O Brasil está comemorando 25 anos da promulgação da Constituição de 1988, a “Constituição Cidadã”, instituída para substituir o ordenamento jurídico criado pela ditadura militar. Fruto de grandes lutas do povo brasileiro, a Carta Magna incorporou em seu texto dispositivos sociais bastante avançados, como o artigo 153, inciso VII, que determina a criação do Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF). Esse imposto deveria ter sido criado por meio de lei complementar, mas, significativamente, trata-se do único tributo federal da Constituição que até hoje não foi regulamentado.
A necessidade de um imposto dessa natureza no Brasil salta aos olhos. Segundo o Relatório sobre elites econômicas, desigualdade e tributação, da Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (Cepal), datado de 2012, o Brasil e o México – os maiores países da região – são os que têm o maior número de bilionários, mas também os que menos arrecadam com imposto sobre o patrimônio. De acordo com esse relatório, o Brasil lidera em número de bilionários (30), seguido pelo México (11). Mas, entre 2005 e 2007, o Brasil arrecadou apenas 0,44% do PIB em impostos sobre o patrimônio, enquanto que o México, com 0,18%, ficou na lanterna. Para efeito de comparação, até o Chile, que desde a ditadura de Augusto Pinochet tem um ordenamento econômico neoliberal, arrecadou mais sobre o patrimônio de seus cidadãos do que Brasil e México (0,59%).
Apesar das políticas sociais adotadas pelo governo federal na última década, que permitiram a redução do índice Gini – medida estatística de distribuição de renda – entre 2002 e 2012, o Brasil ainda convive com altos índices de desigualdade. Segundo Ricardo Paes de Barros, pesquisador do IPEA, dos 124 países que apresentam informações atualizadas sobre Imposto de Renda, somente 34 têm os 20% mais pobres de sua população com renda inferior à renda dos 20% mais pobres brasileiros. Uma das razões para a persistência desse flagelo é que o sistema tributário brasileiro permanece fundamentalmente injusto. Trocando em miúdos, aqui os mais pobres sempre pagaram mais impostos do que os mais ricos. A razão dessa distorção é a predominância de tributos indiretos, que incidem principalmente sobre o consumo, e não sobre a renda ou o sobre o patrimônio. Além disso, o grau de progressividade tributária é extremamente baixo. Com isso, os 10% mais pobres comprometem 32% de sua renda com tributos, enquanto que os mais ricos pagam apenas 21%.
O caminho para corrigir essa injustiça passa pela maior ênfase ao papel da tributação direta, combinado com a progressividade na estruturação dessa tributação. Por outro lado, é necessário a redução da carga tributária que pesa sobre a tributação indireta. O IGF vai nessa direção. Existem vários projetos para sua regulamentação em tramitação na Câmara. Eu mesmo apresentei um Projeto de Lei Complementar (PLP 62/2011) que propõe a tributação do patrimônio por alíquotas. Essa proposta prevê que, até R$ 3.000.000, o contribuinte estaria isento; do patrimônio com valor entre R$ 3.000,000 e R$ 5.000.000, seriam cobrados 0,5%; de R$ 5.000.000 até R$ 10.000.000, o tributo subiria para 1%; entre R$ 10.000.000 e R$ 15.000.000, 1,5%; e acima de R$ 15.000.000, 2%. Também sou signatário de outro projeto, o PLP 130/2012, em coautoria com outros oito deputados petistas de vários Estados da federação. Esse projeto prevê a tributação sobre o patrimônio líquido que exceda o valor de 8 mil vezes o limite mensal de isenção para a pessoa física de renda e proventos de qualquer natureza. As alíquotas iriam de 0,5% a 1%.
O espírito de ambas as propostas é de fazer com que a incidência desse tributo atinja apenas aqueles que realmente possuem grande patrimônio, estimados no Brasil em cerca de 10 mil famílias, das quais a metade teriam fortunas equivalentes a 40% do PIB. Estudos preliminares estimam que a arrecadação desse imposto deve atingir R$ 14 bilhões. Os projetos citados também propõem a vinculação dessa arrecadação ao financiamento de políticas públicas sociais, como educação e saúde, o que terá repercussão sobre o crescimento econômico e a redução das desigualdades sociais.
Os críticos do IGF argumentam, entre outras coisas, que sua criação iria na contramão da história, já que vários países que o adotaram acabaram com ele, principalmente nos anos 1990, a era do ‘Consenso de Washington’. Na realidade, o contrário é que é verdadeiro: desde a crise econômica de 2008/2009, o tributo sobre grandes fortunas voltou à pauta, seja em países que nunca o adotaram, como EUA e Reino Unido, seja em países que o revogaram e agora o reintroduziram, como Islândia e Espanha, seja naqueles que discutem sua reintrodução, como a Alemanha.
No Brasil, a regulamentação desse dispositivo constitucional é urgente e deveria fazer parte da agenda positiva do Congresso Nacional para atender parte das reivindicações das grandes manifestações de julho, que, entre outras coisas, exigem que enfrentemos as históricas iniquidades sociais do país, agravadas por duas décadas hegemonia neoliberal.
* Cláudio Puty é deputado federal (PT-PA)