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Eleições no Estados Unidos e a crise de hegemonia | Nara Roberta da Silva

O retorno de Trump marca uma derrota histórica – não apenas para os democratas, mas para todos que lutam por justiça social.

A recente eleição presidencial nos Estados Unidos confirmou o retorno de Donald Trump à Casa Branca. Apesar das incertezas que ainda pairam sobre como seu segundo mandato será conduzido, é previsível que sua presidência trará desafios significativos. Trump obteve uma vitória confortável tanto no número de delegados do colégio eleitoral quanto no voto popular. Os republicanos garantiram não somente a Presidência, mas também a maioria no Senado e na Câmara. Este é, sem dúvida, um ponto de inflexão – reflexo não apenas do que muitos consideram os quatro anos desastrosos do governo de Joe Biden, mas também de um cenário político em transformação. A derrota dos democratas precisa ser analisada em um contexto histórico mais amplo, para que se compreenda seu significado global e se reflita sobre os caminhos possíveis para o futuro.

“A primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”
Durante a apuração, enquanto os resultados eram divulgados, as análises procuraram os erros da campanha de Kamala Harris e do Partido Democrata. Para alguns, a campanha foi “woke” demais – excessivamente lacradora. Para outros, pecou por não comunicar de forma eficaz os feitos do governo Biden. Certamente, houve falhas, revelando a incapacidade de conter o ímpeto de Trump. No entanto, é crucial entender que o problema vai além da incompetência. A questão reside em um horizonte político que oferece respostas insuficientes para as complexidades do momento histórico atual.

As limitações da campanha de Harris devem ser avaliadas dentro do contexto maior que pode ser caracterizado como uma crise de hegemonia. Visível há pelo menos quinze anos, essa crise reflete uma quebra do consenso a sustentar o neoliberalismo e o imperialismo norte-americano. A eleição de Biden em 2020 foi mais um capítulo desta crise de hegemonia, mas as políticas de sua administração – incluindo a “Bidenomics” e a reafirmação da dominação global dos Estados Unidos através dos entraves com a China e do apoio incondicional à Ucrânia e a Israel – falharam em responder às demandas por mudanças. A decisão de Biden de concorrer novamente, mesmo diante de sinais claros de desgaste, evidenciou uma resistência do Partido Democrata em revisar suas propostas e confrontar seus limites. Mais precisamente, a expectativa era de que Biden indicasse, à época das eleições de meio de mandato de 2022, que não concorreria a uma segunda presidência. Isso permitiria uma primária competitiva e, com ela, a necessidade de lidar com as diversas posições internas e as demandas por um caminho mais progressista para o partido. Mas o partido fechou-se para a (auto) crítica.

Quando colocamos a campanha de Harris neste cenário, percebemos então que ela herdou um leque limitado de possibilidades, a restringirem de partida sua capacidade de apresentar uma plataforma transformadora. Em um primeiro momento, a campanha de Harris tentou ressuscitar a coalizão que trouxe Barack Obama ao poder em 2008. A convenção democrata em agosto foi marcada pela retórica da unidade e do futuro, sintetizada na frase da ex-primeira-dama Michelle Obama: “a esperança está de volta”. Porém, quase vinte anos depois, os esforços para reviver a coalizão Obama rapidamente mostraram-se anacrônicos. Em primeiro lugar, é preciso considerar que os anos Obama foram uma grande frustração – os levantes do Occupy Wall Street e do Black Lives Matter aconteceram no governo do primeiro presidente negro dos Estados Unidos. Qualquer tentativa de reencarnar tal coalizão não é capaz de gerar o mesmo apelo de outrora. Em segundo lugar, a “coalizão” Harris careceu de criar uma unidade, embora falasse em unidade.

Mesmo na convenção, que buscou se colocar como uma vitrine de múltiplas vozes a apoiar a nova candidata, houve um silenciamento coordenado do movimento pela questão palestina, então em seu auge. Aos poucos, a campanha Harris foi extinguindo a energia que se criou em torno dela nas primeiras semanas e alienando potencial base de apoio ao priorizar o aceno a um suposto campo moderado. Em troca da esperança prometida, recebemos um discurso sobre o histórico de Harris como promotora e sua disposição para adotar posições severas sobre imigração e segurança de fronteiras – o que alimenta ressentimentos raciais ao invés de questioná-los e enfrentá-los. Passada a convenção, palanques com líderes sindicais como Shawn Fain, presidente da destacada United Auto Workers, foram preteridos em favor de palanques com bilionários como Mark Cuban, empreendedor do ramo de comunicações. O governador Tim Waltz, de Minessota, vice de Kamala Harris, foi colocado à sombra, junto com as medidas progressistas que ele implementou em seu estado, enquanto a candidata fazia campanha com Liz Cheney, republicana inequivocamente conservadora, “a favor da vida” e de uma política externa agressiva.

A “competição” com Trump em temas como imigração, armas, entre outros tornou-se ainda mais trágica à medida que a campanha Harris não conseguia se colocar em meio à insatisfação generalizada em relação à economia. Contudo, a legitimação de pautas conservadoras pela campanha de Harris não surpreende, no entanto, à luz de análises radicais que veem o fascismo emergir das contradições do próprio liberalismo. O Partido Democrata, como baluarte do liberalismo nos Estados Unidos, frequentemente abre caminho para forças reacionárias ao falhar em lidar com as contradições fundamentais do capitalismo.

A esquerda americana e a via eleitoral
Desde 2016, uma tendência surgiu entre grupos progressistas e de esquerda: a via eleitoral como um espaço crucial para promover uma agenda de justiça social e para derrotar o projeto da direita de Make America Great Again, emergente naquele mesmo ciclo eleitoral. O surgimento desta tendência é particularmente importante visto que o país não conta com um sistema multipartidário e nem com uma tradição socialista ou social-democrata forte. Com ela, gerou-se um conjunto de novas dinâmicas dentro do Partido Democrata e houve um impacto na sociedade como um todo, através da circulação mais ampla de certas propostas e ideias.

É bastante claro que à esquerda, entendida de forma ampla, deve-se muito a vitória de Biden em 2020. No entanto, ao longo dos últimos quatro anos, ampliaram-se as divisões internas no que tange à estratégia de exercer influência dentro do Partido Democrata. Muitos progressistas que anteriormente apoiaram Biden como parte de uma frente única antifascista tornaram-se céticos ou desiludidos. Antes mesmo das eleições, havia setores propondo que se rompesse ou se abandonasse o Partido Democrata. Durante o ciclo eleitoral, vimos o “movimento dos não-comprometidos” (uncommitted movement) a pressionar a administração Biden-Harris pela proposta de um cessar-fogo imediato entre Israel e Hamas e de um fim do envio de armas àquele. Fissuras profundas no eleitorado democrata ficaram aparentes. Embora este movimento tenha sido publicamente marginalizado por muitos liberais através de um discurso de medo da volta de Trump, a questão da Palestina terminou por exercer um impacto muito maior do que até mesmo a esquerda imaginava.

Sem uma visão coesa ou estratégia compartilhada, o setor progressista e de esquerda não pôde mobilizar com a mesma intensidade de 2020. Sabemos que as diferenças em torno da via eleitoral continuarão a dividir tal setor – o sistema político peculiar dos Estados Unidos traz grandes desafios para qualquer um que tente lançar candidatos fora dos dois principais partidos e o caminho através do Partido Democrata continuará fazendo sentido para muitos e muitas. Mas é preciso notar que, à medida que se chega ao fim do governo Biden, a confusão sobre seus avanços e suas deficiências vista nos últimos quatro anos fica ainda mais evidente. Bernie Sanders, grande voz progressista no país, corretamente compartilhou críticas duras ao Partido Democrata, centrando em seu abandono da classe trabalhadora. No entanto, o mesmo Sanders foi um dos que, ao longo do mandato de Biden, o rotulou como o “presidente mais pró-trabalho desde FDR” – ou Franklin Delano Roosevelt, que comandou o país entre 1933 e 1945 e esteve à frente do New Deal. Será mesmo? Um olhar mais atento mostra que a Bidenomics, política econômica de Biden, dificilmente passa neste teste.

É correto que a nomeada de Biden para o National Labor Review Board, agência independente que monitora o cumprimento da legislação trabalhista, tenha decidido com os trabalhadores e os sindicatos em várias ocasiões, mas tal agência tem alcance limitado à medida que certos setores da força de trabalho são excluídos de sua jurisdição e não pode, a agência mesma, impor sanções. Também é correto que o governo Biden tenha dado incentivos fiscais a empresas para que contratassem seus empregados sob um contrato sindical, mas há uma diferença crucial entre fornecer incentivos à sindicalização e “forçar” os empregadores a adotar a sindicalização. E o fundamental: quaisquer medidas positivas do governo Biden são pequenas dentro do quadro geral de que a Bidenomics tem sido um programa de crescimento ancorado em política industrial e investimento em infraestrutura a servir ao capital sem a contrapartida de redistribuição vista na metade do século 20. Toda a conversa sobre inflação alta tem escondido debates mais profundos sobre a contradição da Bidenomics de se colocar como uma alternativa ao neoliberalismo, onde o Estado teoricamente estaria mais presente, sem questionar pilares da governança neoliberal, como adesão a estritas políticas fiscais.

Portanto, cabe aos grupos progressistas e de esquerda não só se entender em relação à via eleitoral e ao Partido Democrata, mas também uma avaliação sobre bases programáticas – mais especificamente, sobre as possibilidades reais de projetos desenvolvimentistas figurarem como via de transformação social e econômica no século 21, era na qual o capital financeiro predomina.

Trump 2.0
O Partido Democrata propôs um governo tacanho quando era preciso ousar e terminou por reforçar uma agenda conservadora quando era preciso contrapô-la. O setor progressista e de esquerda chegou à eleição sem um norte em relação ao que fazer sobre a Presidência. Ambos os fatores contribuíram para a desilusão generalizada presenciada nos últimos meses, terreno fértil para que a mensagem de Trump ressoasse em mais e mais segmentos do eleitorado. Infelizmente, foi ele quem chegou mais próximo de uma coalizão – o Partido Republicano avançou em todos os cantos do país, mesmo em áreas tradicionalmente democratas, e entre praticamente todos os grupos populacionais. O fenômeno do “voto dividido” (split ticket), em que eleitores apoiaram simultaneamente Trump e medidas como garantia do aborto legal em nível estadual, ilustra a complexidade do nosso problema.

A próxima administração promete perseguir medidas draconianas em relação a imigração, regulamentações ambientais e direitos reprodutivos, além de esforços para solapar de vez políticas afirmativas e aumentar os lucros dos capitalistas. A possibilidade de Trump nomear mais um juiz ou juíza para a Suprema Corte pode aprofundar o domínio conservador em uma instituição chave do país. Para o Brasil, a vitória de Trump significa um novo ímpeto da direita no país e na América Latina, conforme visto nas posturas recentes de Javier Milei. Embora o Brasil esteja atualmente fora do foco principal dos Estados Unidos em termos de política externa, a administração Lula deve prestar atenção a esses desdobramentos. O cenário político americano oferece lições valiosas sobre os perigos da complacência diante de forças reacionárias.

O retorno de Trump marca uma derrota histórica – não apenas para os democratas, mas para todos que lutam por justiça social. Este momento exige uma reflexão profunda e a coragem de pensar e construir o novo.

Nara Roberta da Silva é professora de Ciências Sociais na CUNY, contribuiu com os painéis do Centro de Análise da Sociedade Brasileira (CASB), da Fundação Perseu Abramo

Via Teoria e Debate.

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