Cláudio Hiran Alves Duarte.*
“Não olhei a fábrica, mas o homem que se consumiu nela,
não olhei a ferrovia, mas o homem que se consumiu nela,
não olhei a Lua, mas o rosto que a refletiu.”
Paulo Mendes Campos.
Quais são as diferenças entre uma formiga e um garimpeiro em atividade no garimpo “Serra Pelada”? A mais fácil de descobrir é que a formiga busca e carrega algo para consumir, enquanto o garimpeiro busca e carrega algo para trocar. Essa constatação que parece banal tem profundas implicações.
Fixemo-nos nela e, antes de continuarmos, imaginemos uma espécie vivendo dentro de uma grande feira comercial e trocando mercadorias nessa feira não pelo seu valor de uso, mas pelo seu potencial de troca. Imaginemos, ainda, que esse potencial de troca fosse medido através de uma medida que também se torna mercadoria. Avancemos um pouco mais e imaginemos que os próprios produtores das mercadorias trocadas nessa feira também sejam, eles mesmos, mercadorias. Imaginemos, enfim, uma forma universal: a forma-mercadoria, que se apresenta desprendida de conteúdo, ao mesmo tempo em que absorve qualquer conteúdo, como um filtro, retendo alguns e deixando passar outros.
Dificilmente alguém aceitaria a existência de uma espécie assim, vivendo dessa maneira. Seria, contudo, mais fácil aceitá-la apenas como uma hipótese lógica em que, uma vez existindo tal feira, a premissa para alguém poder participar dela seria, é lógico, ter algo para trocar. Se admitirmos, também, a existência de seres dessa espécie que não possuem quaisquer objetos para trocar, mas que possuem força (de trabalho) para produzir mercadorias, poderíamos admitir que eles seriam “bem-vindos” nessa feira. Mas como, se eles não têm nada para trocar, a não ser a eles mesmos? Concedendo-lhes a “liberdade” de optar entre não participar e participar transformando-se em objeto apto à troca. Liberdade a ser exercida mediante outra generosa concessão: a autonomia da vontade. Como objeto apto à troca, receberiam o nome genérico de “sujeitos de direitos” (princípio ativo) e, como mercadoria propriamente dita, diversos rótulos: mão-de-obra industrial (esfera da produção), mão-de-obra comercial (esfera da circulação) e mão-de-obra de serviços (esferas da produção e da circulação, a primeira quando produtiva e a segunda quando improdutiva). Mesmo com diversos rótulos, essa mercadoria não perderia a sua singularidade: a de ser a única que pode produzir outras mercadorias. É claro que essa singularidade somente apareceria se se cruzassem as esferas da produção e da circulação. E se ela aparecesse, a forma-mercadoria deixaria de ser universal e não se poderia se sobrepor o potencial de troca ao valor de uso das mercadorias. “Naturalmente” que tal cruzamento seria indesejável e não poderia ser admitido. O seu contrário sim, a separação crescente das esferas, seria o impulsionador da expansão da feira. Mas, ao mesmo tempo em que se expandiria a nossa feira imaginária, muitas de suas mercadorias teriam a sua circulação interrompida e “morreriam”, transformar-se-iam no que alguns chamam de capital constante (máquinas e ferramentas imobilizadas no processo de produção), diminuindo o espaço para os “sujeitos de direitos”. Como conseqüência, esses “sujeitos de direitos” não seriam tão “bem-vindos” como antes à feira e exigiriam-lhes novas qualidades (“empregabilidade”), ao ponto de o adjetivo inicial dos rótulos, mão-de-obra, ser trocado pelo adjetivo cabeça-de-obra.
Se imaginássemos, ainda, que esses “sujeitos de direitos”, ou melhor, que essa mercadoria singular somente pode produzir se contar com matéria (recursos naturais) para nela incidir (seja como mão-de-obra ou como cabeça-de-obra), veríamos chegar à nossa feira imaginária outro componente: a natureza. Mas chegar no sentido de ser trazido, de ser, portanto, explorado como objeto sobre o qual agem sujeitos (de direitos, abstratos) que lhes são estranhos. Pronto, teríamos bem visíveis, então, dois componentes da produção de coisas que servem de suportes ao valor de troca : força de trabalho (mercadoria com o nome genérico de sujeito de direitos, portanto, sujeito abstrato) e a natureza (como objeto e, como tal: muda, passiva, externa, estranha).
Não seria difícil prever onde chegaria essa feira, mantendo-se inalteradas as relações que nela se estabelecem: a extinção.
Agora imaginemos a outra espécie de ser vivo, a espécie da qual faz parte a formiga ou, se preferirmos outra, um roedor qualquer, como os castores, por exemplo. Uma espécie que, por não ter memória social, seja necessariamente repetitiva em seu fazer e existir: faça sempre as mesmas coisas e sempre do mesmo jeito. Também não seria difícil prever a extinção dessa espécie (quantas já desapareceram?).
Pois bem, já podemos voltar à interrogação inicial: quais são as diferenças entre as espécies imaginadas?
I – Uma delas aparece como efeito e está no sentido de extinção ou de fim do mundo: para a espécie que não possui memória social ele seria uniforme, para todos (ou ela é extinta ou se extingue após roer tudo); já para a outra espécie o fim do mundo não seria uniforme, embora pudesse ser (basta pensarmos em um incidente nuclear), mas apenas como possibilidade (há escolha), não como necessidade (não há escolha). O mundo terminaria apenas para os sujeitos de direitos que não tivessem nada para trocar além de si. Podemos perceber isso empiricamente: para muitos deles o mundo já terminou pela subnutrição, pelas epidemias, pela condenação à reclusão, à marginalização social etc. Se prestarmos atenção a esse fato, perceberemos nele a divisão do mundo em classes sociais.
II – Outra diferença: somente a espécie que possui memória social é capaz de aprender com seus erros, de não repeti-los e de ser criativa. Ela possui memória social porque se encontra no limite entre o mundo da natureza e o mundo da cultura, não por ser uma criatura cultural, como o pós-modernismo costuma afirmar, mas como ser cultural em virtude de sua natureza (Terry Eagleton). É, portanto, um ser singular e a sua singularidade está no fato de só ela poder destruir o mundo por um ato de vontade e, também, só ela poder salvá-lo (Ronald de Oliveira Rocha ). Sua natureza é capaz de criar outro mundo: o mundo de uma cultura em que o que é limitado possa ser ao mesmo tempo infinito (César Benjamin ), desde que não seja separado do “mundo” da produção (das relações de produção) e, assim, a espécie possa se ver em sua existência concreta , não presa em categorias abstratas, seja como sujeito de direitos (humanismo abstrato), seja como portadora de uma essência separada de sua existência ( o naturalismo do bom selvagem ou o naturalismo teológico, neste como a imagem e semelhança de Deus, ou, ainda, o “…´naturalismo histórico`, tal como a visão stalinista interpreta o marxismo, supondo um processo de autoconstrução regido por leis idênticas às leis naturais. Trata-se… do antropocentrismo, do humanismo racionalista e abstrato, do jusnaturalismo.”, assinala Adelmo Genro Filho ). E desde que, vendo-se em sua existência concreta, compreenda que ao transformar a natureza, com o seu trabalho, transforma a si própria, ou seja, entenda que não domina a natureza como se domina a um objeto, ou como diz Engels em Dialética da Natureza:
“As pessoas que, na Mesopotâmia, na Grécia, na Ásia Menor e em outros lugares, dizimaram as florestas para ganhar terras para a lavoura, estavam longe de pensar que, ao mesmo tempo, criavam as bases dos atuais desertos desses países (…) os fatos nos lembram a cada passo que não reinamos sobre a natureza, como um conquistador reina sobre um povo estrangeiro, ou seja, como alguém que estivesse fora da natureza, mas que pertencemos a ela…”
III – Outras diferenças entre essas espécies poderiam ser apontadas, mas o mais importante é traçarmos um paralelo entre o que foi dito e a ideologia do “fim do mundo” que está presente no discurso de alguns movimentos ecologistas (apenas alguns, de slogan de sinistra memória como o “nem direita, nem esquerda”, lembrado por Alain Bihr ). Partindo de uma constatação verdadeira: uma das características das crises ecológicas, a irreversibilidade, esses movimentos (e apenas esses) transformam essa característica na ideologia que alerta para o perigo do fim do mundo e, assim, transcendem todas as clivagens políticas, despolitizam a Ecologia, fazem um discurso supraclassista e desenvolvem sua luta de fora do Capitalismo. Se o mundo acabar, acabará para ricos e pobres, homens e mulheres, brancos e negros etc., dizem eles. Ora é claro que quando um ecossistema morre ele morre para proprietários de meios de produção e para os não proprietários (ricos e pobres…), mas isso não significa que o mundo acabará uniformemente para todos, como aconteceria para a espécie sem memória social que imaginamos. Embora ele fique mais degradado, mais feio etc. em geral, em particular ele pode continuar belo, lindo e vivo. Basta pensarmos na apropriação privada de praias, ilhas e mesmo da biodiversidade, esta por meio das diversas Leis de Patentes existentes no mundo, e na apropriação privada de recursos naturais da Amazônia e do Pantanal. Ou ela não existe? Basta pensarmos em classes sociais sem confundir classe com profissão e sem aprisionar Marx na fábrica.
Como esses movimentos desenvolvem sua luta de fora do Capitalismo, assim como o conquistador denunciado por Engels ou o “sujeito de direitos” que incide (de fora) sobre a natureza tornada objeto, eles desconsideram as relações de produção, desconsideram o fato de o Capitalismo ser eminentemente produtivista, porque voltado à acumulação e à reprodução de Capital. Desenvolvendo assim a sua luta, correm o risco de nascerem “condenados pelo futuro” , porque apontam para o perigo de não haver futuro, paradoxalmente, sem mostrar onde está o perigo, pois não apontam para a necessidade de:
a) Por fim à forma-mercadoria , a fim de retirar da produção social a influência da “abstração mortífera do valor”, como diz Alain Bihr ;
b) por fim à apropriação privada dos meios de produção, à divisão da sociedade em classes e às relações sociais reificadas;
c) “Colocar a Ecologia na Política”, para dar mais vida à primeira, transformar a segunda em livre tráfego de necessidades vitais (desreificadas) e para podermos amar a humanidade, amando a todos os homens e mulheres e a todos os seres vivos, sem antropocentrismo.
Enquanto isso não acontece, serve-nos de estímulo à luta a lição de Antonino Infranca :
“Si no todos los hombres merecen ser amados, ciertamente es necessario amar la humanidad, que es mucho más que los proprios hombres, si bien no puede existir sin ellos.”