscurantismo genocida que paira sobre o país.