Artigo de Juarez Guimarães afirma que há hoje plena legitimidade política e acúmulo de condições econômicas favoráveis para que o governo Lula mude a direção do Banco Central brasileiro.
Por Juarez Guimarães
Atingida no centro de seu poder econômico e legitimidade política pela maior crise mundial do capitalismo desde 1929, a matriz neoliberal busca se reposicionar para a disputa. No Brasil, além das candidaturas Serra e Aécio, que organizam em matizes diferentes o receituário liberal privatista para a disputa política central de 2010, é muito visível um conjunto de iniciativas do comando do Banco Central brasileiro.
Houve, como se sabe, no Brasil, uma temporalidade, dinâmica e profundidade diversas da crise que atingiu as economias capitalistas centrais. O primeiro campo de iniciativas do presidente do BC, Henrique Meireles, vem sendo, com o apoio da mídia empresarial, apropriar-se publicamente do descompasso do Brasil em relação a uma dinâmica mais profunda da crise e da sua superação virtuosa em curso.
Ora, o sistema financeiro no Brasil estava mais protegido da especulação financeira desregulada? Sim, porque, em grande medida, os ganhos extraordinários do capital financeiro estavam – e ainda, em certa medida, estão – institucionalizados pela manutenção de um escandaloso patamar da taxa Selic e por uma ampla desregulamentação do controle de fluxo de capitais. Do início do Comitê de Política Monetária (Copom), criado em 1996, até 2006, a taxa de juros reais, medida pela taxa Selic, manteve-se sempre acima de 12,8 % ao ano. Essa situação causou um estrago estrutural na dinâmica de crescimento da economia e um verdadeiro rombo nas finanças públicas.
Se isso é verdade, não o é menos que a crise internacional instalou-se no Brasil principalmente através do sistema financeiro e do sistema de crédito. Esse foi, sem dúvida, o caminho de contágio: via ação do BC que, com a crise instalada claramente no sistema internacional por mais de um ano, ainda manteve uma tendência altista da taxa Selic, só revertida, em doses homeopáticas, a partir de janeiro de 2009. Tão grave quanto isso, o BC liberou a partir de outubro de 2008 100 bilhões de reais dos depósitos compulsórios, sem nenhuma obrigação de metas para volume de créditos e taxas de juros. Em plena crise, o que se viu foi o sistema bancário privado retrair violentamente o crédito e elevar juros, com a complacência do BC brasileiro!
É ainda sem credibilidade a noção que foi a redução continuada da taxa Selic a partir de janeiro que marcou a retomada. Como afirmou o ministro Mantega, o centro da retomada esteve desde o início vinculada a uma política fiscal agressiva, de aumento do gasto público, do crédito público e de redução de impostos para setores econômicos chaves na cadeia de empregos. A queda da taxa Selic, que não foi acompanhada de modo algum pelas taxas de juros praticadas pelos bancos privados, foi decisiva sim para diminuir o impacto desta política fiscal agressiva sobre a dívida pública (a diminuição de cinco ponto na taxa Selic gera anualmente uma economia de cerca de 40 bilhões na dívida pública).
Um outro campo de iniciativas do BC está no anúncio de medidas para incentivar a concorrência para diminuir o altíssimo spread praticado no Brasil pelos bancos privados e aliviar a escandalosa taxa de juros e ganhos extras pelas empresas que controlam oligopolisticamente os cartões de crédito. A baixa inflação e a queda da taxa Selic expõe mais claramente estes absurdos para uma opinião pública democrática. A idéia de que, frente à alta concentração bancária que existe no Brasil, o “incentivo à concorrência”, pode, por si só, modificar esta situação absurda é um grande mito liberal. A concorrência dos bancos públicos, é certo, pressiona: o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal já praticam, embora ainda altos, juros para empréstimo pessoal de cerca da metade do praticados pelos grandes bancos privados. Mas é claramente insuficiente: o que é necessário é uma regulação direta do Banco Central – estabelecendo metas, por exemplo – para, de fato, civilizar, isto é, trazer para a média internacional, os spreads e juros praticados no Brasil.
Um terceiro campo de iniciativa do BC brasileiro – também escandaloso, de todos os pontos de vista possíveis – é o recente estímulo a uma perspectiva altista para a taxa Selic, como contrapartida à expansão do crédito e, principalmente, à política fiscal anti-cíclica praticada pelo Ministério da Fazenda. Diante de um tal disparate neoliberal, a reação pública do Ministério da Fazenda – qualificando essa ação como uma espécie de terrorismo fiscal – foi correta e necessária! Mais do que isso, é um debate que deve ser ampliado.
Por fim, o presidente do Banco Central, Henrique Meireles, filiou-se ao PMDB, indicando possivelmente uma candidatura ao Senado por Goiás. O Senado brasileiro é, por causa da sua função, um lugar privilegiado de investimento dos financistas brasileiros. E, mais, a mídia empresarial já começa a trabalhar a sua sucessão no BC, indicando para o posto um diretor tão ou mais neoliberal, para “não assustar o mercado”.
Diante deste campo de iniciativas, a pergunta central a se fazer é: será que a penosa e sempre reposta arbitragem entre neoliberais e desenvolvimentistas, que marcou tão fortemente a primeira gestão do governo Lula e ainda polariza, em alguma medida, a gestão econômica na segunda gestão, tem razão de ser? Não já se criaram uma legitimidade internacional nova, uma correlação de forças internas novas, uma dinâmica econômica soberana mais assentada, um posicionamento dos bancos públicos mais fundado, para dar o passo seguinte e necessário: superar a direção neoliberal do Banco Central brasileiro ?
Responsabilidade do PT
Como partido que cultiva os valores do socialismo democrático e lidera a coalizão que sustenta o governo Lula, o PT tem o dever de publicamente liderar um posicionamento e uma campanha pela completa desfinanceirização do país, isto é, pelo fim da subordinação do Estado brasileiro aos interesses do rentismo privado.
Haverá sempre alguém a argumentar que isto é muito radical e que é mais sensata uma inteligente negociação pragmática com os neoliberais entrincheirados no BC. O que se está se propondo não é, no entanto, nenhuma revolução: que o BC brasileiro tenha, pelo menos, uma direção keynesiana, isto que combine o controle da inflação com a defesa do crescimento e do emprego; que, através de uma sensata regulação, alinhe os spreads e juros praticados no Brasil ao padrão internacional ; que republicanize o seu funcionamento através de uma nova institucionalidade que o proteja da captura permanente pelos interesses do capital financeiro organizado. Lembremos que no processo Constituinte de 1988, o companheiro Gushiken propôs a nacionalização dos bancos brasileiros, proposta que foi apoiada,então, por boa parte da bancada do PMDB.
Este campo de iniciativas é vital, pois afeta profundamente o futuro do Brasil: a dinâmica macro-econômica (câmbio e taxas de juros, formação do investimento e balança comercial), a distribuíção de renda (o rentismo é a forma mais eficiente de concentrar renda), o horizonte das políticas sociais (em sua coluna na revista Teoria & Debate, o economista Amir Khair calcula que se o Copom tivesse mantido de 1997 a 2008 a média da taxa Selic não em 18,7 % como foi mas em 13,6 %, ainda assim um patamar bastante elevado, a economia das despesas com juros teria atingido 1,4 trilhões de reais, suficiente para resolver todo o déficit habitacional brasileiro e pagar o Bolsa Família durante cem anos). O que está em jogo nesta questão é o próprio sentido da democracia brasileira.