As eleições brasileiras de 2022 são determinantes para o futuro da América do Sul. O país, além de possuir a maior economia, dispõe da maior população e extensão territorial da região. O Brasil também tem uma posição chave do ponto de vista internacional, e liderou por muito tempo a estratégia de integração e cooperação sul-americana.
Durante o ciclo progressista esse protagonismo foi ainda mais evidente. Sob a liderança brasileira, o Mercosul deixou de ser apenas uma área de livre-comércio e passou a ser uma organização voltada para a integração e a cooperação econômica, social e política da região. Com a criação da Unasul, foi dado o primeiro passo para a construção de uma identidade sul-americana comum. O cenário era radicalmente oposto ao atual, em que a América do Sul se tornou irrelevante para o Brasil, que tem priorizado negociações externas com países e blocos extrarregionais (Frenkel, 2022).
A prolongada crise que o Brasil vivencia desde 2014 tem impactos sobre toda a região. Os seus principais eventos são amplamente reconhecidos. Tendo como pano de fundo a Operação Lava-Jato, tem destaque o pedido de auditoria do PSDB ao TSE a fim de verificar a “lisura” do processo eleitoral após a vitória de Dilma Rousseff em 2014; o golpe parlamentar à presidenta eleita e a sua substituição pelo então vice-presidente Michel Temer em 2016; a condenação, prisão e indeferimento da candidatura de Luís Inácio Lula da Silva em 2018; e, finalmente, a vitória de Jair Bolsonaro neste mesmo ano.
A crise brasileira coincidiu com o declínio do ciclo progressista na região, provocado, entre outros fatores, pelo fim do boom das commodities. Os seus efeitos recessivos, especialmente os relativos à redução dos gastos sociais e das expectativas de mobilidade social, demonstraram alguns dos limites dos governos de esquerda. Do ponto de vista político, a resposta a este declínio foi a eleição de governos de direita na América do Sul, com os exemplos de Mauricio Macri na Argentina em 2015, Sebastián Piñera no Chile em 2017 e Iván Duque na Colômbia em 2018.
A saída à crise proposta por estes governos reeditou o mesmo modelo de suas experiências políticas das décadas de 1980 e 1990, em que a direita sul-americana se converteu em sinônimo de neoliberalismo e de uma posição política a favor da ordem social de mercado. Desta vez, suas reformas não só não trouxeram a tão esperada estabilidade macroeconômica, como acentuaram os altos níveis de desigualdade existentes na região.
A contrarresposta a estes governos foi a eleição de líderes de esquerda na América do Sul, com os exemplos de Alberto Fernández na Argentina em 2019, Gabriel Boric no Chile em 2021 e Gustavo Petro na Colômbia em 2022. O último período tem sido marcado por uma alternância entre a esquerda e a direita no poder, o que também poderia ser observado como um voto de castigo aos governos em exercício. Ainda assim, e dado que o seu programa segue sendo profundamente neoliberal, é notável a dificuldade da direita em oferecer uma plataforma atrativa à maior parte do eleitorado. Atualmente, apenas Brasil, Equador, Paraguai e Uruguai estão sob governos de direita.
Os novos governos de esquerda não chegam ao poder sob as mesmas condições do antigo ciclo progressista, e tem como agravante os efeitos devastadores da pandemia de Covid-19 na América do Sul. A região concentra o maior número de mortos por milhões de habitantes do mundo, em um contexto de crise econômica, sanitária e humanitária. Adicionalmente, cenários internos marcados pela polarização ideológica e pela fragmentação política, e em alguns casos por ameaças à democracia, têm tido um impacto desarticulador sobre a integração e a cooperação, em um momento de menor expressão política do regionalismo sul-americano (González et al. 2021).
O papel do Brasil neste contexto é considerável. O governo de Michel Temer foi determinante para levar o regionalismo a um misto de estagnação, fragilidade e decadência (González et al. 2021, p. 10-11). O estímulo ao divisionismo e a ações orientadas à política interna tem marcado o último período, como o abandono da Unasul em 2018 e a criação do Fórum para o Progresso e Desenvolvimento da América do Sul (Prosul) em 2019 denotam. O Prosul se destaca por ser uma iniciativa sem resultados e motivada por interesses puramente ideológicos.
Bolsonaro, por sua vez, levou o Brasil à insignificância, e o outrora líder do regionalismo passou a ser o principal responsável pelo seu colapso. O atual presidente está inserido em um movimento global de ascensão de lideranças e partidos de ultradireita e representa o primeiro caso em que este posicionamento político foi eleitoralmente exitoso na América do Sul. Esta ultradireita tem como principais características o nacionalismo e o antiglobalismo, elaborando um internacionalismo reacionário que tem como objetivo a construção de uma nova ordem mundial (Sanahuja e López Burian, 2020). Ao perceber o multilateralismo como uma ameaça a este projeto, sob Bolsonaro o ciclo de expansão da imaginação política que marcou o ciclo progressista chegou ao fim (ver Ross, 2021).
As eleições brasileiras de 2022 definirão a capacidade da América do Sul em responder à prolongada crise do regionalismo. Neste contexto, a derrota de Bolsonaro é também uma oportunidade de reconstrução da estratégia de integração e cooperação regional sob a liderança de seu gigante sul-americano.
Aprendizados do Ciclo Progressista e Desafios à Integração Regional
Marco Aurélio Garcia, um dos principais responsáveis pela arquitetura político-institucional da integração regional, afirmava que a política externa de um país era um elemento essencial para o projeto de desenvolvimento desse próprio país. Para o ex-Assessor Especial da Presidência da República para Assuntos Internacionais dos governos do Partido dos Trabalhadores, a opção pela América do Sul fazia parte do reconhecimento de suas potencialidades, mas também da necessidade de interconexão entre os Estados da região para a superação da pobreza e da desigualdade.
O ciclo progressista foi o período em que a opção sul-americana foi definitivamente materializada. Após a transição e a (aparente) consolidação das democracias nas décadas de 1980 e 1990, os governos de esquerda que chegaram ao poder a partir da virada do século XX para o século XXI priorizaram a América do Sul enquanto um ator coletivo, fazendo de suas organizações multilaterais espaços de relevância regional e mundial.
A América do Sul pouco a pouco adquiriu uma voz própria e, fundamentada em uma agenda de coordenação intrarregional, foi capaz de responder coletivamente a temas essenciais, como em infraestrutura, energia e defesa, e de promover a diversificação de suas alianças extrarregionais (González et al., 2021). Ao mesmo tempo, na esteira do ativismo transnacional e do Fórum Social Mundial, a região foi um contraponto ao neoliberalismo que, ao celebrar a globalização (financeira), decretava o fim do Estado nacional.
Os aprendizados do ciclo progressista permitem apontar alguns desafios à recuperação da arquitetura político-institucional da América do Sul enquanto um ator coletivo.
Primeiro, é preciso construir um projeto de integração e cooperação renovado politicamente e atualizado programaticamente, que responda às circunstâncias históricas que o fizeram necessário. Este projeto deve transcender o perfil político e ideológico dos governos da região e as ações de curto prazo da política interna de seus respectivos países. O colapso da Unasul sob o patrocínio de Temer e Bolsonaro é um exemplo de como interesses particulares podem colocar em xeque mais de uma década de trabalho em torno da integração e da cooperação regional.
Segundo, a constituição de uma identidade regional forte e autônoma implica em repensar as relações intrarregionais e extrarregionais da América do Sul. É necessário compatibilizar os interesses dos Estados de forma que assimetrias estruturais entre seus países, como o Brasil e a Argentina, de um lado, e o Paraguai e o Uruguai, de outro lado, sejam mitigadas. Isto implica na construção de uma voz comum por meio de mecanismos funcionais de articulação.
Terceiro, é necessário afirmar que a integração regional não é apenas livre-comércio, mas cooperação econômica, social e política. Se os governos das décadas de 1980 e 1990 priorizaram a abertura comercial da América do Sul, o ciclo progressista demonstrou que é possível ir além. O Brasil exerceu um papel ativo sobre a gramática da integração regional, como quando reconheceu a soberania boliviana na nacionalização do gás. É preciso reativar esta gramática para enfrentar, de maneira conjunta, os efeitos da crise econômica, sanitária e humanitária.
Por fim, as eleições brasileiras ocorrem em um contexto em que a população vivencia uma crescente sensação de precariedade provocada pelo desmonte das políticas de proteção social. O deterioramento dos indicadores sociais se alastra por toda a região, e um dos desafios à integração regional passa pela existência de uma liderança capaz de coordenar, do ponto de vista político, a integração regional e a inserção internacional da América do Sul. Neste contexto, uma possível vitória de Lula emerge como uma oportunidade histórica, a qual mandatários de toda a região esperam pelo seu desfecho.
Urgências de um Futuro Governo Democrático
A superação da fome e da pobreza deve ser a prioridade de um futuro governo democrático, e a redução das desigualdades sociais e econômicas tão características da América do Sul um dos principais objetivos da integração e da cooperação regional.
Para tanto, é preciso compreender a política externa como uma política pública. Para que o Estado atue no âmbito internacional, é necessário recriar um ambiente de colaboração do governo com a burocracia, a sociedade civil, o empresariado, a universidade e os agentes econômicos a fim de reposicionar o Brasil no mundo. Isto passa pelo reconhecimento e pela atuação do país enquanto um Estado sul-americano.
A seguir, serão apresentadas quatro urgências de um futuro governo democrático, capazes de reposicionar a política externa brasileira face aos principais desafios da América do Sul e, porque não, do mundo.
1. Organizações regionais
Um melhor posicionamento brasileiro no cenário internacional permite que a América do Sul tenha uma maior margem de negociação com status econômico com blocos extrarregionais. Ao mesmo tempo, possibilita a elaboração de uma estratégia conjunta de desenvolvimento econômico com justiça social, destinado a compartilhar políticas exitosas para a diminuição das desigualdades e da pobreza.
As organizações regionais devem recuperar a sua capacidade de atuarem como espaço de diálogo e de busca de interesses comuns. É necessário superar a crise no Mercosul e reafirmar a organização enquanto um projeto estratégico. Para tanto, é necessário reduzir as assimetrias, valorizando mecanismos como o Focem, e garantir a entrada da Bolívia no bloco, cuja adesão depende apenas de decisão do Congresso Nacional brasileiro. É igualmente preciso reconstruir uma identidade comum, seja via Unasul, seja via Celac, o que permitiria a ampliação da integração e da cooperação regional para a América Latina, tendo em vista a atual disposição do governo do México.
2. Crise na Venezuela
A agenda sul-americana com relação à Venezuela esteve, nos últimos anos, atrelada à política externa dos EUA. O papel da OEA neste sentido foi digno de nota. Sob a liderança de Luis Almagro, a organização assumiu um papel ativo na perseguição ao governo de Nicolás Maduro e reconheceu Juan Guaidó como presidente interino do país. Movida por interesses ideológicos, a OEA também foi fundamental no golpe de 2019 na Bolívia. Ao mesmo tempo, o conflito entre a OEA e a CIDH pôs em questão a preocupação da organização com os direitos humanos no país.
A tradição diplomática brasileira é de respeito à soberania e à autodeterminação dos povos, mediando o diálogo para a construção da paz. Recuperar as organizações regionais passa, necessariamente, por favorecer o diálogo entre o governo, a oposição e as organizações sociais da Venezuela, a fim de recuperar a estabilidade política e democrática do país.
3. Crise migratória
A crise na Venezuela está profundamente vinculada à crise migratória na América do Sul, uma vez que são 5 milhões de venezuelanos que emigraram no último período. Um olhar ampliado para a América Latina – e as caravanas de migrantes da América Central aos Estados Unidos – denota o desafio humanitário de responder à situação dos migrantes na região.
O Brasil precisa retornar ao Pacto Global para a Migração do qual se retirou em 2019. Ainda que não seja um destino prioritário para imigrantes, a atuação do país do ponto de vista regional pode colaborar para a tomada de decisões conjuntas no que toca à crise migratória, que é antes de mais nada uma crise humanitária. Como medidas mais urgentes por parte das organizações regionais, tem-se o aceleramento na concessão de vistos, na regularização e na documentação de migrantes e refugiados, a facilitação do reagrupamento familiar, e a cooperação na busca de acesso a serviços básicos e a oportunidades de emprego por parte dessa população. A reaproximação do Brasil ao multilateralismo passa pela sua inserção nas agendas internacionais que estão na ordem do dia, e colaborar para tornar os fluxos migratórios mais seguros e ordenados é fundamental.
4. Crise ambiental e climática
O Brasil, que outrora teve uma legislação ambiental considerada das mais avançadas do mundo, tem caminhado para o lado oposto, colaborando para a destruição de seus biomas e, particularmente, da Amazônia. Se a questão ambiental e climática é a agenda internacional mais importante da atualidade, não é exagero afirmar que as eleições brasileiras serão decisivas para o seu futuro.
O país deve ter como prioridade a sua entrada no Acordo de Escazú e implementar os protocolos sobre acesso à informação, participação pública e acesso à justiça em assuntos ambientais previstos neste pacto. O acordo inova ao unir as agendas de direitos humanos e de meio ambiente a fim de estabelecer uma democracia ambiental regional e, portanto, conectada aos desafios do século XXI (Villareal, 2021). Na Amazônia, é preciso combater o desmatamento e os crimes ambientais como o garimpo e a extração ilegal de madeira, bem como a violência contra os povos da floresta. Para tal, um futuro governo democrático deve planejar e promover o desenvolvimento da Amazônia Legal e da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica em parceria com os demais países que a integram. O Brasil pode ainda ser um ator importante na diplomacia climática, colaborando para o diálogo na construção de segurança e justiça climática entre as grandes potências mundiais.
A expectativa da América do Sul é que a derrota de Bolsonaro permita que o Brasil lidere novamente um processo de reorganização regional, reativando o regionalismo para que o mesmo reflita interesses comuns. Estes são alguns dos desafios e urgências que nos deparamos no processo de construção de uma região justa e soberana.
Talita São Thiago Tanscheit é Pesquisadora Associada no Instituto de Ciências Sociais da Universidade Diego Portales (ICSO-UDP), em Santiago do Chile, e Pesquisadora Colaboradora no Observatório Político Sul-Americano (OPSA).
Via Boletim Lua Nova