Rascunho para uma abordagem de esquerda, positiva e realista, do tema do empreendedorismo
por Ignacio Godinho Delgado*
(1) Alerta: o texto que se segue não faz qualquer incursão ou balanço da literatura sobre o empreendedorismo. Trata-se, apenas, de uma reflexão preliminar, a partir de alguns enunciados bastante conhecidos de Marx, para lidar com o tema numa perspectiva de esquerda, colaborando para superação do distanciamento que tal campo político tem mantido com um contingente expressivo de pessoas que se envolvem em inciativas ligadas ao empreendedorismo, hoje sob o alcance quase exclusivo de abordagens teóricas liberais e de forças políticas de direita.
É, pois, uma aproximação ainda acanhada, que, no futuro pode se desdobrar num tratamento mais abrangente do tema do empreendedorismo (e da inovação).
É um convite ao debate.
(2) Para usar uma distinção de Robert Kurz, há perspectivas contraditórias no marxismo do proletariado e no marxismo da economia política (Kurz, 1992). No primeiro, o avanço da indústria moderna amplia e organiza a classe trabalhadora que, por não ter nada a perder, se constitui como o sujeito potencial da revolução socialista. No segundo, a elevação da composição orgânica do capital reduz progressivamente a importância do trabalho vivo e, em decorrência, o peso específico do proletariado. No horizonte, conforme assinalado por Marx nos Grundrisse (escritos entre 1857 e 1958):
…à medida em que se desenvolve a grande indústria, a criação de riqueza real depende menos do tempo de trabalho e da quantidade de trabalho empregado do que da potência das forças postas em movimento durante o tempo de trabalho, cuja power full effectiveness não guarda relação alguma com o tempo de trabalho despendido em sua produção, mas sim com o estado geral do progresso da tecnologia e da aplicação da ciência à produção…
Este momento é apresentado como o “…“último desenvolvimento da relação de valor e do sistema de produção baseado nele” (Marx, 1985, p. 114)
(3) A perspectiva do empobrecimento crescente do proletariado é formulada por Marx, no Livro I de O Capital (publicado dez anos depois da escrita dos Grundrisse), como a “lei geral da acumulação capitalista”, vinculando-se à projeção da elevação da composição orgânica do capital, que aumentaria a superpopulação relativa, por suposto mais pobre, pressionando os salários de quem está ocupado para baixo (Marx, 1975, pp 712-752). Todavia, Marx assinalava que o valor da força de trabalho, além dos bens de consumo indispensáveis à reiterada recomposição da capacidade física dos trabalhadores para o exercício de suas funções (cada vez mais homogêneas e sem conteúdo com o advento da grande indústria), incluía , também, “um elemento histórico e moral” que, entre “diversos fatores”, depende do “grau de civilização de um país”, dos “hábitos e exigências peculiares” da classe trabalhadora, dada a forma como se constituiu em cada lugar, assinalando que, “para um país determinado, num período determinado, é dada a quantidade dos meios de subsistência necessários” (Marx, 1975, p. 191).
No limite, são, também, elementos históricos, que concorrem para a determinação do valor da força de trabalho, a elevação da riqueza geral proporcionada pelo aumento da produtividade do trabalho, e o equilíbrio entre as classes. Assim pode-se dizer que os 30 anos gloriosos, que se seguiram à Segunda Guerra, foram um “tempo determinado” (sob formas diversas entre os países do capitalismo central e parte da semiperiferia), em que se elevou exponencialmente a produtividade do trabalho e sustentou-se um equilíbrio entre as classes que favoreceu o mundo do trabalho, atendendo a novos “hábitos e exigências peculiares”, sem reduzir os ganhos do capital.
(4) Por força do aumento da riqueza geral, da produtividade do trabalho e da composição orgânica do capital (derivada do “progresso da tecnologia e da aplicação da ciência à produção”), as formas de existência da superpopulação relativa não se associam sempre à imagem de seres andrajosos, nem a trabalhadores não ocupados, sustentados pelo seguro-desemprego. É cada vez mais provável que um grande contingente de pessoas sequer vislumbre a perspectiva do emprego e descortine outras formas de ocupação, diversas do salariato. Alternativamente, a redução da jornada de trabalho poderia alargar, em tese, a oferta de ocupações assalariadas e diminuiria a superpopulação relativa derivada das mudanças tecnológicas, acentuando o tempo livre disponível para as pessoas.
Seriam, pois, diferentes configurações – aumento da superpopulação relativa e acentuação do tempo livre – decorrentes, conforme Marx nos Grundrisse, da evidenciação de que
o desenvolvimento do capital fixo indica até que ponto o saber social geral, o conhecimento, se converteu em força produtiva direta e, portanto, até que ponto as condições do processo social da vida se colocam sob controle do general intelect e transformadas de acordo com ele” (Marx, 1985, 115).
No limite, é a disponibilidade ampla do saber social geral, combinada à redução das ocupações ofertadas pelas grandes corporações e à elevação do tempo livre, que abre espaço para o desenvolvimento de disposições empreendedoras. Nem todos vão usar o tempo livre para caçar, pescar, cuidar do gado e fazer crítica filosófica à hora determinada pela vontade individual, conforme a imagem de Marx e Engels, entre 1845 e 1846, em A Ideologia Alemã, fabulando sobre uma sociedade sem divisão do trabalho (Marx e Engels, S.D.).
Para esses – e para todos que integram a cidadania – a sociedade deve prover, através do poder público, condições dignas de existência, através do sistema de direitos. O interesse por empreender, contudo, não vai se reduzir, e sim elevar-se.
(5) De certa forma, talvez não seja possível, no estágio do desenvolvimento capitalista indicado na passagem dos Grundrisse acima, sequer falar-se em superpopulação relativa. Essa, tal como descrita na noção de exército industrial de reserva, é o contingente recorrentemente criado pelas inovações poupadoras de trabalho, que conduziriam ao cenário de empobrecimento progressivo. Seriam parte de uma população cada vez mais substituível, à medida em que a grande indústria vai tornando a atividade do trabalho mero dispêndio de energia física e mental, trabalho geral abstrato.
Ocorre que a atividade inovadora, com a incorporação crescente da ciência à produção, não obedeceu apenas a tal dinâmica. Ela foi impulsionada pelo desenvolvimento autônomo da ciência; pelas políticas públicas que a induziram, primeiro no Estado, para depois disseminar-se no tecido industrial; pelo equilíbrio entre as classes, que favoreceu, para além das necessidades imediatas do capital, a apreensão do conhecimento científico, como saber social geral, por um conjunto de pessoas cada vez maior, através da educação generalizada.
Assim, não é a totalidade das pessoas que deixam de ser absorvidas nas relações de emprego das grandes corporações que aparecem como portadoras de força de trabalho geral e abstrato, pesando para o rebaixamento do preço da força de trabalho. De fato, uma parte importante delas é partícipe de um saber social geral cada vez mais sofisticado, que as predispõe às atividades inovadoras, bem como às artes, à filosofia, aos hobbies.
Fecha-se uma dialética apenas insinuada por Marx nos Grundrisse e ausente em O Capital. Do artesão ao trabalhador sem conteúdo, desse a pessoas que não contam mais para a grande indústria, mas têm capacidade empreendedora. Muda o capitalismo? Anula-se o poder das grandes corporações? “Revoga-se” a lei da centralização do capital? Claro que não, mas deixa de fazer sentido tomar os assalariados e os excluídos pelas grandes corporações – as duas faces do proletariado – como portadores quase exclusivos de um projeto transformador, entre outras razões porque a) tal sujeito perde densidade e b) porque já não se pode simplesmente tratar a todos que não entraram no mercado de trabalho como excluídos. Parte compõe uma nova pequena burguesia que importa decifrar.
O que pode trazê-la para uma proposta de esquerda?
No agregado, subsiste, é claro uma parcela importante de pessoas que detêm apenas a força de trabalho geral abstrato, ocupando serviços de baixa qualidade e favorecendo a queda global na produtividade do trabalho observada desde a década de 1970. Empregos precários são avessos à elevação da produtividade, tanto em ocupações de baixa qualidade, quanto nas mais sofisticadas – ao contrário de uma crença bem estabelecida, mas sem qualquer base fática – por força de redução do interesse das pessoas na própria atividade que desempenham. Coréia, Alemanha e Japão, com turn over perto do zero têm produtividade muito mais elevada que a dos EUA. Relações de trabalho estáveis e políticas de proteção social subsistem, pois, como elementos importantes para o bem-estar e a produtividade.
Entretanto, o que se quer sublinhar aqui é que emerge um grande contingente de pessoas capacitadas, para as quais a relação de emprego perdeu o sentido. Esses são os novos empreendedores. Abordá-los de forma positiva é crucial para que não se coloquem à mercê de uma perspectiva insolidária na vida social.
(6) Marx não tinha uma formulação clara do papel do empresário na atividade inovadora. Em passagem célebre, no Prefácio da Primeira Edição de O Capital diz que, nessa obra, trata os capitalistas como “representação de categorias econômicas [que] simbolizam relações de classe” (Marx, 1975, p 6). Por isso, embora em diversos momentos em seus escritos fizesse, mais que qualquer outro autor, o elogio da ação modernizadora da burguesia, na análise abstrata da economia política, a inovação é fundamentalmente destacada, em função da dinâmica da acumulação capitalista, para poupar trabalho.
Não é conferido relevo na economia política de Marx à ação inventiva do empresário, tal como destacado por Schumpeter (1982). Registre-se, obviamente, que a inovação, ao contrário de certa crença muito difundida, não deriva apenas da criatividade isolada de indivíduos empreendedores ou de respostas racionais à dinâmica do mercado. Ela resulta, diacrônica e sincronicamente, do compartilhamento social do conhecimento e de múltiplos (por vezes, difusos) esforços, antes de se efetivar. Ademais, a disposição dos empresários para a inovação exige a redução da incerteza que necessariamente a envolve, além do contorno dos custos de oportunidade que os impelem à atuação nas linhas menor resistência. Ao apego à rotina, não à inovação.
Por isso, em diversos casos, é central o papel do Estado no estímulo à inovação, através de compras públicas, do financiamento da pesquisa e de políticas industriais que a induzam, através de mecanismos de contrapartidas.
Todavia, num cenário em que as grandes corporações pouco absorvem de força de trabalho, num estágio do capitalismo em que o conhecimento se torna cada vez mais força produtiva direta, a disposição para o empreendedorismo inovador é quase um imperativo para as pessoas que detêm o domínio do saber social geral e de expertises que podem ser convertidas em inovações. É claro que tal disposição é ideologicamente induzida, que as corporações se valem dela para terceirizar a atividade inovadora, levando muitas pessoas a trabalhar loucamente apenas para venderem o que produziram para uma grande empresa. Mas essa é a condição real de existência de um contingente cada vez maior de pessoas.
O que fazer? Virar as costas para elas? Deixá-las como audiência apenas do discurso burguês do empreendedorismo inovador, ou construir um novo discurso, que o conecte ao reconhecimento de que a inovação é uma alternativa para a elevação da riqueza social geral, bem como à competitividade das empresas, no âmbito de um projeto nacional de País? O que fazer, se há mais gente buscando empresas juniores que CAs e DAs? Fechar o olho? Lamentar, ou chegar perto e conferir um sentido solidário, pela mediação da cidadania, ao empreendedorismo.
(7) Nos países de população e território médios ou extensos que conseguiram combinar dinamismo econômico e bem-estar social, a presença de empresas nacionais inovadoras foi requisito essencial. Sob pressão dos trabalhadores, a inovação era a resposta necessária para poupar trabalho, conduzindo, adicionalmente, pelo aumento da produtividade, à elevação da riqueza geral, garantindo condições para o provimento de direitos sociais pelo Estado. Não é possível registrar em países com tais características um único caso em que o domínio dos ativos econômicos mais importantes por multinacionais conduzisse à elevação dos níveis de inovação, pela simples razão de que tais empresas não transferem às suas filiais, fora da sede, os elementos centrais de suas políticas de P&D.
Por isso, em países com mercado interno fortemente internacionalizado, os empresários privados domésticos tenderam a desenvolver um padrão de aprendizado tecnológico passivo, limitando-se à absorção de pacotes tecnológicos do exterior, sem evoluir da imitação à inovação, como ocorreu, por exemplo na Coréia do Sul (Viotti, 2002). Nesta medida, o apego ao trabalho barato e à degradação ambiental tiveram papel de relevo, em parte expressiva de tais empresários, na definição de sua estratégia competitiva ao longo da trajetória do capitalismo brasileiro, perspectiva reiterada mais uma vez na articulação empresarial em favor do golpe de 2016 e no apoio à extrema direita nas eleições presidenciais de 2018.
Uma nova geração empresarial, com o DNA da inovação, por surgir e desenvolver-se pela apropriação e uso do saber social geral como força produtiva direta (num tempo determinado em que predomina a aplicação da ciência à produção), pode se constituir num parceiro importante para a renovação do capitalismo brasileiro, tendo em mira a redução das desigualdades e a incorporação de todos plenamente à cidadania. Essa, como dizia Marshall, é um status compartilhado e seu lócus é o Estado Nacional. Para os novos empreendedores, o aprofundamento da cidadania representa o alargamento de suas chances de êxito, pela expansão do mercado e pela ampliação das possibilidades de cooperação para o desenvolvimento de atividades inovadoras.
Cabe à esquerda deles se acercar, identificando o protagonismo que podem exercer na construção do projeto de país indicado acima e convocando-os a uma ampla aliança em seu favor.
Ignacio José Godinho Delgado é professor titular aposentado da Universidade Federal de Juiz de Fora nas áreas de História e Ciência Política.
Publicado originalmente na Revista Escuta
Referências
KURZ, R. (1992). O Colapso da Modernização. São Paulo: Editora Paz e Terra.
MARSHALL, T. H (1967). Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar.
MARX, K & ENGELS, F. (S.D) A Ideologia Alemã. São Paulo: Martins Fontes
MARX, K. (1975) O Capital. Rio de Janeiro: Paz e Terra. Vol I.
MARX, K.(1985) Grundrisse: Lineamientos Fundamentales para Crítica de la Economia Política. México: Fondo de Cultura Económica. Vol II.
SCHUMPETER, J. L (1982) Teoria do Desenvolvimento Econômico. São Paulo:Abril Cultural (Os Economistas)
VIOTTI, E. B. (2002) “National learning systems: a new approach on technological change in late industrializing economies and evidences from the cases of Brazil and South Korea”. Technol Forecast Soc Change, 69:653-80.
** Crédito da imagem: retirada do site <http://raphaelfilosofia.blogspot.com/2012/09/filosofia-marx-e-religiao.html>. Acesso em: 18 dez. 2018
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