A defesa da descriminalização do aborto e a garantia de sua realização na rede de saúde pública exige ampla mobilização e firmeza na defesa dos direitos das mulheres.
Um dos elementos centrais da discriminação e opressão das mulheres é o controle sobre o seu corpo e sua sexualidade. Este controle se expressa e é exercido de várias formas. Algumas mais sutis e introjetadas no cotidiano das relações pessoais, no imaginário sobre a beleza e o corpo das mulheres, na identificação da maternidade como obrigatória; outras mais agressivas e explícitas, entre as quais se destaca a violência sexual, a recusa dos parceiros em aceitar o uso da camisinha, o tráfico de mulheres, a negação do direito de interromper uma gravidez indesejada.
O movimento de mulheres defende o direito das mulheres de decidir se querem ou não ter filhos, em que momento de sua vida e, portanto, além do acesso a métodos anticoncepcionais seguros, o direito a interromper a gravidez indesejada, como elementos indispensáveis para a sua autonomia e autodeterminação. Não é por acaso que o movimento de mulheres cresceu e ganhou força como um movimento massivo na segunda metade do século XX, quando, entre vários outros elementos, se desenvolveram métodos anticoncepcionais mais eficazes e de acesso mais fácil para as mulheres.
Uma estratégia recorrente na retórica dos conservadores para combater o direito ao aborto, é confundir a discussão argumentando que se defende o aborto como método anticoncepcional. O aborto não é e não pode ser considerado como método anticoncepcional, mas é o único recurso possível frente a uma gravidez indesejada. A não ser que se defenda que a maternidade é uma obrigação. Esta é a razão pela qual não cabe contrapor a descriminalização do aborto à defesa de uma política pública de direito e acesso à anticoncepção eficiente e segura para a saúde das mulheres, o que, com certeza, todas nós defendemos.
Em particular nos últimos 10 anos, a direita no Brasil e em outros países latino-americanos foi muito ofensiva, propondo, inclusive, projetos de lei visando introduzir empecilhos no texto Constitucional que pudessem barrar a discussão de mudanças na legislação penal, ou simplesmente propagandeando sua visão, através de propostas como a criação do dia do nascituro e outras iniciativas similares. E a esquerda, em parte pela fragilidade de seu compromisso com o feminismo, com a defesa da igualdade entre mulheres e homens, e, em parte pelas relações com setores da Igreja, na maioria das vezes, se omitiu ou se colocou de maneira tímida na discussão.
É importante enfatizar que é na luta pelo direito ao aborto que se expressa a maior resistência por parte da direita, e é aonde vem à tona a incoerência da posição de vários dos setores identificados com a esquerda, frente a importância da autodeterminação das mulheres. E, sem dúvida, é onde se concentra a maior hipocrisia na sociedade. Fala-se em defesa da vida, mas a única vida que não importa é a das mulheres. É no enfrentamento para avançar a consciência sobre o direito de autonomia e autodeterminação das mulheres para decidir sobre sua sexualidade e maternidade que daremos um salto na denúncia do machismo e da misoginia. É preciso recuperar que a situação atual é fruto de uma construção histórica, que foi impondo às mulheres a maternidade como seu principal destino e definindo um amplo controle sobre seu corpo e seus processos biológicos. Este é um argumento central que fundamenta, efetivamente, o compromisso com a descriminalização do aborto.
Outro aspecto importante é a questão da saúde. De fato, o aborto é um problema de saúde pública, que deixa seqüelas e provoca muitas mortes que poderiam e deveriam ser evitadas. E, neste caso, o peso maior recai sobre as mulheres pobres e negras que não têm acesso às clínicas clandestinas. Por isso é importante garantir a descriminalização do aborto, sua regulamentação e atendimento pelo SUS.
E é importante lembrar, ainda, que o primeiro país a legalizar o aborto foi exatamente a Rússia, em 1920, durante o período inicial da Revolução (um direito posteriormente revogado no período estalinista). Da mesma forma que passou a ser um direito das mulheres em Cuba, a partir dos primeiros anos da Revolução. A partir dos anos 1960 e 1970, com o fortalecimento do movimento de mulheres, se tornou um direito em grande parte dos países europeus, Estados Unidos e Canadá e em outras partes do mundo.
A exigência de articulação e luta
A criação pelo governo federal da “comissão tripartite, com representantes do poder executivo, poder legislativo e sociedade civil para discutir, elaborar e encaminhar proposta de revisão da legislação punitiva que trata da interrupção voluntária da gravidez”, respondendo às diretrizes aprovadas na Primeira Conferência Nacional de Mulheres, realizada em 2004, recoloca em outra dinâmica a questão da legalização do aborto na agenda pública. O fato de recolocar esse tema na agenda e esse encaminhamento para o legislativo, por si só, já exigem do movimento de mulheres e seus/suas aliados/as uma ampla mobilização e debate para se contrapor às possíveis contra-ofensivas conservadoras. Só a coalizão de todo o campo democrático popular poderá garantir o êxito dessa iniciativa.
Este é um momento central do debate, que exige da DS uma posição clara de compromisso com a luta das mulheres, fortalecendo a discussão nos movimentos sociais, no partido, na sua ação no legislativo, atuando como uma posição que explicitamente se coloca do lado da descriminalização do aborto e sua legalização na rede pública de saúde. É um momento que exige de nós um esforço concentrado para construir um patamar de debate nos setores populares, assim como a construção de alianças com outros setores do movimento, cobrando o compromisso com a defesa da autonomia e autodeterminação das mulheres. O fortalecimento deste campo é essencial para enfrentar as dificuldades que se apresentarão no Senado e na Câmara Federal, mais evidentes após a eleição de Severino Cavalcanti, o que reforça a necessidade da mobilização e do debate amplo, a importância de um posicionamento claro de nossos parlamentares, e uma cobrança do respaldo do conjunto do governo.