Na metade dos anos 1980, um estudioso chileno, Fernando Fajnzylber, escreveu um ensaio de grande impacto – Industrialização na América Latina: da “caixa-preta” ao “conjunto vazio”. Fazia um balanço das teorias e processos de desenvolvimento que haviam galvanizado o continente latinoamericano nas décadas anteriores. Analisou diferentes países e descobriu uma combinação perversa.
Reginaldo C. Moraes *
Analisou diferentes países e descobriu uma combinação perversa: onde havia crescimento econômico havia aumento da desigualdade social, a riqueza se concentrava; onde havia um pouco mais de igualdade social, não havia crescimento econômico e, portanto, havia mais pobreza. E um terceiro caso, pior, conseguia reunir o inútil ao desagradável: estagnação econômica com desigualdade crescente.
Daí ele tirou uma imagem, a de ‘conjunto vazio’, ou, na sua língua materna, el casillero vacío. Isto é, quando procuramos quais países conseguiam conciliar dinamismo econômico com redução das desigualdades… não achamos nenhum. É ainda mais chocante quando olhamos para países asiáticos que se desenvolveram no pós-guerra, alcançando indicadores de igualdade social próximos dos estados de bem-estar europeus. Dessa constatação, ele parte para uma pergunta: será que isso tem a ver com o modelo de desenvolvimento latinoamericano?
Aparentemente, a resposta a essa pergunta é um enorme “SIM”. Basta olhar para a dependência das economias latinoamericanas com relação à exportação de bens primários ou, quando processados, de bens quase brutos, com baixa incorporação de conhecimento. A América Latina cresceu em número de habitantes, mas entrou num parafuso traiçoeiro: é como se encolhesse na criação de cérebros, de gente capaz de pegar a tecnologia estrangeira e adaptar, melhorar, inovar. A forte industrialização brasileira, por exemplo, é a mais densa da América Latina. Contudo, é marcada pela dominação de empresas transnacionais, que vendem predominantemente no mercado brasileiro, mas remetem lucros, pagamentos de patentes e juros para suas matrizes. São sugadoras e transferidoras de riqueza. E fazem pesquisa e desenvolvem novos produtos? Sim, mas nas suas matrizes e não aqui no Brasil. Esse desenvolvimento sempre se inclinou para os 10% mais ricos do país – e dependia da concentração de renda, não da distribuição. Quando a renda se concentra nos 20 ou 30 milhões do andar de cima, esses consumidores compram mais dos produtos modernos e dos bens que imitam os padrões das economias centrais. Os outros 180 milhões… bom, esses seriam os consumidores e beneficiários de outro tipo de desenvolvimento, aquele que não existia e, de certo modo, ainda não existe. Em vários países da América Latina, a indústria e os complexos agroindustriais ou de minérios sempre funcionaram como verdadeiros enclaves estrangeiros, pontos de extração de riqueza, mais ligados ao mundo de cima, americano ou europeu, do que com a realidade do país em que operam. A integração internacional da economia desses países vinha junto com a desintegração e desarticulação nacional, com diferenças regionais e sociais enormes. Quanto mais esses pólos se ligavam com o mundo de fora, mais desarticulavam e dividiam o mundo de dentro, as sociedades locais. Com esse estilo de desenvolvimento, o que se podia esperar? Igualdade? Cooperação social? Estabilidade política? Democracia? Não: o que se podia esperar era crescimento da exclusão, até o limite do apartheid.
Para onde fomos? Para onde queremos ir?
Ora… Então, como mudar esse quadro? Redistribuir a riqueza criada através de programas de transferência de renda, por exemplo? Essa linha de ação é simplesmente indispensável. Mas, por várias razões, Fajnzylber e sua organização, a Cepal, batiam em outra tecla, estrutural e de longo prazo: uma “reestruturação produtiva com equidade”. Pregavam a adoção de um estilo de desenvolvimento que apostasse na incorporação ativa das massas na economia, através da qualificação e do acesso ao conhecimento. Dizem que é necessário substituir o crescimento através da “renda perecível”, resultante da superexploração dos recursos naturais e da mão de obra bruta, pela “renda dinâmica”, resultante da produção de bens com valor intelectual incorporado, isto é, tecnologicamente mais ricos. Esse novo modelo não quer dizer ‘desligamento’ da economia internacional: quer dizer combinar essa integração, e até mesmo subordiná-la ao processo de articulação interna das sociedades nacionais. Diz Fajnzylber: “Diferentemente do crescimento esporádico, um crescimento sustentado exige uma sociedade internamente articulada e equitativa”. Isto requer outra concepção de desenvolvimento e outro conceito de industrialização.
A idéia tinha raízes em velhos mestres da Cepal. Faz muito tempo, Celso Furtado lembrara que o caso brasileiro bem podia ser uma prova de que a industrialização não era suficiente para que um país se livrasse das chagas do subdesenvolvimento. Para ele, o modelo de desenvolvimento tinha que responder a várias exigências:
a) crescimento sustentado: constante (não ciclotímico), durável e não baseado no uso predatório dos recursos naturais e humanos;
b) razoável integração nacional e redução das desigualdades regionais;
c) internalização de dinamismos (econômicos, tecnológicos) e de centros decisórios,
d) incorporação significativa das massas no processo econômico, social, político.
Todos sabemos a importância que a Cepal e o próprio Celso Furtado davam à industrialização, como motor da independência nacional e da criação de condições para uma sociedade mais equilibrada. Mas é também o velho mestre que nos lembra:
(…) nenhum trabalho de reconstrução estrutural dará resultados permanentes se não se conseguir liberar a massa da população rural – e em primeiro lugar os minifundistas – da engrenagem que atualmente a condena à miséria. O objetivo central da reconstrução das estruturas agrárias deveria ser a instalação de unidades produtivas aptas a utilizar plenamente a capacidade de trabalho de uma família e a avançar pelo caminho da modernização técnica. Dar subsídios a empresas médias e grandes para mecanizar-se e utilizar adubos pode produzir resultados imediatos no plano da produção; mas como ignorar que essa visão eco¬nomicista de curto prazo leva à agravação dos problemas sociais? (FURTADO, 1982, p. 85)
Crescer dividindo, dividir crescendo
Bom, o leitor se dá conta de que estamos ouvindo tudo isto na voz de conhecidos reformadores sociais. Mas até mesmo consultores das agências do capital globalizado, como o Banco Mundial, foram forçados a reconhecer tais fatos. Recortamos aqui um deles. Dani Rodrik:
“A globalização vai consolidando um novo conjunto de divisão de classes – entre aqueles que prosperam e aqueles que não prosperam, aqueles que ganham e aqueles que perdem, aqueles que podem escapar dos riscos e aqueles que não podem. Esta não é uma expectativa agradável, mesmo para os indivíduos que estão do lado vencedor, aqueles que têm pouca simpatia pelo outro lado. A desintegração social não é um jogo que se vê de fora – a lama que espirra do campo chega naqueles que estão fora. No fim das contas, o aprofundamento das cisões sociais pode machucar todo mundo.”
Muitas lições podemos extrair de todas essas constatações. Uma delas é que nem todo crescimento é desenvolvimento e que nem tudo o que chamamos de desenvolvimento é o que parece, nem é neutro. Na época da ditadura, por exemplo, era muito comum os intelectuais simpáticos ao regime militar dizerem que primeiro se deve fazer crescer o bolo, para depois dividi-lo. Esse tipo de crescimento, como sabemos, fez crescer um cogumelo venenoso, que até hoje nos atinge. As políticas saudáveis de desenvolvimento devem ser aquelas que dividem o bolo na mesma medida em que ele cresce – e que corrigem a divisão anterior, quando distorcida. Vale a pena lembrar a frase do evangelho, que os neoliberais adaptam para seu interesse: para aqueles que tudo têm ainda mais lhes será dado, daqueles que nada têm, ainda mais lhes será tirado. A política de desenvolvimento de verdade tem que fazer o contrário.
Mais ainda: algumas das redistribuições têm que ocorrer antes do crescimento, para que este seja viável, equilibrado e mais bem distribuído. Exemplos: a propriedade e o uso da terra. Em todos os processos de desenvolvimento bem-sucedidos – contínuos, estáveis e com distribuição de renda – foi decisiva uma reforma nas estruturas agrárias, na propriedade, no uso, no arrendamento e na taxação das terras. Em todos eles, também, um outro ‘ativo’ teve que ser valorizado no seio das massas populares: o acesso ao conhecimento e à iniciativa, com a universalização de educação elementar e média de qualidade.
No Brasil, algumas dessas iniciativas têm contribuído para corrigir, lenta e parcialmente, as grandes distorções de nosso modelo de subdesenvolvimento. Um exemplo é o de programas de transferência de renda, que não apenas livram milhões da fome e da incapacidade de trabalhar: eles abrem uma janela para que esses nossos brasileiros se sintam gente, que recuperem sua autoestima e sua confiança, sua capacidade de sonhar. Ainda mais importantes, no longo prazo, são as políticas que empurram para outros caminhos de desenvolvimento, outras transformações produtivas que ampliem a equidade: a reforma agrária, as políticas de agricultura familiar e microcrédito, as políticas de interiorização da educação, a valorização do salário-mínimo e das aposentadorias, a promoção de investimentos que gerem empregos (e, portanto, aumentem a renda das famílias). Mas… ainda há muito por fazer. Muitíssimo. De certo modo, tem razão um pseudo-intelectual que postulou o governo: o Brasil pode mais. Só que, para poder mais, tem que se livrar exatamente da influência perniciosa daqueles que sempre puxaram para baixo porque só olhavam para cima. Em 2002, um líder da mal nomeada “socialdemocracia brasileira” disse que o seu candidato tinha perdido porque eles tinham esquecido “daqueles que ficaram pelo caminho”. É verdade: e continuaram esquecendo. Só que o caminho mudou. E tem que mudar muito mais. Só assim, mexendo na caixa-preta do modelo de desenvolvimento, colocaremos o Brasil no “casillero” antes vazio do Fajnzylber: finalmente, na América Latina, um caso em que o crescimento econômico ocorre com a redução drástica das desigualdades.
* Reginaldo C. Moraes é professor de Ciência Política na Unicamp.