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Dívida pública para garantir lucros na estagnação secular | Marcio Pochmann

Decorridos 15 anos da crise financeira global de 2008, o termo estagnação secular passou a corresponder à realidade do estágio prolongado no tempo de um dinamismo econômico baixo ou mesmo nenhum dinamismo. Ademais da desaceleração do crescimento produtivo, a ampliação da desigualdade e o aumento da dívida pública parecem traduzir o cenário de anarquia mundial.

Ilustração: Mihai Cauli

Há quase um século, o ambiente de catástrofe econômica por longo período, iniciado com a Grande Depressão de 1929 levou o estadunidense Alvin Hansen (1887-1975) a adotar a expressão estagnação secular pela primeira vez (Progresso econômico e crescimento populacional em declínio, 1939). Naquela oportunidade, a compreensão a respeito da existência de enorme desproporção entre a produção e o consumo deixou para trás o liberalismo dominante, abrindo caminho para que o Estado se concentrasse no equacionamento das crises de superprodução das economias capitalistas.

De certa forma, era a materialização do que havia descrito Thomas Malthus (1766-1834) no seu livro de 1820: Princípios de economia política e considerações sobre sua aplicação prática. Para Malthus, a existência de recorrente demanda insolvente no interior da economia capitalista geraria a necessidade de solução a ser providenciada por agente externo (Estado).

Os meios de pagamentos adicionais para o enxugamento da demanda insolvente viriam da dívida pública, não do aumento da arrecadação tributária. Nesse sentido, o endividamento estatal se transformaria no componente estrutural e funcional da reprodução capitalista, cujos gastos estatais sustentados, em parte, pela expansão da dívida pública, elevariam o consumo e, por sua vez, o circuito da produção, emprego e investimentos.

Neste primeiro quarto do século 21, a condição de estagnação secular fez com que a dívida pública perdesse parte do sentido definido no passado, tornando-se elemento central de sustentação do lucro capitalista. A dívida que resulta do déficit nas contas públicas (arrecadação de impostos, taxas e contribuições inferiores aos gastos) representa cada vez mais o superávit de recursos à disposição de famílias e unidades econômicas e direcionado à busca de lucros sustentados financeiramente.

A prevalência de taxas de juros reais elevadas, como no caso do Brasil das últimas três décadas, fundamenta a especulação nos mercados de ativos financeiros, comprometendo as bases do consumo e o circuito da produção, emprego e investimento. Para os proprietários de ativos financeiros, especialmente os 10% portadores de elevada concentração de riqueza, a onda favorável do rentismo os faz crescentemente mais ricos, enquanto a estagnação econômica prevalece.

Como ressaltou Wolfgang Streeck (Tempo comprado – A crise anunciada do capitalismo democrático, 2013), a problemática atual do endividamento estatal é própria do receituário neoliberal, não das demandas democráticas por investimentos públicos em busca da justiça social. Isso porque a profusão de reformas tributárias recomendadas e realizadas desde o Consenso de Washington (1989) se voltou quase que exclusivamente para o atendimento dos interesses dos capitalistas por manutenção/expansão do lucro que diante da estagnação secular somente se tornaram possíveis com o patrocínio da dívida pública.

No caso brasileiro, o neoliberalismo aliviou a tributação recorrente dos ricos, poderosos e privilegiados, comprometendo a disponibilidade do gasto público ser financiado pela carga tributária. Antes de 1990, por exemplo, a tabela progressiva do Imposto de Renda chegou a ter a alíquota de 60% aos maiores rendimentos. Atualmente a alíquota máxima chega a 27,5%, ou seja, uma redução de 54,2% de tributação ao andar de cima da sociedade.

Da mesma forma, a distribuição de lucros e dividendos que era tributada em 15% até o ano de 1994, passou a ser isenta até os dias de hoje. Como se sabe, lucros e dividendos se referem aos ganhos quase que exclusivos do andar de cima da sociedade brasileira.

Dois anos depois, em 1996, entrou em vigor a Lei Kandir que isentou as exportações de produtos primários e semielaborados do pagamento do Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e Prestações de Serviços de Transporte Interestadual, Intermunicipal e de Comunicação (ICMS). Ou seja, o chamado agronegócio – um dos setores mais dinâmicos e constituído por grandes exportadores – passou a ser mais um segmento econômico dispensado de contribuir com a arrecadação tributária.

Se forem consideradas as renúncias de impostos, taxas e contribuições, desonerações e subsídios implementados pelo receituário neoliberal, percebe-se o quanto o sistema tributário brasileiro que já era regressivo se tornou ainda mais confuso e regressivo. O que os ricos, poderosos e privilegiados deixaram de pagar em tributos compreendeu parcela significativa do déficit de arrecadação para fazer frente ao conjunto das despesas públicas por justiça social.

Desde 1990, as reformas tributárias de corte neoliberal permitiram que os ricos deixassem de contribuir com a arrecadação fiscal o equivalente a 7% do PIB anual (2,2 PIB atuais acumulados em mais de três décadas). Em consequência, o déficit entre a arrecadação e gasto público fez com que o endividamento estatal possibilitasse a transferência contínua de parte do orçamento governamental como pagamento de juros aos rentistas.

Em mais de três décadas de estagnação secular no Brasil, parcela crescente dos lucros foram sendo garantidos pelo circuito da acumulação financeira, não mais produtiva. Considerando que a cada ano, em média, cerca de 5% do PIB tenham sido transferidos aos ricos credores da dívida estatal, chega-se ao equivalente a 1,6 vezes o PIB nacional acumulado desde 1990.

Nota-se, portanto, que o receituário neoliberal aplicado no Brasil tem aliviado a tributação dos ricos, fazendo com que os recursos faltantes no orçamento público sejam, em parte, contemplados pelo endividamento público. Isso porque o déficit na arrecadação tem sido acompanhado pela dívida pública, cujos juros reais maiores permitem a transferência de recursos orçamentários aos rentistas que assim sustentam lucros extraordinários em plena estagnação secular.

O endividamento público resultante deste esquema de sustentação dos lucros, numa economia no estágio de estagnação secular como a do Brasil, serve de engorda à riqueza dos credores privados que aprisionam o Estado com taxas de juros das mais altas do mundo. Uma reforma tributária para valer no país pressupõe reconhecer o estrago que o neoliberalismo impôs às finanças públicas, passo necessário e urgente para que a economia nacional possa sair da letargia em que se encontra.

Marcio Pochmann é Professor titular da Unicamp, Economista e Doutor em Ciências Econômicas.

Via Terapia Política

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