A tradição golpista brasileira, seus muitos sucessos e poucos fracassos, nos ajuda a definir linhas de comportamento diante da ameaça atual.
Muito se escreve e fala no Brasil de hoje sobre a perspectiva do usurpador do Palácio do Planalto ensaiar um golpe de estado antes, durante ou depois das eleições de outubro, diante da perspectiva de derrota frente a Lula. As especulações vão desde os que vêm nisto não mais do que uma fanfarronada, até os que veem a tentativa como bem-sucedida de antemão, passando pelos que tem a certeza de que o usurpador tentará o golpe mas não têm por garantido o seu sucesso.
As variantes para as avaliações abrangem a posição dos comandantes militares, o comportamento do baixo clero das Forças Armadas, dos militares de pijama, das polícias militares estaduais, dos clubes de tiro, das milícias para-policiais e da bandidagem, sobretudo no Rio de Janeiro, e dos fanáticos seguidores do eventual golpista.
Como fatores de contragolpe, os argumentos acenam com a popularidade do governo em queda livre, da falta de apoio por parte de setores do empresariado, a incerteza quanto ao comportamento geral das Forças Armadas, a total falta de apoio internacional, sendo que uma possível apatia por parte de vastos segmentos da população conta como uma faca de dois gumes, podendo ser elemento favorável ou contrário ao golpe. O evidente anti-lulismo da mídia mainstream conta como elemento a favor do sucesso do golpe, embora esta mesma mídia demonstre ceticismo e medo diante do monstrengo golpista que ajudou a criar.
Penso que uma vista d’olhos sobre a nossa tradição golpista, seus muitos sucessos e poucos fracassos, possa nos ajudar a definir linhas de comportamento diante da ameaça, mesmo que estas linhas sejam diferentes, de acordo com as múltiplas preferências possíveis. Não prometo um levantamento completo, pois não sou historiador. Pretendo resenhar o que aprendi estudando golpes de estado ou vivenciando-os a vivo e a cores, ou na pele.
Logo que o Brasil viu-se independente no controverso 7 de setembro de 1822, houve três grandes movimentos golpistas na sede da Corte, o Rio de Janeiro. Lembro ainda que se pode discutir se o “lance” de D. Pedro I foi um golpe ou não. Foi, com certeza, um “golpe de mão” que manteve o Império que ali se criava como uma espécie de condomínio dos Bragança. Em carta dirigida a seu pai, de 22 de setembro de 1822, D. Pedro declara ao progenitor que não vai mais implementar os decretos das – e abro aspas – “facciosas, horrorosas, maquiavélicas, desorganizadoras, hediondas e pestilentas Cortes” de Portugal. Consumava-se – digamos assim – o golpe da Independência.
Daí sucederam-se, em meio à enorme confusão política instaurada no país, aquela sucessão maior de três golpes de estado. O primeiro, em 1823, foi clássico: Pedro I mandou seu aparato militar cercar, tomar e fechar o prédio da Assembleia Constituinte, e baixou a Constituição por decreto no ano seguinte. A Assembleia, completamente rachada, senão fragmentada, não teve como opor resistência, e Pedro I pode, com uma consulta ao Conselho de Estado e depois uma penada, outorgar a primeira Constituição ao país.
Depois de 1831, quando o Imperador renunciou, seguiu-se o conturbado período regencial, com revoltas regionais de norte a sul, interrompido pelo chamado “Golpe da Maioridade”. Neste, em junho/julho de 1840, o Parlamento driblou um dos quesitos da Constituição de 1824 e proclamou a maioridade de D. Pedro II, aos 13 anos. Pelo que se sabe, este foi um golpe tramado pelos membros do Partido Liberal para alijar do poder o Regente Conservador, Araújo Lima. Este golpe desfrutou de alguma popularidade, como se vê pela quadrinha então cantada nas ruas e praças da capital: “Queremos D. Pedro II/Embora não tenha idade/A nação dispensa a lei/E viva a Maioridade”… Tudo bem, mas aquele “dispensa a lei” calaria fundo na tradição brasileira.
Constituiu-se um ministério Liberal, que acabou deposto pelo jovem Imperador em 1842, em meio a acusações de fraudes eleitorais, mas basicamente por pressão dos Conservadores, que assim voltavam ao poder impondo uma pauta centralizadora na Corte. Isto levou os Liberais à revolta armada em São Paulo e em Minas Gerais. Estes, depois de alguns sucessos iniciais, foram derrotados pelo Exército Imperial comandado por uma figura que se tornaria chave na política dos Conservadores durante o Segundo Reinado: o já Barão, futuro Conde, Marquês e Duque de Caxias. Os revoltosos de São Paulo tentaram fazer uma ponte com os do Rio Grande do Sul, mas a Farroupilha já estava em declínio, o Exército e a Marinha Imperiais dominavam respectivamente o planalto intermediário e toda a costa até a barra da Lagoa dos Patos, e a ligação não se estabeleceu.
Caxias foi elemento chave num outro episódio da política do Segundo Reinado que teve fumaças de um golpe de estado, embora seguisse as regras das leis de então. Em 1866, quando já rolava a Guerra do Paraguai, o gabinete, que era Liberal, nomeou Caxias comandante geral das forças brasileiras. Em 1868 Caxias seria nomeado comandante geral das “forças aliadas”, que incluíam também argentinos e uruguaios. Fazendo pesquisas sobre a biografia de José de Alencar, como Caxias também ligado ao Partido Conservador, encontrei na imprensa da época sinais de que neste momento Caxias pressionara o Imperador, exigindo, para manter-se no cargo de comandante geral da guerra, a destituição do gabinete liberal, com que se desentendera, e sua substituição por um gabinete conservador, chefiado pelo Visconde de Itaboraí, do qual Alencar foi ministro da Justiça, com uma atuação muito controversa. O episódio sinaliza a influência militar na política da Corte, que cresceria até o golpe seguinte, o da Proclamação da República, em novembro de 1889.
Este foi dos golpes mais curiosos, controversos e polêmicos da nossa história. Aparentemente, quem o comandou, o Marechal Deodoro, sabia que estava dando um golpe, mas não sabia exatamente, que golpe estava dando. Febril, estava acamado, e deixou o leito a pedido de oficiais subalternos, entre eles o Major Frederico Sólon de Sampaio Ribeiro, que depois viria ser sogro de Euclides da Cunha, para comandar a tropa que agitava as ruas do Rio de Janeiro.
Vários descontentamentos convergiam naquela circunstância. O Imperador e a Princesa Isabel haviam perdido seu último bastião significativo, o apoio dos oligarcas latifundiários do Rio, de São Paulo, de Minas e alhures, graças à Lei Áurea, que abolira o regime escravista sem a reclamada indenização financeira aos proprietários de escravos. A Princesa, católica ferrenha, considerava esta indenização algo indecoroso. Os militares estavam descontentes e não se sentiam prestigiados, a dívida pública subia, e havia confrontos sérios no Parlamento. O primeiro-ministro, o liberal Visconde de Ouro Preto, apresentara projetos de reformas políticas que descentralizavam o poder e estabeleciam que os senadores não seriam mais vitalícios, entre outras que também desagradaram profundamente os conservadores.
Instado pelos oficiais subalternos republicanos, Deodoro concordou em assumir o comando da tropa mobilizada e reunida no Campo de Santana, futura praça da República. Deodoro achava que aquela agitação se destinava a depor o gabinete liberal de Ouro Preto; mas os acontecimentos se precipitaram e a pressão republicana se avolumou. A versão hoje corrente diz que Deodoro concordou em assinar o decreto que depunha seu amigo, o Imperador, ao tomar conhecimento de que este nomearia, para substituir Ouro Preto, seu desafeto, inimigo político e diz-se que até rival amoroso, o político gaúcho liberal Gaspar da Silveira Martins, conhecido como “O Tribuno”.
Reza uma tradição hoje em declínio que a Proclamação da República não passou de uma quartelada pacífica e incruenta, que nada mudou na estrutura do poder político de então. Ficou famosa a frase do jornalista Aristides Lobo, publicada em artigo de 18 de novembro: “o povo assistiu aquilo bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significava; muitos acreditaram seriamente estar vendo uma parada”. Outra imagem de fama é a do romance Esaú e Jacó, de Machado de Assis: naqueles conturbados dias, o personagem Custódio hesita entre chamar sua Confeitaria de “do Império” ou “da República”; por fim, decide-se pelo nome menos comprometedor de “Confeitaria do governo”…
São imagens marcantes; mas cuidado. Descontextualizadas daqueles dias de novembro de 1889, em que o Imperador decidiu não resistir, bem como o comandante da guarda do Paço, Floriano Peixoto, não obedeceu às ordens de resistência que lhe foram dadas pelo próprio Ouro Preto, podem levar à compreensão equivocada de que tudo foram flores na Proclamação. Com esta, se o poder não mudou de classe, mudou de mãos, e de patas de cavalo.
Ela tem na sua contabilidade algumas das guerras civis mais sangrentas da história brasileira: a Federalista, no Rio Grande do Sul, entre 1893 e 1895, as duas Revoltas da Armada, no Rio de Janeiros, a primeira em 1891 – quando em novo golpe de estado Deodoro mandou fechar o Congresso – e em 1893/1894, com alguns dos revoltosos dirigindo-se ao sul do país; em Nossa Senhora do Desterro, hoje Florianópolis, a junção de Federalistas do Rio Grande do Sul e de revoltosos da Armada provocou uma das mais sangrentas repressões da nossa história, comandada pelo Coronel Moreira César; finalmente, pode-se também ligar à efervescência neorrepublicana o terrível episódio da Guerra de Canudos, em 1897, onde Moreira César voltaria a aparecer, desta vez tragicamente.
Ainda antes, Floriano Peixoto prorrogou o próprio mandato na presidência assumida depois da renúncia de Deodoro em 1891, devido à primeira Revolta da Armada, quando a Constituição mandava que houvesse novas eleições, e governou com ajuda do estado de sítio. Assinale-se também que as Revoltas da Armada, na agora Capital Federal, assinalaram a primeira intervenção direta, embora discreta, dos Estados Unidos na política brasileira, em apoio a Floriano Peixoto.
E assim, ainda tendo nos ouvidos o trote dos cavalos, o zunido das balas, o troar dos canhões, nas narinas aquela mistura do cheiro acre da pólvora com o odor do sangue, adentramos o promissor Século XX, querendo construir a imagem de que o Brasil era um paraíso pacífico e ordeiro![1]
Flávio Aguiar, jornalista e escritor, é professor aposentado de literatura brasileira na USP. Autor, entre outros livros, de Crônicas do mundo ao revés (Boitempo).
Nota do autor
[1] Este é o primeiro artigo de uma série de seis. Como já disse muitas vezes antes, não sou historiador, nem cientista social. Sou escritor e fui professor de Literatura durante 38 anos. Não espere hipóteses, teses e conclusões objetivas nem definitivas, muito menos estatísticas e enquadramentos teóricos. Esta série é feita do resultado de leituras esparsas, embora não dispersivas nem ao acaso, muitas vezes motivadas por meus estudos literários; de histórias familiares e reminiscências pessoais, além de observações e opiniões de minha inteira responsabilidade.