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De uma telinha à outra – a política na era da comunicação eletrônica | Reginaldo Moraes

Gary Edgerton lembra que a televisão penetrou nos lares americanos em velocidade nunca vista. O rádio tinha levado 25 anos para atingir 35 milhões de domicílios, o automóvel precisara de 50 anos, o telefone, de 18. A TV chegou a esse ponto em 10 anos. E espalhou seu consumo como o de um vício indomável. No início dos anos 2000, o americano típico ficava diante da TV umas 4 horas diárias, mesmo com a concorrência das outras mídias, que já decolavam. [The Columbia history of American television / Gary R. Edgerton, 2007, Columbia University Press]

Provavelmente ninguém compreendeu melhor o potencial político da TV do que John F. Kennedy, o presidente-galã dos anos 1960. Em 1959, ainda como senador, ele escreveu um artigo no TV Guide, evidenciando essa comprensão: “A Force That Has Changed the Political Scene”.

O texto constatava alguns efeitos, mas, naquela altura, era uma grande antecipação de fatos. Em 26/09/1960, logo depois dessa profecia, aconteceria a revelação da palavra do Senhor. Naquela noite ocorria a primeira transmissão de um debate eleitoral para a presidência. O senador Kennedy, relativamente desconhecido, enfrentava o vice-presidente Richard Nixon, velha raposa republicana.

Kennedy, atento, aproveitou o dia anterior para estudar a forma do debate, o cenário, o ritmo e a duração das perguntas. Planejou o modo de se vestir, o domínio da câmera, a forma de se dirigir ao espectador, não ao oponente. Nixon não fez nada disso.

No dia seguinte, as avaliações do debate mostravam um estranho contraste. Aqueles que ouviram pelo rádio davam a vitória a Nixon. Os que viram a TV apontavam Kennedy, que se transformaria na estrela que sobe. O problema, para Nixon, era a mudança do contexto. A TV começara a virar objeto de consumo no final dos anos 1940. Pelo censo de 1950, 10% dos domicílios tinham um aparelho. Mas esse número explodira para 88% em 1960. O debate Nixon-Kennedy mostrava a força de uma nova retórica. A TV impunha sua forma de expor as mensagens e imagens, seu modo próprio de argumentar e persuadir.

A TV assumia o comando das casas, redesenhava sua arquitetura. E redesenhava as pessoas, claro.

Jeffrey Scheuer lembrou que a televisão mudou o mundo, no meio do século, quase como a bomba atômica realinhou os poderes mundiais. Só que a TV teve um impacto mais severo na vida diária. O fato de o mundo ser “maior” e menos diretamente presenciado faz com que a mediação da mídia seja ainda mais relevante do que na era do jornal impresso, ou mesmo do rádio. A partir daí, diz Scheuer, “A televisão não apenas afeta a sociedade; em grande medida, ela é a sociedade. Não há mais politica simplesmente local; a maior parte da politica e a maior parte da cultura popular são televisuais” [The sound bite society : television and the American mind / by Jeffrey Scheuer, 1999, Four Walls Eight Windows]

E a televisão se torna cada vez mais omnipresente. Cada vez mais, as pessoas veem mais TV do que leem livros. Ou ouvem rádio. O rádio tem a vantagem de poder ser usufruído “no meio” de outras atividades – é difícil ler um livro ou ver TV e dirigir um caminhão ou operar um torno mecânico. Mas a TV se dirige aos primatas, animais visuais por excelência. Junta imagem e fala. Expande-se pelas salas de espera dos consultórios, hospitais e laboratórios. Nos salões de beleza e barbearias. Pelos bares e restaurantes, pelas brechas da vida social, enfim. Silenciando (e mesmo censurando) as conversas entre os indivíduos. Monopolizando o olhar e anestesiando o pensamento. O “espelho do mundo” se torna, em grande medida, o próprio mundo.

A TV ensina modos de viver – ali se apreende a vestir, a comer, a fumar, a beijar e fazer amor. Os tiques da fala, as preferencias morais – o mocinho, o bandido, o bem, o mal.

Aqueles que souberem melhor utilizá-la – os Kennedys da estória – sairão com vantagem. E aqueles que tiverem nas mãos o “espelho” terão como pré-selecionar os parâmetros dos comportamentos, isto é, como direcionar as “escolhas” dos espectadores, consumidores, eleitores. Uma dúzia de grandes corporações detêm esse poder. Não apenas controlam a pré-formação de sentimentos. Como são empresas e vivem dentro de um quadro de valores (a compra e venda), esse sentimento elementar, o mundo como mercado, é o primeiro a ser inoculado.

A idade áurea da TV – centralizando e modelando as eleições, inflacionando os seus custos – durou até 2000, mais ou menos. Nesse momento a Internet civil (e comercial) já fazia cinco anos, já se massificara. Em 2004, Howard Dean, um médico que governava o estado de Vermont, lançou seu nome como pré-candidato democrata à presidência. Não conseguiu a indicação da máquina do partido, mas mostrou claramente o potencial da nova mídia. A velha mídia reconheceu o fato. Veja, por exemplo: How the Internet Invented Howard Dean, no Wired de 01/01/2004.

Mas foi em 2008 que isso ficou mais evidente, com a inesperada vitória de Barak Obama sobre Hillary Clinton, nas primárias do Partido Democrata, e sobre John MacCain, nas eleições presidenciais.

Kennedy era o cara que percebera a emergência da TV como elemento socializador e condutor dos novos comportamentos. Obama vivia outro momento. A garotada que nascera nos anos 1990 já entrou na escola praticamente junto com a Internet. Conheceu a interação virtual do Facebook (2004) quando ingressava no ensino médio. E sorveu a “biblioteca” do YouTube (2005). Acostumou-se à mensagem curta do Twitter (2006). E hoje faz “reuniões” pelo WhatsApp (2009).

A campanha de Trump pelo Twitter é um capítulo forte dessa trama. Que continua, com um governo cujo “diário oficial” é a mensagem-curta (e grossa) do chefe. Para quem quer entender o mundo (e/ou transformá-lo) é urgente compreender as contradições, potenciais e problemas desse novo ambiente de formatação de corações e mentes. A esfinge cobra que se a decifre.

Reginaldo Moraes é professor da Unicamp, pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-Ineu) e colaborador da Fundação Perseu Abramo.

Publicado originalmente no Jornal da Unicamp.

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