O pacto pela democracia é uma demonstração de lucidez e humildade das forças em defesa do cumprimento da carta constitucional de 1988.
Impressiona o desrespeito à democracia pelo populismo de extremistas da direita, como Donald Trump nos Estados Unidos e Rodrigo Duterte nas Filipinas. Ou, para aterrizar no país, o governador Romeu Zema das Minas Gerais, do Partido Novo – a agremiação política que prega um modelo censitário de critérios econômicos de exclusão, para a indicação de candidatos a cargos públicos.
Generalizado para o conjunto dos partidos, o pré-requisito impediria as classes populares de apresentarem postulantes às eleições. Zema, no mandato, notabilizou-se por visitas aos municípios mineiros, onde chegava sempre em local diferente do combinado “para falar, primeiro, com o povo”. Depois da demagogia, que não implicava uma oportunidade de participação cidadã, reunia-se com as autoridades oficiais da cidade. Aproveitou a crise de representação para se reeleger, como se fosse um polo antissistêmico às ditas elites da sociedade. Nos materiais de campanha aparecia ora ao lado de um, ora de outro presidenciável conforme a conveniência e a desfaçatez, sem corar.
O atual presidente quando sequestra a bandeira nacional, para ocultar os vínculos orgânicos com as legendas que parasitam o Congresso e o orçamento secreto parlamentar (“Bolsolão”), também passa por cima dos ritos republicanos. A deterioração das instituições é facilitada pela desmoralização das mesmas. A lógica repete o estratagema das classes predatórias para encaminhar as privatizações. O fatiamento da Petrobrás e do Pré-Sal não teria sido possível, sem o esforço de toupeira midiático-judicial na farsesca operação Lava Jato, para atender os interesses das poderosas petroleiras dos EUA. A preparação do imaginário social para a ascensão de autocracias é obra de profissionais.
Na Hungria, o populista Viktor Orbán encheu de sectários o supremo tribunal e a comissão eleitoral. Ademais, entregou veículos de comunicação para apaniguados. Jair Bolsonaro fará algo semelhante, se vencer as eleições que tenta manipular com fake news reiteradas, e a compra de votos. Vai trocar as indicações à Alta Corte por passaportes de impunidade para si e para sua família, livrando-se das investigações sobre os inúmeros esquemas delituosos que atingem o desgoverno. Ataques contínuos às regras básicas da Constituição visam construir as condições caóticas para um regime iliberal.
A democracia está moribunda. É necessário que seja vitaminada por políticas igualitaristas e pelo apreço aos valores da República, na Europa e nas Américas. “Seu encolhimento é global”, sendo que “embora os populistas prometam erradicar a corrupção, os países que governam ficaram mais corruptos”, aponta Yascha Mounk, em O povo contra a democracia (Companhia das Letras).
A grande notícia da reta final está na ampliação da Frente Esperança Brasil. A oposição ao neofascismo aprendeu com a desarticulação há quatro anos, quando setores no centro do espectro político tiveram uma atitude arrogante diante do pleito, ao propagar que a decisão entre um bom professor e um mau militar era “uma escolha difícil”. O pacto pela democracia é uma demonstração de lucidez e humildade das forças em defesa do cumprimento da carta constitucional, de 1988. A bazófia de partido e a pureza ideológica foram guardadas na mochila. Aqueles que dão as costas para o bolsonarismo e se aproximam do bloco antineofascista são, logo, aceitos como parceiros.
Todas e todos que reconhecem o perigo encarnado pelo “capetão” e se comprometem tanto com a liberdade individual quanto a autodeterminação coletiva – precisamos trabalhar juntos, a despeito das enormes diferenças políticas. Esse é um passo importante e indispensável no árduo processo de recuperação da credibilidade na política e nos políticos, com consequências positivas na luta pelo bem comum em momento crucial para o futuro da democracia. Trata-se de fator fundamental até para a reversão de votos. A unidade na ação é o que pode barrar o avanço das bêtes humaines.
A “associação dos divergentes contra os antagônicos”, na expressão de Paulo Freire, desconstitui a inescrupulosa ilusão de que Bolsonaro fala em nome da coletividade, alimentada pela apropriação dos símbolos pátrios. Tal é a virtude cívica do movimento plural, interclassista e multiétnico que se aglutina em torno da chapa Lula da Silva / Geraldo Alckmin. A história pede passagem, domingo.
Luiz Marques é Docente de Ciência Política na UFRGS, ex-Secretário de Estado da Cultura no Rio Grande do Sul