Democracia Socialista

De golpes e contra-golpes na tradição brasileira – V | Flávio Aguiar

O golpe de 1964 até o esvaziamento do regime ditatorial

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Era noite fechada. Eu abri a porta da rua – aquela mesma por onde dez anos antes entrara aos prantos a vizinha, Dona Wanda, anunciando que “o doutor Getúlio” se matara. Desta vez não entrou ninguém. A rua estava às escuras, as lâmpadas dos postes todas apagadas. Meu pai chegou junto a mim, por trás, e me disse: “vamos entrar, meu filho, hoje anoiteceu mais cedo”. Era a noite de um dos primeiros dias de abril de 1964. Além do estupor causado pelo golpe de estado nesta altura já bem-sucedido, havia no ar da casa um misto de espanto e temor causado pela notícia de que o já coronel aviador Alfeu de Alcântara Monteiro, que ajudara a impedir o bombardeio da cidade, ordenado pelos golpistas de 1961, fora assassinado a tiros dentro da Base Aérea de Canoas pelo ajudante-de-ordens no novo comandante nomeado pelo golpe vitorioso, na noite do dia 04.[1]

Aquela frase de meu pai sobre o anoitecer nunca me saiu dos ouvidos, bem como o breu daquela noite nunca deixou minhas retinas nesta altura já tão fatigadas, como dizia o poeta a propósito de uma pedra no caminho. A pedra a que me refiro aqui nos reteve a vida durante 21 anos, e agora ameaça retornar.

Por intermédio do irmão de uma outra vizinha, militante comunista e diretor do Sindicato dos Petroleiros, tomamos conhecimento da dramática reunião na Prefeitura de Porto Alegre, em que Jango se recusou a lutar. Brizola, o prefeito Sereno Chaise, o general Ladário Pereira Teles, nomeado às pressas comandante do III Exército, os sindicalistas petroleiros, muito influentes na Petrobras, insistiram para que Jango resistisse. Ele foi inflexível e anunciou que deixaria o país. Mais tarde fiquei sabendo que houve militares legalistas que desaconselharam a resistência com o argumento de que a disparidade de forças seria muito grande. Assim mesmo o general Ladário insistiu: chegou a requisitar combustíveis.

Daí veio a derrocada. Ladário organizou a fuga de Goulart. Depois foi para o Rio de Janeiro, onde foi reformado com base do Ato Institucional no. 1. Sereno Chaise foi cassado dali a um mês. Brizola também seguiu para o exterior, depois de passar um mês na clandestinidade, ainda no Rio Grande do Sul. Sua fuga deveria ser tema de filme. Ele combinou com um aviador simpático à causa que estaria num ponto daquele areal imenso que é “a maior praia do mundo”: o litoral do Rio Grande do Sul de Torres à fronteira com o Uruguai, quando a costa começa a curva do Rio da Prata e aparecem pequenas rochas esparsas. Ele foi disfarçado de brigadiano, com alguns soldados e oficiais fiéis. A senha seria a colocação de quatro caminhões da Brigada Militar em cruz na praia. O piloto veio na hora combinada. Na hora de colocar os caminhões na posição, um deles atolou na areia e não saía do lugar. O piloto daria até três rasantes, para reconhecer que tudo estava em ordem. Sem a senha dos caminhões, ele deveria ir embora sem pousar. Deu dois. Quando ia dar o terceiro, num gesto desesperado, Brizola tirou o capacete e deu-se a conhecer, mesmo do alto. O piloto pousou, Brizola embarcou e foi embora para o Uruguai, voando baixo para escapar dos radares.

O irmão comunista da vizinha sumiu no tempo e no espaço.

Neste escorço dos golpes brasileiros que venho debuxando, pretendo evocar o de 1964 para sublinhar alguns elementos que, na minha visão, o ajudaram a ter sucesso e também, com outros, balizaram seus desdobramentos até que o regime por ele instituído se esvaziou. Afastou-se. Recolheu-se, por inadimplência, por falta de fundamentos – inclusive econômicos – que o sustentassem. Mas não morreu. Perdeu apoio no exterior e dentro do próprio país e tentou criar uma nova paisagem pluripartidária, que lhe facilitasse negociações para permanecer no poder. Mas seus próceres, depois de conseguirem impedir que Leonel Brizola herdasse a legendária sigla do PTB, não contaram com alguns fatores algo surpreendentes: o “fenômeno Tancredo Neves-José Sarney”, a posterior falência do governo Collor, a guinada à direita transformando o ex-professor Fernando Henrique Cardoso no neoliberal FHC e o crescimento do Partido dos Trabalhadores a ponto de chegar à presidência.

De início, a conspiração que levou ao golpe foi mais civil do que militar. Apesar das conspirações prosseguirem dentro das casernas as corporações armadas ficaram em cima do muro durante um bom tempo, enquanto políticos civis e os barões assinalados da mídia reacionária se articulavam e conspiravam abertamente, com ajuda religiosa e também contatos norte-americanos para derrubar o governo de Goulart. Quem não lembra da “Cruzada do Rosário em Família” – “A família que reza unida permanece unida” – do padre Patrick Peyton, um irlandês de origem, sediado nos Estados Unidos, que percorreu alguns países da América Latina, entre eles o Brasil, no começo da década de 1960.

O padre Peyton foi estimulado por um empresário norte-americano, Joseph Peter Grace Jr., famoso por andar com dois relógios, um marcando a hora local e outro marcando a hora de Nova Iorque, além de um revólver na cintura. Grace fez a intermediação entre a cruzada de Peyton, a CIA e os governos de Nixon e de Kennedy, que autorizaram e financiaram a cruzada como parte do esforço anti-comunista no continente. Grace era católico fervoroso e membro da Ordem dos Cavaleiros de Malta. Tinha vários interesses econômicos na América Latina. A cruzada teve o apoio também de David Rockefeller e de Juan Trippe, da PAN AM.

Os militares só passaram à ação – de modo precipitado, aliás, pelo gesto impulsivo do general Olímpio Mourão Filho, aquele mesmo do plano Cohen, botando a tropa sob seu comando em Juiz de Fora para marchar em direção ao Rio de Janeiro na madrugada de 1º. de abril – quando seus chefes tiveram certeza de que a grande maioria da oficialidade se sentia em perigo diante da ameaça de quebra da hierarquia nas Forças Armadas.

Claro: este não foi o único fator decisivo. Grande parte dos militares brasileiros estava seduzida pelos acenos de Washington para que “salvassem o país do perigo comunista”, tornado muito próximo pelos barbudos cubanos e pela busca de uma aproximação comercial com a China. Mas foi o temor da indisciplina que empurrou para a bancada golpista uma boa parte dos militares legalistas de 1961, como os generais Machado Lopes e Pery Bevilacqua.

Os temores por esta ameaça começaram a medrar em 61 – lembram? Os sargentos e suboficiais da Base Aérea de Canoas… os suboficiais que se sublevaram e impediram que os oficiais golpistas da Marinha apoiassem o golpe…

Em setembro de 1963 houve a “Revolta dos Sargentos” em Brasília. Eram pertencentes à Marinha e à Aeronáutica. Protestavam contra a impossibilidade de se candidatarem a postos políticos. Ocuparam parte da capital e detiveram autoridades. Houve tiroteios, com mortos e feridos. Não conseguiram a adesão de seus colegas suboficiais do Exército. Desistiram e se entregaram, depois de algumas escaramuças.

Em 1961, na sequência do golpe militar fracassado, o arqui-conspirador Golbery do Couto e Silva reformou-se, conseguindo o posto de general-de-divisão e fundou o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais – IPÊS – com apoio financeiro e logístico do empresariado paulista e do carioca, além de contar com a participação de vários colegas de farda ou de pijama. A partir da Revolta dos Sargentos, Golbery intensificou uma prática que já tinha adotado: o envio sistemático de cartas aos quartéis, visando sobretudo os oficiais legalistas, com alertas sobre o perigo da quebra da hierarquia.

A gota d’água foi a Revolta dos Marinheiros, em março de 1964, liderada pelo traiçoeiro Cabo Anselmo. A revolta, às vésperas do início do golpe, é continuamente citada como um de seus estopins. Penso que o problema vinha de antes, lembrando dos idos de 1910, quando da Revolta da Chibata. A Marinha era das corporações de oficialidade mais “aristocrática” nas Forças Armadas brasileiras. As condições de vida e trabalho dos marinheiros era muito dura. Este foi o caldo de cultura da revolta. Mas é inegável que ela serviu de argumento para os golpistas demonstrarem que a disciplina nas Forças Armadas periclitava. Resta saber se o Cabo Anselmo – que na verdade não era cabo – já era um infiltrado a serviço da CIA.

Ele sempre negou. Mas sua “fuga”, depois de preso devido à revolta de 1964, e sua adesão ao movimento repressivo depois de preso pelo delegado Fleury, nos anos 1970, têm algo de inverossimilhança. É possível que tenha “apresentado suas credenciais” e o restante é história. Uma sinistra história, desempenhada por um canalha.

Há muita e boa literatura sobre a implacável perseguição às esquerdas, fossem elas adeptas da luta armada ou não, e também do que houve de oposição liberal ao regime ditatorial de 1964. Um aspecto relativamente pouco destacado é o do estilo de luta interna, nas suas próprias hostes, que o sucesso do golpe deflagrou.

Ao contrário de Cronos, que devorava os filhos, o golpe e o regime ditatorial instalado devoraram alguns de seus próprios pais e apoiadores, a começar pelos civis. Mauro Borges teve de se afastar do governo de Goiás. Sua defesa da posse de Goulart em 1961 lhe foi fatal, apesar de ter apoiado o golpe em 1964. Alguns dos líderes da ala “Bossa Nova” da UDN também perderam seus mandatos. Carlos Lacerda acabou cassado e exilado durante algum tempo. O mesmo aconteceu com Ademar de Barros, Juscelino Kubitschek e Jânio Quadros. Juscelino morreu num acidente de carro controverso pela suspeita de assassinato, nunca confirmada, apesar de seu secretário e da Comissão da Verdade Municipal Vladimir Herzog a terem mantido.

Pedro Aleixo, que era vice de Costa e Silva, foi impedido de assumir a presidência quando o presidente sofreu um derrame de que não se recuperou. Fora o único presente à reunião de 13 de dezembro de 1968 a votar contra a proclamação do Ato Institucional no. 5. Sua declaração patética de que confiava naquele colegiado, mas “desconfiava do guarda da esquina” não o ajudou. Afinal, os signatários do Ato eram piores do que o tal guarda da esquina.

Outros líderes civis foram escanteados e acabaram na oposição, como Paulo Brossard, que apoiara o golpe, Severo Gomes, que foi ministro dos governos de Castelo Branco e de Ernesto Geisel, e Teotônio Vilela, que em 1965 aderiu à ARENA, partido de sustentação do regime, mas depois se tornou o “Menestrel das Alagoas”, arauto da redemocratização. O Congresso Nacional foi fechado em diferentes ocasiões, medida que atingia tanto os opositores quanto os governistas.

No meio militar o caso de maior repercussão foi a “neutralização” do general Albuquerque Lima, que tinha pretensões presidenciais, mas foi preterido por se opor aos economistas, como Helio Beltrão e Delfim Netto, que garantiam o apoio do empresariado paulista e de outros estados. Albuquerque Lima tinha o apoio da “linha dura” dos oficiais subalternos e mais jovens, e chegou a ensaiar uma resistência militar, sem sucesso. Não foi cassado, mas perdeu-se no labirinto das nomeações para postos de menor poder e importância. Passou para a reserva compulsoriamente em 1971.

Depois do golpe o general Pery Bevilacqua, que era chefe do Estado Maior e foi mantido neste cargo por Castelo Branco, foi indicado para o Supremo Tribunal Militar. Nele se incompatibilizou com seus colegas de farda por sua posição contrária às perseguições políticas praticadas pelo regime ditatorial. Acabou cassado em 1969 e só passou a receber pensão como juiz aposentado a partir de 1980.

Os casos mais espetaculares de “devoração” intra-caserna ficaram por conta do governo Geisel: os dos generais Ednardo d’Ávila Melo e Sylvio Frota. Hoje se sabe que, ao assumir a presidência, Ernesto Geisel dera ordens explícitas para que líderes de organizações esquerdistas só fossem mortos com autorização do governo central. Em agosto de 1975 apareceu morto no DOI-CODI de São Paulo, onde estava detido, o tenente da PM paulista José Ferreira de Almeida, acusado de pertencer aos quadros do PCB. A versão oficial foi de suicídio. Colegas seus, que sobreviveram à prisão, levantaram a suspeita de assassinato.

O assassinato do jornalista Vladimir Herzog, em outubro do mesmo ano e do operário Manoel Fiel Filho em janeiro de 1976, nas dependências do DOI-CODI do II Exército que o general Ednardo chefiava, também “suicidados”, confirmaram a impressão de que sob seu comando proliferava uma política de desobediência e insubordinação por parte de um comandante adepto da “linha dura” e contrário à política de distensão que o governo começava a ensaiar. Ednardo foi defenestrado do comando de maneira rápida e contundente, assumindo em seu lugar o general Dilermando Gomes Monteiro.

Consta no falatório a respeito que o general Ednardo ficou afônico ao receber de surpresa, em seu próprio gabinete, a notícia de sua demissão, dada por um emissário do presidente, que imediatamente lhe “colocou à disposição” um carro a fim de que seguisse dali para o aeroporto, onde embarcaria para Brasília. Dilermando era completamente afinado com a política de Geisel. Assim mesmo, ou por isso mesmo, foi sob seu comando que ocorreu o chamado “Massacre da Lapa”, em dezembro de 1976, quando os dirigentes Ângelo Arroyo e Pedro Pomar, do PC do B, foram assassinados pelos agentes da repressão e cinco outros militantes foram presos.

O caso do general Sylvio Frota foi também fulminante e contundente. Frota se fizera líder dos militares da “linha dura”, contra a política de Geisel, e tinha ambições presidenciais. Ao tomar conhecimento de que Geisel pretendia indicar o general João Batista Figueiredo, então chefe do SNI, para sua sucessão, em setembro/outubro de 1977, Frota ensaiou uma campanha nas frentes militar e civil promovendo sua candidatura. Chegou a articular uma base parlamentar em seu favor, através do general Jaime Portela. Neste momento, Geisel fez saber a seu staff mais próximo que “tomara a decisão de tratar a questão sucessória apenas no ano seguinte”, quando, na verdade, sua opção por Figueiredo já ocorrera.

No dia 10 de outubro Geisel comunicou aos chefes da Casa Civil e Militar, respectivamente o general da reserva Golbery do Couto e Silva e o da ativa, Hugo Abreu, sua decisão de demitir Frota no dia 12 de outubro, feriado nacional, quando o Congresso estaria fechado. Ao mesmo tempo ordenou que ficassem de prontidão algumas unidades militares em Brasília e seus arredores, além de outra no Rio de Janeiro, onde fica a Vila Militar, eterno foco de conspirações fardadas, ninho da oficialidade da “linha dura”. Convocou o pessoal do Diário Oficial da União para trabalho no feriado, 12 de outubro, para que os decretos demitindo Frota e nomeando seu substituto no ministério fossem publicados na tarde daquele dia. Chamou Frota para uma reunião no Palácio do Planalto na manhã do dia 12.

Entre os dias 10 e 12 Ernesto Geisel manteve contato com todos os comandantes dos quatro exércitos brasileiros e do Comando Militar da Amazônia, cobrindo todo o território nacional, pedindo – ordenando – que na manhã do dia 12 anunciassem a seus comandados a demissão de Frota. Fez o mesmo em relação aos ministros da Marinha e da Aeronáutica, de quem teve imediato apoio. Num lance ousado, comunicou sua decisão ao comandante licenciado do III Exército, general Fernando Belfort Bethlem, pertencente ao esquema de apoio a Frota, e que ele seria o novo ministro a ser nomeado.

Na manhã do dia 12 as bombas-relógio armadas começaram seu tique-taque. Frota compareceu ao Palácio do Planalto às nove horas, quando foi informado de sua demissão. Inconformado, dirigiu-se a seu próprio gabinete, e entrou em contato com os comandantes militares, convocando naquele mesmo dia uma reunião do Alto Comando no prédio do Ministério do Exército, cujo objetivo só poderia ser o de derrubar não só a ordem de Geisel, mas o próprio presidente.

De alguma forma Geisel e seu comando souberam do plano de Frota, e armaram o contra-golpe. Conforme os comandantes militares chegavam ao aeroporto de Brasília, encontravam dois comitês de recepção: um, enviado por Frota, outro, pelo Palácio do Planalto, numa operação chefiada pelo general Hugo Abreu. O que Frota não contava é que sua demissão já fora divulgada, e Geisel alertara, de véspera, os comandantes regionais. Estes acabaram acedendo ao “convite” presidencial e rumaram para o Palácio, ao invés de seguirem para o ministério. Frota perdera a batalha da contagem dos generais, e teve de se conformar.

Em consequência, o general Figueiredo foi “eleito”, como diz Elio Gaspari num de seus livros sobre a ditadura, com uma votação única na história brasileira: ganhou por 1 x 0, 100% dos votos. Como de costume, sua posterior eleição indireta pelo Congresso foi a firula necessária para manter as aparências. Entretanto houve um sinal dos tempos: a votação indireta foi de 355 para Figueiredo contra 226 dados a outro general, Euler Bentes Monteiro, que se candidatara pela oposição, com Paulo Brossard de vice, num movimento articulado por Severo Gomes. Assinale-se que a indicação de Figueiredo por Geisel provocou a demissão do general Hugo Abreu, que passou a fazer oposição ao governo e chegou a ser preso por indisciplina.

O governo de Figueiredo foi marcado pelas tentativas de interromper a “abertura lenta, segura e gradual”. Dentre muitas, a maior delas foi a do atentado no Riocentro, em 30 de abril de 1981. Nele morreu o sargento Guilherme Pereira do Rosário, que carregava a bomba no colo, quando ela explodiu acidentalmente, e ficou gravemente ferido o capitão Wilson Dias Machado, motorista do carro em que ambos estavam.

A ideia era jogarem a bomba no anfiteatro onde uma multidão assistia um show e atribuir o atentado a “organizações terroristas de esquerda”. Seguiu-se uma investigação farsesca por parte das autoridades militares, que tentou de fato atribuir o atentado às tais “organizações de esquerda”, coisa em que ninguém acreditou. Nas investigações e especulações posteriores, que não levaram a nenhuma condenação judicial, atribuiu-se a organização do atentado a uma conspiração de militares do Exército, incluindo pelo menos quatro generais e dois coronéis, e também a elementos da Polícia Militar do Rio de Janeiro.

O regime e o governo de João Figueiredo já padeciam de perda de apoio por parte de grande parte da classe média, para quem as sucessivas crises econômicas e inflacionárias transformaram o sonho da casa própria no pesadelo da prestação, e mesmo do empresariado, atraído pelos ventos neoliberais que já sopravam com a bandeira do anti-estatismo e de gordas privatizações. Deflagrou-se a campanha das Diretas-Já que, mesmo sem ter sucesso, solapou mais ainda a autoridade de Figueiredo e do regime; ao mesmo tempo, os militares latino-americanos iam perdendo apoio nos Estados Unidos, cujo establishment já se assustara com o acordo nuclear entre Brasil e Alemanha ao tempo de Geisel, e que perdeu de vez a confiança nos regimes fardados com a Guerra das Malvinas, em 1982.

A rebelião política se acentuou e a divisão dentro das hostes do regime cresceu. De surpresa, Paulo Maluf derrotou Mário Andreazza, que era o preferido de Figueiredo, na disputa pela candidatura do PDS, partido que sucedera a ARENA, à sucessão do presidente. Na sequência foi derrotado pela aliança do MBD com “rebeldes” daquele partido, que formaram a “Frente Liberal”, futuro PFL, DEM e hoje União Brasil, apoiando a chapa Tancredo Neves-José Sarney. Figueiredo recusou-se a entregar o cargo ao “traidor” Sarney – que assumiu a presidência devido à doença de Tancredo, que seria fatal. O último ditador saiu melancolicamente isolado do Palácio do Planalto.

No torvelinho que se seguiu ao atentado do Riocentro, houve a última defenestração importante dentro das hostes do regime. O atentado abalou externamente a autoridade de Figueiredo. Internamente, as disputas dentro da caserna, entre os que apoiavam o atentado e os que o condenavam, minaram a autoridade da eminência parda do governo e do regime: o general Golbery do Couto e Silva, que chegou a ser apelidado de “o Bruxo”.

Acabou renunciando à chefia da Casa Civil do governo em agosto de 1981. Curiosamente sua renúncia foi atribuída a uma desavença com Delfim Netto, que era ministro da Agricultura e secretário do Planejamento, sobre um aumento na cobrança de impostos. Assim Golbery, que ajudara a neutralizar as investidas do general Albuquerque Lima contra Delfim, viu-se, pelo menos na fachada, defenestrado por um confronto parecido. O dragão de que fora um dos principais criadores terminou também por cuspi-lo dos paços de poder, em cujos bastidores ele reinara, manejando-lhes os cordéis.

Flávio Aguiar, jornalista e escritor, é professor aposentado de literatura brasileira na USP. Autor, entre outros livros, de Crônicas do mundo ao revés (Boitempo).

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