Notícias
Home / Conteúdos / Artigos / Emprego, desemprego, empreendedorismo e as eleições de 2024 |  Carlos Águedo Paiva e Allan Lemos Rocha

Emprego, desemprego, empreendedorismo e as eleições de 2024 |  Carlos Águedo Paiva e Allan Lemos Rocha

1) Empreendedorismo e as eleições municipais de 2024

Muito se tem escrito sobre as eleições de 2024 e o desempenho insatisfatório da esquerda nesse pleito. Um dos temas que vem galvanizando as atenções é o tema do desemprego. Muitos analistas se mostram surpresos com o descompasso entre a queda do desemprego ao longo dos dois anos da gestão Lula e o crescimento bastante discreto do número de prefeituras conquistadas pelo PT e por partidos mais próximos de seu espectro ideológico (PSOL, PcdoB, PSB, PV e Rede) nas eleições recentes. Tal como procuraremos demonstrar na próxima seção, a percepção de um tal “descompasso” envolve uma compreensão parcial e insuficiente desse indicador peculiar que é a “taxa de desemprego”.

O segundo tema é, de certa forma, um desdobramento do primeiro: a questão do empreendedorismo e a carência de projetos e políticas dos partidos de esquerda para os trabalhadores precarizados, sem vínculo formal de trabalho, e que estão sendo obrigados a se inserirem na periferia do sistema. Não são poucos os analistas que associam o desempenho insatisfatório da esquerda com as carências programáticas para esse público particular. Rosana Pinheiro Machado vêm se dedicando há anos ao tema da relação entre precarização do trabalho e o crescente conservadorismo em certos segmentos da população mais pobre. Vale ler a entrevista que a pesquisadora deu à Deutsche Welle e que foi reproduzida na Carta Capital há dois anos atrás. Igualmente premonitória foi a entrevista concedida ao jornal Brasil de Fato em meados desse ano. Por volta do sétimo minuto, Rosana alerta para o fato de que

Muitas vezes a gente esquece que as pessoas que estão, em tese, defendendo o desmonte do bem-estar social foram pessoas que não tiveram acesso a muitas das vantagens do estado de bem-estar social, que estão na informalidade, que estão aí, trabalhando de camelô 15 horas por dia. É com essas pessoas que um projeto de esquerda tem que dialogar. Nós temos que pensar em formas de abarcar essas pessoas, com mais direitos sociais, mais provisão de bens e direitos

Mas nem todos concordam com esse diagnóstico. Em artigo recentemente publicado em A Terra é Redonda, Lincoln Secco faz a crítica da crítica de Rosana. Sua crítica está longe de ser dogmática, e conta com duas dimensões. Em primeiro lugar, ele chama a atenção para o fato de que foi nos governos Lula 1 e 2 que foram instituídos o Simples Nacional e o programa de Microempreendedor Individual (MEI). Vale dizer: Secco procura mostrar que não é verdade que a esquerda não tenha este público como foco, que o ignore, que não tenha programas para o mesmo. Mas isso não o impede de também lançar suas baterias críticas para um outro lado. Ele chega caracterizar o programa do “Jovem Empreendedor” de Tábata Amaral (que foi incorporado ao programa de Guilherme Boulos no segundo turno) de “mirabolante”. E tenta demonstrar o equívoco daqueles que defendem a necessidade de novos programas para os jovens empreendedores argumentando que

“de acordo com pesquisa da FGV-Ibre 70% dos autônomos querem CLT e esse percentual chega a 75,6% dos informais com renda de até um salário-mínimo” Com esse simples cotejo casual de afirmações da esquerda com dados empíricos podemos perceber que as análises não estão sendo calibradas pela realidade, mas por impressões subjetivas. 

A nós parece que é Secco quem “subjetiva” a questão. Não conhecemos um único autor que pretenda que os trabalhadores sejam os agentes da precarização do trabalho no mundo contemporâneo. Não se trata de pretender que eles “prefiram trabalhar no Uber ou como camelôs do que ter um emprego estável e bem remunerado”. Para sermos francos, nos parece até baixa a percentagem (entre 70 e 75%) dos que manifestam um desejo “subjetivo” de voltar aos bons tempos do fordismo. A questão, contudo, não é de “querer”, mas de “poder”. Tal como Carl Benedikt Frey nos explicou em The Technology Trap, a robotização está realizando, hoje, a automação e a negação do trabalho industrial que Marx previra para o final do século XIX e início do século XX. E tal como Yanis Varoufakis vem tentando nos ensinar, o processo de redefinição do papel do trabalho no mundo contemporâneo é absolutamente radical, e coloca em xeque o próprio modo de produção capitalista (em outro artigo na RED, buscamos apresentar as teses desse autor). O que importa entender é que esse segmento de trabalhadores precarizados não para de crescer. E vai continuar crescendo. O que tem graves desdobramentos em termos de políticas públicas, programas sociais e de interlocução política. Mais: este segmento cresce mesmo quando seu crescimento não é aparente. Há muito mais precariedade no “emprego formal” de hoje em dia do que supõe aquele que interpreta as estatísticas de emprego e desemprego com os olhos e os óculos do século XX. Senão vejamos.

2)A ilusão do baixo desemprego

Em primeiro lugar é importante esclarecer que existe mais de uma pesquisa sobre emprego e desemprego no Brasil. Nós estamos tomando por referência os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua Trimestral – PNADC/T. A partir do último trimestre de 2015, a PNADC/T passou a diferenciar os formalmente ocupados dos ocupados informais. Essa é a razão de tomarmos 2015 como nosso ponto de partida.,

Quadro 1: Evolução do Mercado de Trabalho entre 2015 e 2024

Na primeira coluna com dados numéricos, nós temos a informação da População em Idade Ativa (PIA), vale dizer, do conjunto das pessoas com 14 anos ou mais. Na terceira linha desta coluna (como nas demais) temos a variação absoluta entre os dois períodos; e, logo abaixo, a variação percentual. Entre 2015 e 2024 a PIA cresceu em 8,91%. Na coluna ao lado temos o número de pessoas que, apesar de estarem em Idade Ativa, não estão no mercado de trabalho. Essas pessoas não estão, nem empregadas, nem desempregadas: elas simplesmente não estão em busca de trabalho. Em termos absolutos o crescimento desse segmento é menor do que a PIA, mas em termos relativos (percentuais) é mais elevado: o grupo de pessoas fora do mercado de trabalho cresceu 11,01%. Essa evolução é indissociável do crescimento da cobertura dos benefícios sociais, em especial (mas não só) do Bolsa Família. E o seu desdobramento é, ao retirar pessoas do mercado, deprimir a taxa de desemprego.

Na terceira coluna com dados numéricos, temos a evolução do número de pessoas que estão no mercado de trabalho. A expansão relativa desse segmento é a mais baixa dentre todos os segmentos com crescimento positivos: ela foi de 7,66%. Em termos absolutos, o número de pessoas que ingressaram no mercado de trabalho superou o número dos que não ingressaram em um milhão e cento e sessenta e seis mil pessoas. O número de desempregados, por sua vez, caiu 1 milhão e seiscentos e oitenta e um mil pessoas, uma queda percentual de -18,23%. Porém, a taxa de desemprego decresceu de forma mais significativa. Por quê? Porque ela também é impactada pela queda

percentual do Mercado de Trabalho em relação à PIA (de 62,8% em 2015, para 62,1% em 2024). Por fim, temos a evolução da ocupação. Do aumento de 9 milhões e 464 mil postos de trabalho entre 2015 e 2024, 42% do total são postos informais; e 58% são postos formais. Assim, a ocupação informal cresceu percentualmente mais (11,21%) do que a ocupação formal (9,65%).

Em suma: a queda do desemprego recentemente é indissociável do crescimento relativamente baixo do mercado de trabalho (em função de um crescimento menor da PIA e do crescimento significativo do número de pessoas fora do mercado) e ele se deve, em termos relativos, mais ao crescimento do trabalho informal do que do formal. Mas isso não é tudo. Há mais a considerar.

O primeiro é: o que é “ocupação formal”? Quem olha os dados com a “cabeça do século fordista” pensa, imediatamente, em: 1) trabalhadores com carteira assinada; e 2) funcionários públicos estatutários. … Pois é; pois é. Mas, no Brasil do século XXI, após a criação dos MEIs surge uma nova categoria de agentes formalmente ocupados. Eles mesmos: os MEI. Entre 2015 e 2024 foram criadas 6 milhões 434 novos empreendimentos individuais. Note-se que este número é maior do que a variação do número de empregados formalmente ocupados entre estes dois anos, que foi (veja-se o Quadro 1, acima) de 5 milhões e 501 mil novos postos. Como isso é possível?

Simples: muitas vezes, o Microempreendimento Individual é uma fonte extraordinária de renda. Diversos trabalhadores que estão formalmente empregados no “padrão século XX” e que não tem compromisso de dedicação exclusiva criam o MEI para prestarem serviços que lhes garante uma remuneração extra. Mas ela não é a fonte principal.

Infelizmente, não é possível saber – nem mesmo através do acesso aos microdados da PNADC/T, quantos são os ocupados “formalmente” que tem apenas o MEI como fonte de renda e quantos contam com outra fonte principal. Isso nos impede de sermos mais assertivos no que diz respeito à evolução da “formalidade” nos anos recentes. Mas não nos impede de fazer um exercício que pode ajudar na compreensão do problema para o qual queremos apontar. Imaginemos que 50% dos MEIs criados entre 2015 e 2024 sejam a única fonte de rendimento de seus criadores; e que outros 50% sejam empreendimentos voltados ao complemento de renda. E vamos dividir a população ocupada total em três categorias: Informal, Formal Século XX (ou seja: carteira assinada e funcionários públicos) e “Formal MEI”. E vamos ver a que resultados chegamos com esse exercício.

Quadro 2:

Evolução da População Ocupada Informal, Formal XX e Formal MEI entre 2015 e 2024

Qual o resultado de nosso exercício? O crescimento da ocupação estritamente formal – no sentido do século passado – teria sido de algo em torno de 2 milhões e 282 mil trabalhadores; 24,11% dos 9 milhões e 464 mil novos postos de trabalho. O crescimento do Formal MEI corresponde a 3 milhões e 220 mil postos de trabalho; 34% do crescimento dos ocupados totais e 58,5% do crescimento de ocupados formais. E os informais respondem por 41,87% dos novos ocupados. Nessa simulação, se tomamos em conjunto os postos informais e formais MEI, eles responderiam por 75,89% dos novos postos de trabalho gerados na última década.

Vale insistir neste ponto: trata-se de uma simulação; de uma mera hipótese. Estamos em contato com os técnicos do IBGE para avaliar a possibilidade de termos acesso a dados mais rigorosos sobre a divisão do crescimento do emprego formal, diferenciando os “formais MEI” dos “formais tradicionais”. Mas, cremos nós, mesmo tendo um caráter meramente hipotético, essa simulação pode contribuir para que alguns dos analistas de esquerda que não entendem por que as eleições recentes não foram uma “festa do governo Lula” passem a olhar para a realidade econômica com um pouco mais de complexidade e não apontem com tanta veemência o dedo indicador e acusatório para a turma do andar de baixo.

Carlos Águedo Paiva é Diretor da Paradoxo Consultoria Econômica e professor de economia.

Allan Lemos Rocha é Estatístico e Mestre em Planejamento Regional e Urbano.

Via Rede Estação Democracia.

Veja também

A fadiga do espetáculo | Luiz Marques

Na expressão de David Harvey, em Crônicas anticapitalistas: Um guia para a luta de classes …

Comente com o Facebook