Democracia Socialista

De golpes e contra-golpes na tradição brasileira – VI | Flávio Aguiar

Para conseguir criar o golpe hoje não basta a ladainha contra as urnas eletrônicas. Vai ser necessário criar algum tipo de caos violento e institucional

Imagem: Francesco Ungaro

“No Brasil, não basta vencer a eleição; é preciso ganhar a posse”: consta na tradição que esta frase, ouvida de Getúlio Vargas, ficou presa na memória de Tancredo Neves. Por causa dela, decidiu adiar a necessária consulta médica pelas constantes dores que sentia no abdômen depois de sua eleição pelo Colégio Eleitoral, em 15 de janeiro de 1985, quando derrotou Paulo Salim Maluf, o candidato do partido governista, o PDS – Partido Democrático e Social, que não era nem democrático nem social; era o partido que apoiava retroativa e progressivamente a ditadura.

Tancredo Neves, velha raposa e liberal da gema, não daqueles que subia no primeiro tanque que passava para dar um golpe, temia que seu possível afastamento por tratamento de saúde pudesse levar o país a uma nova convulsão, com os militares da “linha dura” recusando-se a aceitar na presidência, mesmo que provisório, o vice José Sarney, considerado por eles um “traidor” que se bandeara do partido do governo para a aliança com a oposição.

Durante o período declarado de sua enfermidade, de 15 de março, dia de sua programada posse, quando seu estado de saúde entrou em crise, até sua morte, em 21 de abril de 1985, o país parou. A comoção nacional foi imensa. Boatos, controvérsias, temores e ameaças de todos os tipos cortavam os ares e a mídia. Houve proclamações em defesa da “normalidade democrática”; chegou-se a lançar a especulação de que na verdade Tancredo Neves fora vítima de um atentado. Morto aquele que, sem assumir, foi aclamado num de seus obituários como “o melhor presidente do Brasil”, seus cortejos fúnebres, em São Paulo, onde faleceu, Brasília, Belo Horizonte e São João del-Rey, onde foi enterrado, concentraram multidões incalculáveis, zilhões de pessoas, só comparáveis, ressalvadas as proporções de época, aos funerais de Getúlio Vargas, em 1954.

José Sarney tomou posse, e os ânimos se acalmaram durante muito tempo, pelo menos na aparência. Os quartéis se aquietaram. Em 1989 realizou-se a primeira eleição direta para a presidência desde a de 1961, com 22 candidatos no primeiro turno.

O segundo foi disputado entre Fernando Collor e Luis Inácio Lula da Silva. Um velho estilo de manipulação golpista começou a se articular ali, suprindo a falta dos quartéis adormecidos. A mídia conservadora preferia Collor, proclamado o “Caçador de Marajás”. Entre o primeiro e o segundo turno houve vários tipos de intervenções na mídia, divulgando acusações supostamente comprometedoras sobre a vida pessoal de Lula, acusando-o de racismo e manipulando a edição de seu último debate com Collor. Às vésperas do segundo turno um grupo de esquerdoides aloprados sequestrou o empresário Abílio Diniz e houve a divulgação na mídia de que no local do sequestro “fora encontrado material do PT”, e por aí afora. Policiais obrigaram alguns dos detidos a vestir camisetas do partido para fotografá-los. A partir daí esta mídia se encarniçou com unhas, dentes e teclados, além das telas de televisão, contra o líder metalúrgico, empenho que mantém até hoje.

Fernando Collor venceu a eleição, e deu no que deu, como sabemos: Itamar Franco, o topetudo, empossado ao final de 1982, depois da renúncia do ex-Caçador de Marajás, caçado ele mesmo pela mídia que o ajudara a subir, além das incontáveis manifestações dos “caras-pintadas” pelas ruas. O país se acalmou novamente.

Detalhe suplementar, mas importante: no segundo turno, em 1989, Lula venceu apenas em três estados: Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro, onde ainda brilhava o lenço vermelho de Leonel Brizola, e Pernambuco, onde voltara a brilhar o dedo de Miguel Arraes, que no começo do ano seguinte deixaria o PMDB e ingressaria no PSB, Partido Socialista Brasileiro, que, no fim de contas, não era mais socialista, como fora seu antecessor de mesmo nome nos anos 40 e seguintes.

Daí abriu-se um período sui-generis na história política mundial: um longo confronto de 22 anos de duração (1994 – 2016) entre um partido que se dizia socialista e era na verdade social-democrata de esquerda, o PT, e outro partido, que se dizia social-democrata e era na verdade neoliberal de direita, o PSDB. Entre eles navegava, garantido-lhes a governabilidade, um amálgama de partidos com raro apetite pelas oportunidades, cujas expressões mais conspícuas eram o PFL, Partido da Frente Liberal, reunindo liberais nada liberais, que nesta época acabrestava sobretudo seus currais eleitorais no Nordeste, fiel aliado do PSDB; o PMDB, Partido do Movimento Democrático Brasileiro, que, sem ser mais um movimento nem democrático, detinha o maior número de cargos políticos no território nacional, e o PDS, Partido Democrático Social, que nada tinha de democrático, muito menos de social, e que reunia os remanescentes da antiga ARENA, Aliança Renovadora Nacional, que não fora renovadora, que não haviam migrado para o PFL, além do posterior PP, Partido Progressista, que era tudo, menos progressista. Havia exceções ao fisiologismo, é claro, e havia outros partidos de expressão, como o PDT, de Leonel Brizola, Partido Democrático Trabalhista, que democraticamente privilegiava sempre o velho e grande caudilho rio-grandense, e o PSB, cujo nome já comentei, ao lado de muitos outros de ocasião.

Durante os governos do PSDB, liderado por FHC, os ânimos golpistas da mídia e fora dela se acalmaram. Só voltaram a se assanhar com a vitória de Lula e do PT em 2002. Porém o estilo golpista mudara.

Aqui se faz necessário uma excursão internacional. É voz comum que os golpes parlamentares e judiciais começaram com o desferido contra o presidente Manuel Zelaya, de Honduras, deposto em 2009, preso pelos militares e expulso do país, depois de várias manobras contra ele nos tribunais superiores e no Parlamento. Não é verdade. O que embasa esta crença é o preconceito de que golpes de Estado são uma exclusividade de países “atrasados” do Terceiro Mundo.

O primeiro golpe de Estado judicial foi dado na matriz de quase todos os golpes latino-americanos, os Estados Unidos, na eleição de 2000, quando o republicano G. W. Bush Filho ganhou a presidência contra o democrata Al Gore. O que decidiu a eleição de Bush Filho, no complicado e antidemocrático sistema eleitoral norte-americano, foram os 25 votos da Flórida no Colégio de Eleitores. Acontece que a contagem de votos neste estado foi contestada por Al Gore, devido a manobras que excluíram da apuração uma série de urnas provenientes dos bairros negros, cuja população apoiava maciçamente o candidato do Partido Democrata.

A manipulação foi tão escandalosa que o Tribunal Superior da Flórida autorizou uma recontagem. Os republicanos apelaram, e o caso foi parar na Suprema Corte, onde a maioria dos juízes pertencia ao campo conservador e favorecia Bush Filho. Depois de uma série de manobras protelatórias e vexatórias, a Suprema Corte decidiu, por 5 votos contra 4, suspender a recontagem, entregando assim, de bandeja, os 25 votos do estado no Colégio Eleitoral para a candidatura de George Walker Bush.

Este foi o golpe número zero que acendeu as luzes para o novo estilo de derrubada de governos incômodos e retirada de cena de candidaturas indesejáveis. Além de Zelaya, em Honduras, este estilo com a extensão parlamentar atingiu Fernando Lugo, do Paraguai, em 2012, Dilma Rousseff, no Brasil, em 2016, e a candidatura de Lula em 2018. Lula foi barrado depois de dois (dentre vários colaterais) processos escandalosos que tentaram apagar o PT da cena política brasileira.

Primeiro, aconteceu o do chamado Mensalão, a partir de 2004/2005 que, sem provas, prejudicou vários dirigentes petistas e outros políticos, inclusive o denunciante Roberto Jefferson, deputado pelo Partido Trabalhista Brasileiro, PTB (que nada mais tinha de trabalhista). Depois veio o escândalo da Lava Jato, a partir de 2014, que levou Lula à prisão e ao “impeachment preventivo” em 2018, impedindo que ele concorresse à presidência, quando, provavelmente, derrotaria Jair Bolsonaro. Foi a primeira vez em que um possível futuro presidente sofreu um impeachment antes mesmo de se candidatar, ressoando a primeira linha da famosa frase de Carlos Lacerda, em 1950: “o senhor Getúlio Vargas não deve ser candidato…”.

Ambos os processos, o do Mensalão e o da Lava Jato, tiveram ampla cobertura favorável da mídia golpista, e encontraram apoio parlamentar e também internacional. A Lava-Jato foi premiada pela organização Transparency International, que tem sede em Berlim; e hoje está suficientemente comprovado que ela foi industriada a partir de organizações norte-americanas e também do seu complexo de inteligência e informação. Além disto, ela violou todos os princípios mais básicos de um sistema judiciário decente. Dentre outros expedientes ilegais, induziu as “delações premiadas”, fez grampos telefônicos ilegais, divulgando-os também ilegalmente e criou um sistema promíscuo entre procuradores, juízes e testemunhas. Escrevi, com outros brasileiros, para a Transparency, cobrando a anulação do prêmio. Deram uma resposta protocolar e mais nada. Para mim, sua credibilidade se reduziu a zero.

Em 2019 um novo estilo de golpe foi usado na América Latina, pelo menos na história recente. Na Bolívia, um movimento direitista, apoiado pela polícia e por forças para-militares, conseguiu depor o presidente Evo Morales, contando, primeiro, com a passividade das Forças Armadas, e depois com sua colaboração pró-ativa, “sugerindo” ou “pedindo” que ele renunciasse. Evo assim procedeu, e para salvar a sua pele deixou o país. O golpe acabou derrotado na eleição seguinte, quando o partido de Evo voltou ao poder. Hoje seus próceres estão foragidos ou detidos, inclusive a “presidenta” golpista autonomeada, Jeanine Añez. O golpe teve apoio da OEA.

No Brasil de hoje as movimentações pró-golpistas por parte do atual usurpador do Palácio do Planalto combinam características dos diferentes golpes de estado no Brasil e no exterior. Como a UDN e Lacerda, em 1955, agitam a bandeira da desconfiança em relação ao sistema eleitoral, levantando a possibilidade de supostas fraudes e pedem a intervenção militar como “fiscal” do processo. A diferença é que Lacerda era da oposição, e hoje quem prega a possibilidade do golpe age a partir do governo. Como fizeram em 2018, seus partidários mobilizam uma intensa presença nas redes sociais, com fake news e calúnias de toda espécie.

Embora de momento não tenham apoio da mídia conservadora, contam com o antipetismo ou antilulismo renitente desta, bem como de parte do empresariado e do agronegócio. A bandeira anticorrupção está enfraquecida, pela anulação dos processos contra Lula, a demonstração da parcialidade da Lava-Jato, e os escândalos do governo atual, sendo o mais grave até o momento o da corrupção no MEC e o maior deles o de um suposto governante que não governa, só se preocupa em demolir o que existe, em passear de moto, jet-ski ou lancha e em promover gafes internacionais.

A sempre presente bandeira anticomunista continua sendo agitada, mas hoje está meio em frangalhos, a não ser para fanáticos. O movimento golpista mobiliza motivos religiosos como em 1964, embora com raízes distintas das daquele golpe, que era fortemente apoiado na hierarquia católica. Desta vez mobiliza a frente evangélica pentecostal, hoje sob suspeita devido ao escândalo da corrupção a partir do MEC. Mobiliza ainda todos os preconceitos mais vexatórios: misoginia, racismo, homofobia, desprezo pelos povos indígenas, descaso agressivo com o meio ambiente.

Como na Bolívia, em 2019, projeta uma ação para-militar, com apoio miliciano e em clubes de tiro e caça, buscando a mobilização das polícias estaduais, e até o momento tenta ganhar no grito o apoio ou a passividade das Forças Armadas. Entretanto, ao contrário de 1964, não tem qualquer apoio significativo no plano internacional. Pelo contrário, o governo norte-americano já deu a entender que desta vez não apoiaria um golpe; líderes da social-democracia europeia idem; até mesmo a direita e a extrema direita da Europa vêm se distanciando do golpista-mór.

É possível que os golpistas pretendam imitar a tentativa dos invasores do Capitólio, em 6 de janeiro de 2021, que, estimulados por Donald Trump, tentaram impedir a posse de Joe Biden. Há o agravante de que no Brasil os adeptos deste tipo de ação parecem ser mais ousados e mais fanatizados do que os invasores do Capitólio, cuja ação, se teve momentos dramáticos a até trágicos, terminou como um grande desfile com atitudes e fantasias um tanto carnavalescas. As recentes agressões contra manifestações pró-Lula sugerem a possibilidade de um atentado mais grave, o que não pode ser descartado. Ainda mais depois do atentado contra o petista de Foz do Iguaçu, que redundou em sua morte e do agressor.

No caso brasileiro, permanece uma sombra por detrás de tudo. É a do jogo turvo e soturno dentro das Forças Armadas. Olhando a longo termo, pode-se detectar três tendências muito marcantes neste jogo. Primeiro, a contínua neutralização/expulsão de tendências “à esquerda” dentro delas. Segundo, uma tensão entre “legalistas” e “golpistas”, com ganhos e perdas para ambos os lados em diversos momentos. Terceiro, uma força que cria um amálgama capaz de manter a corporação unida em meio às tensões: quando Deodoro deu o golpe republicano (para ele mesmo uma surpresa), em 1889, inoculou no DNA delas a crença de que estavam se tornando o novo “Poder Moderador” da nação e do jogo político, como era o Imperador que depuseram. Este DNA está mais que vivo e permanece ainda hoje como um fator de coesão corporativa dentro delas.

Uma lição contundente dos golpes brasileiros da Segunda Guerra para cá é que num país de tamanho porte como o nosso, combinando complexidade extrema com fragmentação política, dentro de uma conspiração proliferam várias conspirações. Um efeito disto é que os golpes tendem a abrir a porteira do imprevisível, devorando seus corifeus. O golpe de 1964 devorou seu corifeu maior, Carlos Lacerda, e no apagar das luzes expeliu sua mistura de Rasputin e Richelieu, Golbery. A tentativa do Mensalão abateu parte da cúpula petista, mas devorou também seu oficiante e coroinha, Roberto Jefferson. Não favoreceu em nada seu sumo-sacerdote, Joaquim Barbosa. O desferido contra Dilma engoliu seu principal executante, Eduardo Cunha. Por fim, o golpe preventivo contra Lula em 2018 levou às cordas o juiz que o organizou e presidiu, Sérgio Moro.

Dentre os roteiros que vêm se desenhando nas polêmicas a respeito, um que é pouco explorado é o do usurpador do Palácio do Planalto desfechá-lo e ser devorado por ele. Para conseguir criar o golpe não basta a ladainha contra as urnas eletrônicas. Vai ser necessário criar algum tipo de caos violento e institucional. Não é de todo impossível que a partir do caos instaurado uma conspiração fardada pretenda assumir o controle da situação, neutralizando as esquerdas e os milicianos ao mesmo tempo, em nome de “chamar novas eleições” dentro de algum prazo. Esse roteiro tem enormes dificuldades, qual seja, de pôr no limbo todo o sistema eleitoral brasileiro, não apenas expelir dele os “indesejáveis”.

Para ser avalizado no exterior, qualquer que seja o tipo de golpe, não basta a cumplicidade de figuras da extrema-direita europeia, nem mesmo um eventual apoio na sempre solícita direção da OEA; seria necessário um Donald Trump ou equivalente na Casa Branca; e até outubro deste ano ou mesmo janeiro de 2023 isto não estará disponível no mercado geopolítico.

Do lado antigolpe a melhor perspectiva que vem se esboçando é a de uma vitória de goleada da frente Lula/Alckmin, que consiga trazer por detrás suficiente apoio nos estados e no futuro Congresso, seja por convicção, seja por conveniências; que fortaleça a ala legalista das Forças Armadas porque uma coisa é certa: sem o apoio destas, golpe nenhum vai se sustentar. Pode causar estragos e cometer desatinos, mas não se mantém. E quando escrevo isto, quero dizer isto mesmo: Forças Armadas. Não se trata apenas de polícias ou milícias, fardadas ou não.

O que sairá de tudo isto? Repito: quem souber com certeza a resposta, das duas uma, ou tem uma bola de cristal muito poderosa, ou está chegando diretamente do futuro.

 

Flávio Aguiar, jornalista e escritor, é professor aposentado de literatura brasileira na USP. Autor, entre outros livros, de Crônicas do mundo ao revés (Boitempo).