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Eleições na Espanha podem ser teste histórico na Europa. De novo | Reginaldo Moraes

Agora, em abril, a Espanha terá eleições gerais para recompor as forças no Congresso e, portanto, definir a chefia de governo, na monarquia parlamentar que sucedeu à longa ditadura franquista.

A ditadura caiu de modo peculiar, na metade dos anos 1970. Desde os anos 1960, a “oposições democráticas” vinham acumulando forças – com destaque para um movimento sindical forte e politizado, ao lado de movimentos de bairros populares organizados em torno de demandas de cidadania ativa. Havia rachas no bloco do poder. Rachas na hierarquia católica. E começavam a aparecer facções descontentes nas forças armadas, esteio do regime. Quando os capitães de abril derrubaram a ditadura salazarista, em 1974, alguns imaginavam que na Espanha algo similar iria acontecer – inclusive com o surgimento de um movimento “democrático” no mundo das fardas. Mas a Espanha não estava envolvida em uma guerra colonial esgotante como a de Portugal – em que os jovens migravam até mesmo para escapar da praga da convocação.

A morte ou repaginação do franquismo (1976) em certa medida foi algo similar à do próprio Franco (1975). O velho ditador galego tinha sido transformado em uma peça de complexo maquinário, manejado por seu genro, um médico-monstro. Corações, pulmões, quase tudo de Franco tinha sido “terceirizado” para um engenho descendente do famoso equipamento soviético que dera origem às operações de coração radicais. Bastava uma falha na corrente elétrica para Franco se despedir. Dizem que o genro, parte da circulo conspiratório, segurou os botões até que o passamento coincidisse com aquele de outro personagem sagrado da direita espanhola, José Antonio Primo de Rivera – 20 de novembro. A operação dos médicos foi algo assim como segurar a morte de algum mineiro ilustre para chegar ao dia de Tiradentes, se me entendem. Quase o mesmo ocorria com o regime que o caudilho criara e sustentara com mão de ferro – os tubos ficaram ligados até que a cerimônia de passagem estivesse preparada adequadamente.

Desmanchada a ditadura, uma reforma institucional foi negociada entre as oposições e a facção reformista da ditadura. Floresceram vários partidos, com destaque para dois blocos. Na esquerda, saíam da clandestinidade os tradicionais Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE) e Partido Comunista (PCE). Na direita, a União do Centro Democrático (um instável arranjo de correntes neofranquistas modernizadas) e a Aliança Popular (AP), o que se poderia chamar de franquismo ortodoxo, saudosista e “ideológico”. Havia também os pequenos partidos de expressão regional, sobretudo na Catalunha e no País Basco. Com o tempo, as coisas foram se realinhando e produzindo o cenário de um bipartidarismo de fato, que atravessaria as últimas décadas do século XX e a primeira do novo milênio. O PSOE concentrando o “voto útil” da esquerda e centro-esquerda, o Partido Popular (PP), herdeiro da AP, concentrando as viúvas do franquismo e os yuppies das finanças, moderninhos por fora, barroquinhos por dentro.

Tudo assim corria, mas também escorria. Explico. O PP continuou sendo o que era, do tamanho que era – o mesmo paletó jaquetão, os mesmos bigodes e cuecas samba-canção. E os mesmos 10 milhões de votos fiéis, pouco mais do que isso. Sempre nessa toada. Mas o PSOE foi se desgastando, sobretudo com o exercício do governo, durante o qual implantou reformas econômicas que desagregavam sua base de apoio. O PSOE começou a perder para ele mesmo, ou, mais precisamente, para a abstenção – algo que comentei em artigo anterior, mostrando um momento fora da curva, a eleição de Zapatero em 2004.


Reviravolta. De repente, mas não tão surpreendente
Assim corriam os fatos, até que o subsolo profundo fez um furo na crosta terrestre e mostrou os dentes. Há na história espanhola recente a impressão, bastante ancorada nos fatos, de que os espanhóis relutam em se filiar a organizações “tradicionais”, como partidos e sindicatos. E votam em ondas, que vão e vem. Mas se manifestam muito e constantemente, em marchas, concentrações, movimentos “temáticos”. Nos últimos 10 ou 15 anos, em especial, diversos movimentos dessa natureza foram crescendo – os atingidos pelas hipotecas imobiliárias, os desempregados, os jovens, os trabalhadores e usuários do sistema de saúde (a “Maré Branca”) ou da educação (a “Maré Verde”). Esse crescendo teve um momento simbólico importante com a concentração dos Indignados da praça da Puerta del Sol, com réplicas em outras cidades do país. Os indignados talvez não tenham conseguido grande coisa, mas chamaram atenção para o descompasso entre os movimentos de cidadania e a representação política. Nos anos seguintes, vários desses movimentos confluíram para a formação de uma “voz” no sistema político, um novo partido, o Podemos.

Aparecia uma brecha no bipartidarismo de fato, com Podemos se transformando numa terceira força, bem perto do percentual de eleitores do PSOE. Faltava, como pedia um alto executivo do Banco Sabadell, um Podemos de Direita. E assim surgiu Ciudadanos (Cs), partido dos caras perfumados e bem letrados que viveram anos dentro do PP mas gostavam de “costumes” mais ousados do que aqueles que cabiam nas sacristias. Os costumes morais eram simbolicamente retratados nos costumes, no sentido literal – nas roupas. As estrelas do Cs usam ternos cor-de-abóbora, gravatas amarelas, alardeiam ou murmuram arranjos afetivos menos caretas. Até deixam imaginar que curtem um baseado. Mas são rigorosamente ortodoxos no que diz respeito às politicas econômicas de “austeridade”. Austeridade para os debaixo, por suposto. Arrocho, privatização, cortes nos direitos sociais, desregulamentação do trabalho, do meio ambiente, dos controles fitossanitários. Mercado para todos. Nisso, Cs continua sendo PP.

Até muito recentemente, isso tudo colocava a Espanha num espaço excepcional dentro da Europa –  e do ocidente, em certo sentido. Mais ou menos como Portugal. Não surgia, ali, um partido da tal “nova direita populista”, aquela do Front Nacional francês, do FPÖ austríaco, da Lega Nord italiana, do Tea Party americano. Até que, finalmente, apareceu essa margarida. Primeiro, em uma eleição regional, na Andaluzia, região de alto percentual de imigrantes (a Geni predileta dessa corrente). O novo partido, Vox, emergiu como representação parlamentar e significativa votação. Não suficiente para governar, mas o bastante para puxar os demais para perto de si. Os dirigentes de Vox são velhos quadros do PP, profissionais bem remunerados desse partido. Mas aparecem e se apresentam como os “novos da política”. A mensagem é conhecida: unidade nacional espanhola, contra os “independentismos” regionais, anti-imigrantes, discurso contra a União Europeia e o globalismo”, rigidez moral, defesa da família, da pátria e da propriedade. E austeridade, claro, basicamente a mesma austeridade do PP e do Cs. Os métodos e técnicas também são conhecidos – as fórmulas de manipulação digital da Cambridge Analytica.
Será que a Espanha será, de novo, um teste de desempenho das esquadrilhas fascistas?
As eleições gerais ocorrerão em 28 de abril. Mudarão a composição do Parlamento e, portanto, definirão o novo governo. As pesquisas apontam para uma vitória do PSOE, uma divisão grande na direita (com queda significativa do PP) e a cristalização de duas organizações “de fora do sistema”, Podemos e Vox. A grande incógnita é esta: de que tamanho será o Vox saído dessas eleições? Um número de “indecisos” bem maior do que o usual, nas pesquisas, tem suscitado a suspeita de que há grande potencial de “voto envergonhado” de Vox esperando a oportunidade para sair do armário e, daí, sim, começar a ranger os dentes. Enfim, como se vê, pode ser que a Espanha chegue ao nosso admirável mundo novo, aquele que franceses, americanos, brasileiros, entre outros, viram se formar nos últimos 10 anos. As esquadrilhas de Steve Banon vão bombardear Guernica.

Assim, talvez, se desfaça a velha frase que os franquistas cunharam para seduzir turistas – Spain is different. No más, todavia.

Reginaldo Moraes é professor da Unicamp, pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-Ineu) e colaborador da Fundação Perseu Abramo.

Publicado originalmente no Jornal da Unicamp.

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