Ocorridas quase ao mesmo tempo, as recentes eleições legislativas nos Estados Unidos e gerais na Nicarágua expressaram a crise da estratégia do governo estadunidense e o caráter ainda ambíguo de uma conjuntura internacional no momento em que o imperialismo dominante perde sua capacidade de iniciativa.
Os candidatos do Partido Republicano perderam porque a campanha dos candidatos do Partido Democrata os acusara de terem apoiado incondicionalmente a estratégia militarista de Bush no Iraque. E se, ao longo desses três anos, os Democratas também não ofereceram resistência (e vários foram entusiastas da guerra), os Republicanos, por sua vez, não podiam, na campanha eleitoral, acusá-los desse “pecado”.
A rejeição popular à política externa do Bush não abriu passo a outra política externa – porque não há. A solução do impasse não é simples, porque, tendo chegado aonde chegou o imperialismo americano – a sobre-extensão de sua presença e atuação militarista unilateral no mundo -, tentar recuos agora, de regiões conflagradas onde não conseguiu firmar seu projeto hegemônico, isso será visto nos termos que foi a retirada do Vietnã no início dos anos 1970: a confissão de sua derrota.
Nicarágua
Hoje, a Nicarágua é o segundo país mais pobre da América Latina, atrás apenas do Haiti. Em 1979, triunfou lá uma revolução popular liderada pela Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN). Na década seguinte, a economia do país foi destruída pelo cerco imposto pelos Estados Unidos e a atuação em todas as fronteiras de grupos contra-revolucionários financiados e dirigidos pela CIA. A eleição convocada para 1990 foi perdida pelos sandinistas devido à chantagem do governo dos Estados Unidos sobre um povo cansado. Nas duas seguintes eleições, o resultado foi similar.
Passados 16 anos, o argumento imperial perdeu força num momento em que a conjuntura nacional impediu a continuidade do malefício. O governo Bush, através de sua embaixada em Manágua, e do envio de emissários – os mesmos personagens que operaram a guerra suja nos anos 1980 -, tentou reeditar o feito, sem sucesso.
Mas também, agora era mais difícil, porque a direita estava dividida em duas candidaturas igualmente fortes. Dessa forma, apesar de ter surgido uma dissidência no sandinismo, o candidato (como nas vezes anteriores) da FSLN, Daniel Ortega, obteve 38% dos votos, suficiente para levar no primeiro turno.
É verdade que a FSLN e o Ortega de 2006 são uma pálida lembrança do que foram até 1990. Acumularam perda de identidade programática, casos de corrupção, aumento do autoritarismo interno no partido, acordos espúrios com partidos da direita e, em nome da “reconciliação nacional”, incorporaram na sua coligação membros importantes da contra-revolução dos anos 1980. Pior, sem maioria no parlamento, serão obrigados a novos acordos com setores conservadores. O que viu Bush de tão ruim, então, nessa opção? A resposta é simples: Ortega chegou à presidência afirmando explicitamente sua aliança regional com Chávez e Fidel. Será o primeiro governo não alinhado com os EUA em toda América Central.
Essas eleições expressaram, assim, uma crise do projeto imperialista, num patamar novo que ainda não tínhamos assistido na “era Bush”. É “novo” porque combina uma dimensão interna aos crescentes problemas que tem na esfera internacional.
Outra América Latina
O segundo mandato de Lula e a iminente reeleição de Chávez na Venezuela compõem outra dimensão desse novo cenário: o ensaio de uma alternativa regional ao projeto imperialista para a região. É interessante notar que o tema da Alca (principal iniciativa dos EUA no continente) tenha sido pauta na disputa entre Lula (contra) e Alckmin (a favor). Esses resultados eleitorais são fundamentais porque somente com a união de países do porte de Brasil, Venezuela e Argentina, que combinam alguma capacidade industrial, tecnológica, energética e financeira, é possível pensar em projetos nacionais e regionais que se afastem da dominação imperialista (uma pequena amostra do que pode ser a pressão imperialista sobre os países latinos foi o recente veto dos EUA a que a empresa brasileira Embraer vendesse aviões à Venezuela; veto que foi possível porque essa empresa utiliza tecnologia estadunidense).
Nos dias 8 e 9 de dezembro, acontecerá em Cochabamba, na Bolívia, a Cúpula Presidencial da Comunidade Sul-Americana de Nações, a principal aposta para a constituição de um pólo econômico e político. Da capacidade que tenham os países com governos progressistas ou que rejeitam a estratégia estadunidense (Venezuela, Bolívia, Brasil, Uruguai, Argentina) de lançar as bases para um projeto regional consistente dependerá que a disputa com o projeto imposto pelos EUA avance na região.
A caminho de Cochabamba
Nos dias 6 a 9 de dezembro próximo, acontecerá, em Cochabamba, Bolívia, a Cúpula Social pela Integração dos Povos, convocada pela Aliança Social Continental e o Movimento Boliviano pela Soberania e a Integração Solidária. Os organizadores esperam reunir cerca de 5 mil delegados e delegadas de todas as Américas para debater o processo de integração regional que também estará em pauta numa Cúpula Presidencial nos dias 8 e 9.
A diferença desta para outras oportunidades, é que, desta vez, há uma grande expectativa por parte dos movimentos sociais. Isso porque tem havido intensa atuação por parte do governo boliviano (com grande parceria com países como Venezuela e Brasil) no sentido de que, em Cochabamba, consiga-se avançar em uma integração regional capaz de desafiar a dominação imperialista na região.
Por outro lado, se, entre os 12 países envolvidos, há cinco claramente comprometidos com essa meta (além do anfitrião: Venezuela, Brasil, Argentina, Uruguai), estarão presentes à mesa também o principal aliado de Bush na região (Colômbia) e o país que foi mais longe na sua inserção liberal no mercado mundial (Chile). A disputa acontece em torno a qual será o “pólo dinâmico” na região, se aquele que optou pela sua submissão aos acordos de livre comércio (Chile, Colômbia, Peru) ou aquele que busca um desenvolvimento autônomo (os cinco antes citados).
Do rumo que tome essa disputa dependerão as feições políticas regionais que a América do Sul haverá de assumir: se de espaço tomado pela hegemonia estadunidense ou de bloco capaz de fazer o contraponto às pretensões dos Estados Unidos. Num momento em que “o império encolhe”, trata-se de uma batalha decisiva para o futuro das lutas por libertação. Daí a importância de não deixar a disputa apenas no terreno das relações entre governos da América do Sul.
Construir desde as sociedades uma visão e uma proposta de uma integração alternativa à que tem tratado de nos impor o imperialismo estadunidense será tão importante para avançar na Comunidade Sul-Americana de Nações como foi o engajamento e mobilização de amplos setores sociais para derrotar a Alca em 2002-4.
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