O sistema eleitoral e partidário brasileiro ainda é pouco democrático, o atraso é histórico. Nossa experiência democrática é muito pequena. Séculos de exclusão social colonial, de escravidão, longos períodos autoritários e ditatoriais marcam nossa trajetória histórica e cultural. A primeira experiência de pluripartidarismo só ocorreu na metade do século 20, entre 1945 e a ditadura civil militar de 1964, assim mesmo com limites, pois partidos comunistas continuavam excluídos e na clandestinidade.
A década de 80, apenas 40 anos atrás, viveu o início de uma nova experiência político-partidária com democracia ampliada, com liberdade plena de organização partidária. Podemos afirmar que é a mais longa experiência democrática da nossa história, ao mesmo tempo, motivo de orgulho por essa conquista mas, também, compreensão dos limites e insuficiências dessa experiência, para não termos ilusões falsas do conquistado e dos grandes obstáculos a serem superados, a começar pela brutal desigualdade social no país.
As maiores mazelas do sistema eleitoral vem do período ditatorial e foram mantidas pela Constituição de 1988. Isto é, “o voto é igual para todos”. Mas a mesma carta estabelece aos Estados um piso mínimo de 8 deputados e um teto máximo de 70 deputados, independente da população, na composição da Câmara Federal. Isto distorce flagrantemente o voto da cidadania e o princípio democrático. No senado, o caráter federativo que justificaria três vagas por estado ( lembram do senador “ biônico” da ditadura?) esconde as alterações realizadas na Constituição Federal, pelas quais o Senado tem praticamente as mesmas competências da Câmara.
Outro problema grave é o voto nominal que aguça o personalismo, o clientelismo corruptor e tende a liquidar com os partidos e seus programas, insubstituíveis na organização das vontades coletivas na democracia. O voto nominal impede, também, qualquer mecanismo que corrija outra distorção do sistema eleitoral brasileiro: a pequena participação de mulheres nos parlamentos, nas direções partidárias e na vida administrativa pública, herança do patriarcalismo brasileiro.
No entanto, o aspecto que nos interessa tratar aqui, sem diminuir a importância dos anteriores é, também, o comportamento dos partidos. Estes, por lei, devem ser nacionais, terem programas e objetivos que os identificam e espera-se coerência entre o projeto e a prática no governo ou na oposição.
No início deste século, em nome da democracia e por liberalidade dos tribunais eleitorais, permitiu-se disputar eleições com registro provisório e tivemos uma explosão de partidos ( cerca de 35). Parte deles mais preocupados com os espaços gratuitos de rádio e TV e com os fundos públicos do que com a identidade e coerência programáticas.
A pulverização foi tão grande que, nas últimas reformas eleitorais, criou-se a cláusula de desempenho crescente até 2030, proibiu-se as coligações proporcionais e abriu-se a possibilidade de formar federações partidárias entre partidos com proximidade programática e ideológica. São medidas positivas, mas lentas e aquém da urgência que o país necessita para garantir que as eleições expressem, de forma efetiva, a vontade popular e garantam governabilidade aos eleitos.
Não podemos aceitar como normal que o resultado desses processos estabeleça a contradição da última eleição presidencial. Elege-se o presidente da República e o sistema eleitoral não lhe garante governabilidade congressual. E, não adianta inventar explicações e conceitos tipo “semi parlamentarismo” ou “presidencialismo de coalizão” que escondem a responsabilidade do atual sistema eleitoral e agridem a institucionalidade constitucional do país .
Mas, aos poucos, as pequenas mudanças efetuadas já geram resultados. Surgiram federações, várias siglas realizaram fusões e consolidam-se campos programáticos mais claros. As federações do Campo popular e socialista apresentam-se unidas às eleições deste ano PT-PV-PCdoB e PSOL-Rede consolidam um bloco em relação ao governo nacional e estarão juntas nas eleições municipais deste ano. Mas não expressam a totalidade das forças políticas que se reivindicam, em suas siglas ou programas, desse campo popular e socialista. Assim como agremiações políticas que não possuem representação parlamentar, mas possuem base social como o PSTU, o PCB, o PCO, a UP e outros.
Neste artigo, queremos dialogar com esses partidos de forma fraternal para a ação conjunta nas eleições de Porto Alegre, no estado e no país. Em especial, com o PSB e o PDT por sua história, por seu projeto programático, socialista e trabalhista. Ambos membros da Internacional Socialista e que compartilham conosco a frente política que governa o país, partidos que têm a responsabilidade de Ministérios e da vice-presidência da República, num projeto de reconstrução do país. Estamos governando após seis anos de governos neoliberais com Temer (MDB) e Bolsonaro (PL), que liquidaram com direitos e avanços nas leis sociais e trabalhistas; que pactuaram com políticas antinacionais de subserviência ao imperialismo, ao rentismo financeiro, e de destruição das empresas e bancos públicos decisivos para qualquer projeto de desenvolvimento autônomo do país.
Nesse sentido, nos dirigimos aos companheiros do PDT e do PSB, de sua direção estadual e da capital, e aos demais partidos do campo popular e socialista, para acelerar um projeto comum para Porto Alegre e os municípios gaúchos. Essa composição já está avançada em dezenas de municípios no estado; em grandes cidades como Gravataí, Alvorada, Viamão, Cachoeirinha, entre as federações e o PSB; bem como Caxias do Sul, Passo Fundo, São Leopoldo, Erechim, São Luiz Gonzaga e Sapiranga, com o PDT.
Não há razão eleitoral, muito menos de projeto político presente e futuro, para que esse campo popular e socialista não se apresente como um bloco político capaz de vencer essa visão retrógrada que governa Porto Alegre e o estado, que é negacionista, obscurantista, subordinada no plano econômico ao neoliberalismo do rentismo financeiro.
A construção desse bloco popular e socialista, já iniciada pelas federações, precisa ampliar e ser uma alternativa não só para eleição municipal. Mas deve se constituir como um forte bloco social, que se expresse no país nas próximas eleições nacionais, e que seja capaz de realizar grandes transformações que o país ainda não efetivou.
O projeto imperial da globalização e do neoliberalismo, que predomina no mundo há 50 anos, só acentua as desigualdades sociais do capitalismo, alimenta guerras em todos os continentes e gerou seu pior subproduto, a falsa ideologia da absolutização da liberdade individual, que só se sustenta na mentira, no preconceito religioso e racial, e no negacionismo científico e cultural. A falência desse projeto expressa-se hoje na crise de representação da plutocracia dos Estados Unidos e na vitória do trabalhismo na Inglaterra, pátrias mães da globalização neoliberal dos anos 70 e 80 do século passado.
A construção de um caminho alternativo para o futuro já se deslumbra nos recentes resultados eleitorais no México, nas primárias no Uruguai e na vitória da Frente Popular na França. Ele passa pela formação de uma frente política do campo popular e democrático, com respeito à autonomia de suas forças constitutivas, com a unidade de um programa comum em torno de um socialismo democrático, defensor do meio ambiente, do feminismo e do combate às discriminações sociais e raciais.
Porto Alegre, julho de 2024.
Raul pont é professor e ex-prefeito de Porto Alegre.