Quase um ano após a renúncia forçada do presidente Evo Morales (MAS – IPSP) e a formalização da presidência interina de Jeanine Áñez (MDS), novas eleições foram realizadas na Bolívia no último domingo (18/10). As eleições marcam o que se considera uma retomada democrática no país, levando a termo o período de ruptura institucional decorrente do golpe de Estado de novembro de 2019, que combinou a participação de instituições internacionais (particularmente a Organização de Estados Americanos – OEA) e de segurança pública nacional (Forças Armadas e Polícias) com chantagem armada de grupos paramilitares marginais à ordem legal do Estado Plurinacional.
Dada a polarização política e social preexistente no país entre o Movimento Ao Socialismo – Instrumento Político pela Soberania dos Povos (MAS-IPSP) e seus opositores (MOLINA, 2018), especula-se que a governabilidade se apresente como o principal desafio que enfrentará a dupla eleita em seu mandato. Somado a isso, tem-se o cenário de forte oposição regional interna, encabeçada por setores políticos e econômicos das terras baixas, notadamente o departamento de Santa Cruz. Os votos da cidadania residente e não-residente no país ainda estão sendo computados pelo Órgão Eleitoral Plurinacional (OEP), podendo o processo ser acompanhado pelo canal oficial do TSE. Em conformidade com o calendário eleitoral aprovado em agosto deste ano, os resultados oficiais deverão ser proclamados pelo Tribunal Supremo Eleitoral (TSE) no dia 25 de outubro – em caso de efetivamente não haver segundo turno.
Todavia, a divulgação de resultados não-oficiais foi realizada pela empresa Ciesmori e confirmada pela organização Tu Voto Cuenta cerca de seis horas após o encerramento da votação. De acordo com estas pesquisas de boca de urna, ganham em primeiro turno os candidatos à presidência e vice-presidência do MAS-IPSP, respectivamente, Luis Alberto Arce Catacora, ex-Ministro da Economia (2006-2017; 2019), e David Choquehuanca Cespedes, ex-Ministro de Relações Exteriores (2006-2017) e Secretário Geral da Aliança Bolivariana Para os Povos de Nossa América – Tratado de Livre Comércio dos Povos (ALBA-TCP) no período 2017- 2019.
Além da presidência e da vice-presidência, estas eleições definem o corpo de deputados(as) e senadores(as) que comporá o Congresso Nacional nos próximos cinco anos. De acordo com os resultados da boca de urna, o MAS-IPSP elege 19 senadores, frente a 17 da oposição (13 da Comunidade Cidadã e 4 do Creemos) – o que pode garantir maioria simples do partido no senado e melhores chances de governabilidade.
À luz das agitações sociais e da violência que marcaram o processo eleitoral de outubro de 2019 no país, bem como da polarização política interna, especulava-se que o mesmo poderia ocorrer no passado domingo. Não obstante, as eleições transcorreram de maneira pacífica, contando com a observação de diversas missões internacionais[1] e respeitando critérios de biossegurança frente a pandemia de COVID-19. As Forças Armadas e a Polícia Boliviana foram imcubidas de assegurar o bom andamento das atividades eleitorais, gerando alguns tensionamentos – como no caso da detenção e agressão a membros da missão oficial de observação argentina no aeroporto da cidade de El Alto.
No que concerne especificamente à presidência e à vice-presidência do país, concorreram com a dupla provavelmente eleita, respectivamente, Carlos Diego de Mesa Gisbert e Gustavo Pedraza Merida pela Comunidade Cidadã (CC); Luis Fernando Camacho Vaca e Marco Antonio Pumari Arriaga pelo Partido Creemos; Chi Hyun Chung e Salvador Emilio Pinto Marin pela Frente para a Vitória (FPV); e Feliciano Mamani Ninavia e Ruth Yolanda Nina Juchani pelo Partido de Ação Nacional Boliviano (PAN-BOL).
Desde o anúncio dos resultados das pesquisas de boca de urna, parte da oposição reconhece a vitória de Luis Arce e David Choquehuanca, notadamente Jeanine Áñez e Carlos Mesa, havendo também diversas manifestações internacionais de reconhecimento, incluindo a do secretário geral da OEA, Luis Almagro. Nas primeiras horas após o anúncio, prevalecem as narrativas que reconhecem, enfatizando, a vontade soberana do povo boliviano e o retorno à democracia no país – direção na qual se encaminhou a primeira declaração à imprensa do virtual presidente Luis Arce.
“Antimasismo” remanescente e o desafio da governabilidade
Em que pesem as manifestações por parte da oposição de reconhecimento da vitória dos candidatos do MAS-IPSP e respeito à escolha da maioria da população votante boliviana para o governo do Estado Plurinacional no período 2020-2025, os resultados do sufrágio deste domingo revigoram os debates acerca da governabilidade no país.
Com efeito, a disputa política esteve fortemente articulada em torno de dois eixos principais durante a campanha eleitoral recente, quais sejam a do “antimasismo” – congregando a todas as candidaturas com exclusive as do próprio do MAS-IPSP – e a do regionalismo, centrada na figura do presidenciável que ocupou a terceira posição na disputa pelo partido Creemos, o ex-presidente do Comitê Cívico Pró Santa Cruz Luis Fernando Camacho.
O ódio ao MAS-IPSP, de acordo com Molina (2020, p. 5), está diretamente associado ao comportamento das elites tradicionais bolivianas, que nutrem a memória dos “prejuízos” colhidos ao longo dos 14 anos de governo do presidente Evo Morales – o que inclui a perda de espaços de poder em decorrência da dissolução da tecnocracia dos anos 1990 e a desvalorização de seu “capital genealógico”; as diferenças ideológicas expressas no par liberal-republicanismo versus nacional-caudilhismo; e o racismo contra as populações indígenas e mestiças. Adicionalmente, suas raízes remeteriam à própria chegada ao poder do “primeiro presidente indígena” do país e à instalação aí de movimentos sociais conformado por indígenas, camponeses(as) e trabalhadores(as).
A aparição do regionalismo cruceño na arena política (pluri)nacional boliviana, por sua vez, remete à questão da distribuição territorial do poder no país, intimamente associado às elites econômicas ligadas à agroindústria e ao setor exportador. Suas raízes mais imediatas remontam à proposta autonomista da chamada “meia lua”, bloco que se insurge contra a Assembleia Constituinte convocada pelo governo do presidente Evo Morales em 2006 e a consequente promulgação da nova Constituição Política do Estado em 2009, conformado pelas elites econômicas dos departamentos de Tarija, Beni, Pando e Santa Cruz.
Segundo aponta Regalski (2007, p. 10), muito embora este movimento regionalista aparente beneficiar as elites econômicas locais, ele implica na prática em uma reconfiguração do eixo geopolítico interno do país, trasladando o centro de poder da região andina para a região oriental, na qual as empresas petroleiras e agroindustriais ligadas ao mercado ou aos capitais brasileiros têm maior peso.
Nesse sentido, pode-se discriminar dois vetores principais que tenderão a afetar (possivelmente comprometendo) a governabilidade na Bolívia durante o novo mandato presidencial que se avizinha: um de natureza interna e outro de natureza externa. Do ponto de vista deste último, tal como sinaliza a ativista feminista Adriana Guzmán, estão em jogo os interesses (e as pressões) em torno de temas como as negociações dos contratos sobre o lítio, a liberalização comercial de cultivos transgêncios, e a privatização de boa parte de uma das principais empresas estatais do país Yacimientos Petroliferos Fiscales Bolivianos (YPFB).
Do ponto de vista interno, por outro lado, somam-se questões como a gestão dos impactos sociais e econômicos da pandemia de COVID-19, a oposição política que congrega setores políticos de centro, de direita e de extrema direita, além de uma parte do Exército contra o MAS-IPSP. A despeito da vitória eleitoral já comemorada e reconhecida (embora não-oficial) desde o último domingo, acrescenta-se o próprio desgaste deste partido na sua pretérita capacidade de unificação das distintas frações da esquerda boliviana, encontrando-se, ademais, envolto em tensionamentos internos (MOLINA, 2020).
Seja como for, a vitória eleitoral do MAS-IPSP na Bolívia – expoente do chamado socialismo do século XXI -, representa um significativo contraponto ao avanço da extrema direita internacional e, particularmente, na América Latina. No limite, maisalém da conjuntura política, tal vitória contribui para a preservação do próprio Estado Plurinacional em suas “tensões criativas”, já que, servindo-nos das palavras de Ponce (2020), o que parece estar em jogo no país é a permanência do reconhecimento da diversidade como fator de coesão da sociedade.
Marta Cerqueira Melo é Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp, PUC-SP), com bolsa CAPES. Pesquisadora do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais (NEAI) e do Observatório de Regionalismo (ODR).
Referências
MOLINA, Fernando. ¿A dónde conducirá la crisis boliviana? Elecciones y reconfiguraciones políticas. Nueva Sociedad. Buenos Aires, n. 288, jul.-ago., 2020, p. 4-14. Conjuntura. Disponível em: https://nuso.org/articulo/donde-conducira-la-crisis-boliviana/. Acesso: 20 out. 2020;
PONCE, Sofía Cordero. Bolivia: el Estado plurinacional en disputa. Nueva Sociedad. Buenos Aires, jan. 2020. Opinión. Disponível em: https://nuso.org/articulo/bolivia-Evo-Morales-plurinacional/. Acesso: 20 out. 2020;
REGALSKY, Pablo. Propuestas autonómicas y crisis de gobernabilidad en Bolivia en un contexto de globalización y etnicidad. Revista Cultura y Religión. Chile, v. 1, n. 1, jun. 2007, p. 11-24. Disponível em: https://www.revistaculturayreligion.cl/index.php/culturayreligion/article/view/205/194. Acesso: 20 out. 2020.
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[1] Destacam-se as missões de observação eleitoral da União Europeia (UE), Centro Carter, União Interamericana de Organismos Eleitorais (UNIORE), Associação de Organismos Eleitorais da América do Sul (Protocolo de Quito), Organização dos Estados Americanos (OEA) e do Parlamento do Mercosul (PARLASUL).
Publicação original : www.cartamaior.com.br/?/Especial/Eleicoes-na-Bolivia-2020/Eleicoes-presidenciais-de-2020-na-Bolivia-e-o-desafio-da-governabilidade-pos-Golpe/250/49065