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Economia para a transformação social | Luiz Marques

Comentário sobre o livro de Juliane Furno e Pedro Rossi

A Fundação Perseu Abramo (FPA), em parceria com a Editora Autonomia Literária, lançou Economia para a transformação social: pequeno manual para mudar o mundo, escrito por Juliane Furno, recém-concursada para o Departamento de Economia da UERJ, e Pedro Rossi, professor do Instituto de Economia da UNICAMP. Eis uma bela e necessária iniciativa.

“Colaborar com o esforço coletivo de conhecer, compreender e construir argumentos para transformar o mundo em que vivemos. Impossível avançar na luta pela democracia, pela reconstrução e transformação do Brasil sem se apropriar criticamente de conhecimentos essenciais da economia”, explicam no Prefácio Carlos Henrique Árabe e Jorge Bittar. Julian Rodrigues, coordenador de formação política da FPA, reitera o preceito do título na orelha do livro: “Como Paulo Freire (e Karl Marx) nos ensinaram, teoria e prática formam sempre uma unidade dialética. Quem sabe mais, luta melhor”.

A obra – da Coleção Argumento – é escrita numa linguagem atraente com ilustrações artísticas da Gazetinha da Guanabara que tornam a leitura prazerosa, não superficial, tendo ao final de cada capítulo indicações de textos, filmes e outros conteúdos para aprofundar os temas. Uma excelente introdução ao estudo da economia política para os lutadores sociais, uma ferramenta para entender o funcionamento de um sistema – o capitalismo – que produz e reproduz a roda gigante da alienação.

Na contramão da vulgata ortodoxa dos economistas que estimulam o conformismo com o status quo, e cujas reformas visam sempre favorecer as classes dominantes, naturalizar as desigualdades e os privilégios e enfraquecer os sujeitos transformadores da realidade que está aí, – os autores se propõem “sistematizar e hierarquizar o conhecimento econômico básico para que esse sirva de instrumento para compreensão crítica da economia brasileira e internacional” (p. 12).

O livro divide-se em quatro partes. A primeira é mais teórica e conceitual; a segunda faz uma exposição do capitalismo do século XIX até os dias atuais; a terceira analisa a economia no Brasil junto com uma proposta de modelo econômico socialmente justo e ambientalmente sustentável, incorporando as reflexões ecológicas que relativizam a noção positivista de progresso; a quarta procura desmontar os mitos econômicos e as narrativas neoliberais para que a militância de esquerda se situe em condições capacitadas na luta política concreta.

A crítica dos autores aos apologistas do livre mercado desconstrói o dogmatismo do Consenso de Washington e lança as bases para um conhecimento das engrenagens sistêmicas, no solo da história. Interessa-lhes mostrar o fundamento de classe de duas visões antagônicas: de um lado “a economia política da burguesia” e, de outro, “a economia política das classes trabalhadoras”. A teoria, pois, implica uma posição política. Criticar a hipocrisia burguesa é assumir uma recusa radical à inumanidade e à falta de empatia com o sofrimento do povo.

A hipocrisia aparece na tentativa de transpor um termo da filosofia moral (“austeridade”) que carrega uma conotação de sacrifício (“disciplina, parcimônia, prudência, sobriedade” para evitar “comportamentos dispendiosos, insaciáveis, pródigos, perdulários”), o que remete a valores virtuosos sob o prisma da vida dos indivíduos, para o âmbito “das funções do Estado, buscando reduzir as suas responsabilidades sociais” (p. 185). A assertiva é fraudulenta, e aqueles que a repetem no jornalismo econômico da mídia corporativa ajudam na fabricação de uma grande mistificação. Integram o time dos “ideólogos”, junto com as consultorias financeiras, conferindo ao discurso hegemônico sobre a economia uma dimensão política para a defesa do establishment, em consequência, das desigualdades abissais entre as classes na sociedade.

No entanto, isso não significa cair numa espécie de sociologismo do tipo que oporia uma classe e “sua” teoria a outra classe e “sua” teoria, esquematicamente. “O neoliberalismo não ganhou primazia porque a sociedade leu seus autores e se convenceu das suas ideias, especialmente nos momentos de crise econômica pela qual passaram os principais países que adotavam políticas intervencionistas conhecidas como ‘Estado de bem-estar social’. O neoliberalismo ganha relevância ao culpar o Estado interventor e o conjunto de direitos sociais pela crise que atingiu essas nações no final da década de 1970. Segundo essa interpretação, o Estado permissivo ampliou demasiadamente o gasto público e colocou diversas barreiras ao livre funcionamento do mercado, sendo o responsável pela crise” (ps. 50-1).

O desafio “é organizar uma economia baseada em direitos impulsionada por dois motores principais de crescimento econômico: (i) a distribuição de renda; e (ii) a expansão da infraestrutura social e ambiental”. O objetivo é “a solução de problemas históricos da sociedade brasileira como mobilidade urbana, saúde, educação, racismo estrutural, desigualdade de gênero, degradação ambiental, mas também uma nova lógica de organização do planejamento econômico” (p. 171).

O campo democrático-popular amplia, assim, o acervo bibliográfico para a emancipação sociopolítica, econômica e cultural. Encorpa a “guerra de posição” dos “subalternos”, no léxico gramsciano, em nome da justiça social e da dignidade contra toda modalidade de subordinação e dominação que crie obstáculos ao direito a ter direitos, ou que negue a lição por excelência instituída na Idade Contemporânea, após a Revolução Francesa, com a esperança de universalizar na República a “liberdade, a igualdade e a fraternidade” a partir do governo Lula 3.0, impulsionado pelos partidos progressistas, movimentos sociais, sindicatos, entidades comunitárias…

Depois de fechar o livro, podemos responder com segurança às Perguntas dum operário leitor, formuladas no poema de Eugen Bertolt Friedrich Brecht (Augsburgo, 1898 – Berlim Leste, 1956):

 

“Quem construiu a Tebas das Sete Portas?

E a várias vezes destruída Babilônia –

Quem é que tantas vezes a reconstruiu?

Em que casas da Lima refulgente de ouro moraram os construtores?

Para onde foram os pedreiros na noite em que ficou pronta

A Muralha da China?

O jovem Alexandre conquistou a Índia.

Ele sozinho?

Felipe de Espanha chorou, quando a Armada

Se afundou. Não chorou mais ninguém?

Frederico II venceu a Guerra dos Sete Anos. Quem

Venceu além dele?

Cada página uma vitória.

Quem cozinhou o banquete da vitória?

Cada dez anos um Grande Homem.

Quem pagou as despesas?

Tantos relatos.

Tantas perguntas.”

Luiz Marques é Docente de Ciência Política na UFRGS, ex-secretário de Estado da Cultura no Rio Grande do Sul.

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