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Dialética dos direitos de cidadania | Luiz Marques

A última revolta antes da declaração de Independência do Brasil aconteceu em Pernambuco (1817), encabeçada por militares de alta patente, comerciantes, senhores de engenho e padres que se diziam patriotas. Inspirados na maçonaria, proclamaram uma república autônoma que unia Pernambuco e as capitanias da Paraíba e do Rio Grande do Norte. Sobre o escravismo, que durou 350 anos intermináveis, nenhuma palavra. Apesar do lapso, o historiador José Murilo de Carvalho avalia que, ali, surgiu nossa “nascente consciência de direitos sociais e políticos”. Por república, entendia o governo de povos livres em oposição ao absolutismo monárquico. Não acenava o futuro com ideias de igualdade.

Adeptos do golpismo recente também se denominaram “patriotas”. Não “cidadãos”, como na terminologia propagada na Revolução Francesa para designar a pertença ao Estado-nação. Acampados em Brasília, protagonizaram os atos descompensados de 12 de dezembro e 8 de janeiro, abdicando do conceito de cidadania ao vandalizar as sedes da governabilidade republicana. Acharam-se indivíduos de exceção perante as leis. Sua identidade aristocrática não se construiu em relação a um inimigo externo. Dirigiu-se ao inimigo interno, o povo que abraçou o princípio da democracia em defesa das instituições, nas eleições. O dedo acusador apontou para os judeus da ocasião: os sujeitos políticos (partidos de esquerda), regionais (nordestinos), étnicos (negros, indígenas), de gênero (mulheres), identitários (grupos LGBTQIA+) e do conhecimento (intelectuais, cientistas, artistas e jornalistas).

O movimento de visão messiânica teve forte ingrediente ideológico, para ocultar o antinacionalismo econômico remanescente do colonialismo. Fenômeno reatualizado na vassalagem vira-lata a um imperialismo em erosão. Vide as privatizações condensadas no fatiamento da Petrobrás e do pré-sal. A peculiaridade da extrema-direita tropical foi a associação com a globalização do Consenso de Washington (1989), que retirou poderes da governança submissa de quem, de resto, não demonstrou decoro na função presidencial. Jogou fora qualquer veleidade desenvolvimentista de um mercado nacional de massas, com geração de emprego e renda, para amainar as desigualdades herdadas do longo ciclo de horrores. O antipatriotismo estrutural foi encoberto na estética verde-amarela das bandeiras, ao som de hinos marciais.

Os insurgentes atacaram os pilares constitucionais de amparo à esperança em um regime político, com justiça social e ambiental. O alvo do ódio não foi o rentismo financeiro, que controla a economia-mundo. O rebanho de manobra, por ignorar o nome do patrão ao qual servia, aliou-se ao opressor. Para curar a frustração com as promessas descumpridas do sistema democrático, propôs a instalação de um regime iliberal. Na confusão, fundiu a essência neofascista (Jair Bolsonaro), o neoliberalismo duro (Paulo Guedes) e o conservadorismo teocrático (Silas Malafaia, Edir Macedo). Pautas autoritárias, privatistas, de moral e costumes ensejaram o retrocesso e a volta ao mapa da fome, da ONU. A lógica de financeirização do Estado e os interesses do agronegócio somaram-se, então, ao predatório extrativismo de madeiras (nobres) e minerais (ouro, diamantes) da Amazônia, esgaçando a crise climática e o genocídio das comunidades originárias. Assim, a ultradireita fez da floresta uma refém do totalitarismo da mercadoria. Nisto, resumiu-se a distopia exterminadora. Danem-se os pobres; privilégios redobrados aos donos do dinheiro. La noblesse du dollar oblige.

Ao transformar as liberdades individuais em uma panaceia para os problemas do país, a reação obscurantista se fechou em um campo específico de direitos que abrangiam a vida, a propriedade, a segurança pessoal, manifestar o pensamento, organizar-se, ir e vir, e acessar informações alternativas – logo convertidas em passaporte para o negacionismo na pandemia, pela pulsão necropolítica do Palácio do Planalto. Com ênfase apenas nos “direitos civis”, os “direitos sociais” e os “direitos políticos” saíram pelos fundos; para lembrar o estudo clássico de T. H. Marshall sobre as três dimensões indispensáveis à cidadania. A aventura planejada pretendeu congelar as matrizes colonialista (racista) e patriarcal (sexista), junto com as hierarquias sociais da antiga tradição colonialista de dominação e subordinação. Deu com os burros n’água. O antídoto civilizatório à sociopatia do extremismo direitista está na resiliência por: a) mais direitos sociais – saúde, educação, segurança, trabalho, sociabilidade não discriminatória e; b) mais direitos políticos, com participação popular na elaboração coletiva de políticas públicas. Essa é a dialética dos direitos para o exercício efetivo de nossa citoyenneté.

Luiz Marques é Docente de Ciência Política na UFRGS, ex-Secretário de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul.

Artigo também publicado no jornal Zero Hora.

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