A história do Brasil republicano é a história da persistência autoritária. Essa condição explica tanto as inúmeras rupturas institucionais vividas, bem como a incidência de despotismos setoriais, como os que vitimam as universidades recentemente.
A referência autoritária ganha sua face original no mandonismo dos coronéis da Primeira República. Trata-se da transposição da lógica do patriarcado rural à realidade urbana: a disposição de ocupar com o mesmo primitivismo o poder político das cidades, manejar como seus os meios do Estado e dominar qualquer livre expressão do pensamento.
Essa tradição sobrevive nos dias atuais, expressa em tantas dinastias políticas que povoam o Congresso Nacional, tantos filhos (e filhas), até netos e bisnetos, e, desde o golpe parlamentar de 2016, estes rebentos foram catapultados ao Executivo nacional.
Uma vítima escolhida de imediato: a educação pública. A ralé brasileira, que adentrava os sagrados espaços da universidade, tidos como privilégio da classe média branca, poderia vir a ser esclarecida sobre a realidade brasileira, sua secular história de opressão racista, machista e oligárquica? Um risco!
A campanha imbecilizante do “Escola Sem Partido” alastrou-se como praga: censura às práticas pedagógicas, aos conteúdos curriculares, combate à categoria de gênero, culminando com a Reforma do Ensino Médio, que torna péssimo o que já é muito ruim.
Essa excrescência agora alcança as universidades no que elas têm de mais definidor: a autonomia. O MEC aciona o Ministério Público por conta de um curso de pós-graduação em Ciência Política da UnB, e o próprio Ministério Público aciona a Unifesp a respeito de uma pesquisa desenvolvida há décadas.
Universidades são formações sociais, quase milenares no Ocidente, constituídas no final da Idade Média separando-se da Igreja, para a instalação de uma esfera pública autônoma a fim de garantir exatamente o exercício da liberdade do pensamento e da expressão intelectual.
É claro que as universidades não são espaços democráticos, pois não oferecem acesso universal a todos e sua própria organização específica, fortemente hierarquizada, estabelece escalas de valores que pouco têm a ver com equidade. Não obstante, o espaço acadêmico é, por natureza, plural e aberto à dúvida e ao debate.
Talvez estas características, numa sociedade tão avessa à liberdade política como sempre foi a sociedade brasileira, expliquem o caráter tardio das universidades entre nós, inauguradas apenas na década de 1930, e só interiorizadas pelo Brasil profundo há poucos anos.
O ato do MEC de tentar coibir a liberdade acadêmica – agravado pelos tuites sem propósito do próprio Ministro da Educação – ilustra tristemente a tradição do mandonismo da província.
Fosse apenas pelo pitoresco, não mereceria mais que o escárnio nas redes sociais. Somado à ofensiva desencadeada contra as universidades públicas, pelo cerceamento de seus recursos ou abusos cometidos pelo aparato judicial, o episódio merece mais atenção.
Reflexões importantes no campo da Ciência Política desvelam a disposição autoritária como o elemento distintivo do neoliberalismo atual. Categorias centrais das “democracias burguesas”, como a legitimação das elites dirigentes pelo voto popular são, agora, desvalorizadas.
À vista dessa ressurgência autoritária no mundo e no Brasil (hoje às voltas com uma intervenção militar nos bairros populares do Rio de Janeiro), devemos assegurar que seja resguardada a autonomia acadêmica, espaço precioso de liberdade nestes duros tempos em que lutamos pela reconstrução da democracia no Brasil.
Margarida Salomão é presidente da Frente Parlamentar em Defesa das Universidades Federais, deputada federal (PT-MG), professora e pesquisadora universitária, e foi reitora da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) por dois mandatos consecutivos.
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