Hoje, 29 de janeiro, Dia da Visibilidade Trans, celebramos a coragem, resistência e diversidade das pessoas trans, reafirmando o compromisso com a luta por uma sociedade mais justa e igualitária. Há exatos 21 anos, em 2004, um conjunto de travestis e pessoas trans organizaram um ato nacional para o lançamento da campanha “Travesti e Respeito”, no Congresso Nacional em Brasília. Tal ato se tornou um marco na história do movimento contra a transfobia, marcando a data como o Dia Nacional da Visibilidade Trans, com o objetivo de refletir e denunciar as condições estruturais de desigualdades sobre essas identidades, mas também de visibilizar a resistência e contribuições das pessoas trans travestis, transexuais (homens e mulheres trans) e não-binárias (pessoas que não se percebem como pertencentes a um gênero exclusivamente). O movimento LGBTQIAPN+, em todo o Brasil, utiliza a data, desde então, para honrar as trajetórias da comunidade trans, reconhecer suas conquistas e destacar os desafios ainda enfrentados por essa população, especialmente quando intersectam com as questões raciais.
Como pessoa negra e não-binária, a frente da Coordenação LGBTQIAPN+ Estadual do Movimento Negro Unificado (MNU), ainda preciso reafirmar em meio aos movimentos LGBTQIAPN+ e Negro, que a luta contra a transfobia não pode ser dissociada da luta contra o racismo, e que a recíproca é verdadeira. As pessoas trans negras enfrentam, simultaneamente, um regime de violência baseado no gênero e na cor da pele, o que as coloca em uma situação de vulnerabilidade extrema.
Um conceito importante para compreendermos isso é o do Racismo Genderizado. Parafraseando a construção do conceito a partir de Grada Kilomba, as pessoas trans têm sido excluídas do discurso das agendas da luta antirracista e antipatriarcal: um debate sobre o racismo na qual o sujeito é ora o homem negro e a mulher negra cis; um discurso genderizado no qual o sujeito é a mulher branca cis; e um discurso de classe onde as identidades raciais e de gênero não tem lugar. Nós sequer ocupamos algum lugar dentro da teoria. Uso aqui então o conceito para se referir à opressão racial sofrida por pessoas que não se assujeitam à cisheteronormatividade.
Assim, quero ousar neste texto, antes de mais nada, reverenciando quem construiu a luta antes de mim e que conduziu e ORIentou minha trajetória de Luta. Dedico este dia à Thina Rodrigues, mulher trans negra cearense que resistiu à ditadura militar se tornando referência na luta e proteção dos direitos e da dignidade LGBTQIAPN+, em geral, e de travestis e transexuais em específico, vindo a fundar a ATRAC – Associação de Travestis e Transexuais do Ceará.
Apesar dos anos que nos diferenciam, eu tive a honra de conhecer Thina em vida e cuja vida foi tocada por sua trajetória. Quando estudei Licenciatura em Matemática no IFCE, fui da Diretoria LGBT do Diretório Central Estudantil José Montenegro de Lima (DCE JML) quando organizei o I Encontro LGBT do IFCE que teve como tema “Eu tombo, eu lacro, eu milito. Tá pensando que LGBT é bagunça?”. O ano era 2017 e o campus Fortaleza nunca havia organizado ou recebido um evento desse porte e para esse público.
Num ambiente historicamente conservador, como a antiga Escola Técnica, nosso intuito era unir estudantes dessas identidades para pensarmos formas de garantir, ampliar direitos e oportunidades dentro da instituição, e Thina foi a convidada principal desse evento. Ela não apenas nos abrilhantou com sua presença, mas trouxe ensinamentos e intervenções politicas riquísimas fundamentais para que hoje eu ocupasse esse espaço na luta antirracista, dentro da coordenacao estadual do MNU Ceará.
Thina resistiu à ditadura, mas sua trajetória foi interrompida pela Covid-19. Foi ceifada, pois sua morte entra na conta da irresponsabilidade de um governo negacionista, que negligenciou o distanciamento social e o uso de máscaras, assim como atrasou vacinas que poderiam ter poupado a vida de milhões de pessoas, dentre elas, Thina Rodrigues.
O Movimento Negro Unificado, a partir da sua coordenadoria LGBT do MNU Ceará e em parceria com as diversas frentes da luta LGBTQIAPN+, reafirma que a liberdade e os direitos das pessoas trans, especialmente das trans negras, são inegociáveis. Assim, falar de visibilidade é também falar de resistência e de denúncia. Não podemos permitir que mais vidas sejam ceifadas pela transfobia e pelo racismo. O Brasil lidera o ranking mundial de assassinatos de pessoas trans pelo 17º ano consecutivo, e é também o país onde a discriminação racial continua a permear todas as esferas da vida social. O Ceará lidera o ranking dos estados do Nordeste que mais mata a população trans, o terceiro de todo o país.
Um dado alarmante revelado pela ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) mostrou que 78% das pessoas trans assassinadas no Brasil no ano de 2024 eram negras, um reflexo brutal de como o racismo e a transfobia operam juntos, tornando a vida das pessoas trans negras ainda mais ameaçada. A maior parte desses casos, conforme dossiê a ser publicizado no site da organização, a maior parte desses casos, cerca de 38%, aconteceram no Nordeste, região brasileira que desde 2022 vem sendo a que mais registra mortes contra a nossa população trans. Esse dado exige de nós uma reflexão urgente, mas principalmente, ações contundentes que possam proteger as nossas vidas. Precisamos de políticas públicas eficazes de proteção, educação e inclusão para as pessoas trans, em especial para as trans negras, que continuam a ser desproporcionalmente vítimas de violência, exclusão social e falta de acesso a direitos fundamentais. Precisamos garantir espaços seguros para que possam viver com dignidade, livre de medo e opressão.
Que este dia nos inspire a fortalecer a união entre as lutas antirracistas e de gênero, para que possamos construir uma sociedade onde todos e todas, independentemente de sua identidade de gênero e cor de pele, possam existir de forma plena, digna e livre de violência.
Que nossas vidas trans sigam vivas, livres e com direitos!
Matheus Santos possui formação em Letras pela Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB/CE) e atualmente é discente no Mestrado Interdisciplinar em História e Letras pela Universidade Estadual do Ceará (FECLESC-UECE/Quixadá). Está na Coordenadoria LGBTQIAPN+ do Movimento Negro Unificado – seção Ceará e compõe o Grupo de Pesquisa LeAfro.
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