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Cultura e reforma política

Fábio Giorgio Azevedo *

Desde aqui, onde há uma sensibilidade notável quanto à ancestralidade que nos pode irmanar, e para a qual tenhamos dívida com a (talvez) “melhor” parte do que somos (quando avaliamos os modos de vida dos nossos antepassados e o que nos temos tornado); aqui, onde a sabedoria oscila e tremula ao se deparar co a língua de fogo da inteligência e da objetividade fria das razões e do cálculo; aqui, onde a ginga procura evitar o confronto, sem perder a força, nem baixar a cabeça, ainda que manco e obtuso seja o discurso descarnado; aqui, onde nos irmanamos através das ilusões concebidas por nossa imaginação… Daqui, pressinto, algo acontece, e nos chama a falar.

A história dos nossos antepassados indígenas, nativos dessas terras, é a história da luta de povos e nações contra a instituição da autoridade do Poder. De um poder que lhes viesse coagir a serem o que não eram, que lhes viesse obrigar a confiar sua liberdade nas mãos de um chefe que falasse por eles, que lhes representasse. A história das “sociedades sem história” é a história da lúcida e persistente esconjuração da autoridade da hierarquia, da relação de poder, da dominação dos homens; numa palavra: do Estado. (Clastres, p. 220).

Nesses pouco mais de cinco séculos que contam o (des)encontro do europeu com os moradores da terra que veio a ser chamada Brasil, fomos levados a crer que deveríamos nos “civilizar” e deixar para trás aquilo que de “selvagens” viéssemos herdar. A história do Brasil é também a história dessa empreita de transformação de uma diversidade de culturas tidas como “primitivas” para chegarem a um patamar de desenvolvimento compatível com os valores dos nossos antepassados colonos. A sombra dos tempos selvagens deveria ser iluminada e apagada a todo custo, sob pena de não merecermos o respeito das sociedades e dos povos civilizados. Não por acaso a enorme e infindável demanda por “capacitação” em todos os âmbitos e dimensões da vida brasileira. Não é por acaso, nem se pode negligenciar, o clamor da sociedade civil para conquistar e merecer participar da ordem das coisas desse novo mundo desencantado. Não é por acaso a atualidade das antigas tensões que motivaram embates violentos entre “selvagens” e “civilizados”.

No final do século XV, nossos ancestrais Tupi-Guarani se viam ameaçados pela irresistível ascensão de um novo tipo de poder dos chefes. Uma sociedade que havia lutado de modo ferrenho, desde si, contra toda autoridade que fosse centralizadora nas mãos de um ou poucos, agora se via ameaçada pela “máquina profética” dos karai, que mobilizava os índios pela promessa de habitarem a Terra sem Mal. A palavra “inocente” dos antigos chefes passava a emudecer, pela “predicação inflamada de alguns homens que, de grupo em grupo, concitavam os índios a tudo abandonar para se lançarem na busca da Terra sem Mal, do paraíso terrestre”. (Clastres, p. 231). Diante do pressentimento de uma catástrofe sociocósmica, a ideia de que era preciso mudar o mundo cativou os índios Guarani, e nos legou importante lição: “No discurso dos profetas jaz talvez em germe o discurso do poder, e sob os traços exaltados do condutor de homens que diz o desejo dos homens se dissimula talvez a figura silenciosa do Déspota”. (Clastres, p. 234).

Apesar de terem sucumbido, os nossos ancestrais, aos encantos da palavra profética como princípio unificador dos desejos e das demandas, a história dos nossos antepassados é a história do “esforço permanente para impedir os chefes de serem chefes, é a recusa da unificação, é o trabalho de conjuração do Um, do Estado. A história dos povos que têm uma história é, diz-se, a história da luta de classes. A história dos povos sem história é, dir-se-á com ao menos tanta verdade, a história da sua luta contra o Estado”. (Clastres, p. 234).

Se as forças do Estado se impuseram em nossa história como se fora as forças do Bem; como se fosse a aquisição de uma cultura mais elevado e um estado de civilização e organização social mais cultos; porque em tantas ocasiões temos a sensação de agirem contra a maioria de nós? Qual sabedoria subjacente à luta contra o Estado (qual poder centralizado em um ou poucos) nos legou nossos ancestrais? Se essa luta hoje chega a parecer coisa impossível, ou coisa que gente civilizada não cogita, qual “reforma política” conseguiria açambarcar a diversidade cosmológica de nossos povos, a ponto de trans/formar o Estado e seus valores por dentro?

Em quantas frentes simultâneas atuar! Do ponto de vista da “cultura”, o nosso, nada mais esperado do que uma constante atenção ao permanente (e vigente) processo civilizatório, sob o qual a nação brasileira ainda permanece. E sob valores que não são os “nossos” – arriscaria dizer, com quem quer que se reconheça nessa entidade nacional sob alcunha de “cultura brasileira”.

Nesses tempos de certa empolgação, em certa medida justificável, com os rumos do Estado brasileiro, talvez seja propício lembrarmos (inclusive à ministra), as sábias palavras de um velho griot letrado:

“Se no terreno político e social os princípios do liberalismo têm sido uma inútil e onerosa superfetação, não será pela experiência de outras elaborações engenhosas que nos encontraremos um dia com a nossa realidade. Poderemos ensaiar a organização de nossa desordem segundo esquemas sábios e de virtude provada, mas há de restar um mundo de essências mais íntimas que, esse, permanecerá sempre intato, irredutível e desdenhoso das invenções humanas. Querer ignorar esse mundo será renunciar ao nosso próprio ritmo espontâneo, à lei do fluxo e do refluxo, por um compasso mecânico e uma harmonia falsa. Já temos visto que o Estado, criatura espiritual, opõe-se à ordem natural e a transcende. Mas também é verdade que essa oposição deve resolver-se em um contraponto para que o quadro social seja coerente consigo. Há uma única economia possível e superior aos nossos cálculos para compor um todo perfeito de partes tão antagônicas. O espírito não é força normativa, salvo, onde pode servir à vida social e onde lhe corresponde. As formas superiores da sociedade devem ser como um contorno congênito a ela e dela inseparável: emergem continuamente das suas necessidades específicas e jamais das escolhas caprichosas. Há, porém, um demônio pérfido e pretensioso, que se ocupa em obscurecer aos nossos olhos estas verdades singelas. Inspirados por ele, os homens se vêem diversos do que são e criam novas preferências e repugnâncias. É raro que sejam das boas”. (Holanda, p. 208).

É na espontaneidade e na sabedoria ancestral dos “povos”, isto é, nos modos de vida à periferia do Estado, que se pode auscultar necessidades específicas da sociedade brasileira, bem como entrever outras maneiras de organização político-social para relações legítimas e pertinentes entre o binômio Estado/Sociedade.

* Fábio Giorgio Azevedo é psicólogo social, professor-pesquisador em antropologia e cultura brasileira.

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