O brasileiro acredita na polícia. Acredita na polícia como também acredita que há maus policiais. E isso da mesma forma que acredita na justiça e sabe que há maus juízes. O sucesso alcançado pela celebração induzida da Lavajato e da figura de Sergio Moro em boa medida se explica porque a atuação dele foi apresentada como a exceção. Finalmente havia aparecido um juiz que cumpria seu papel e fazia justiça. Explicar a natureza de classe da justiça ou da polícia para um público amplo e heterogêneo não é tarefa fácil. Esclarecer que quando a exceção do mau policial é na verdade a regra, e que, portanto, há algo errado num nível mais profundo e do mesmo modo demonstrar que não se trata de pessoas boas ou más, e sim de instituições e políticas estruturadas para reprimir, aterrorizar e matar, é tarefa urgente. Demonstrar que há um racismo institucionalizado e instrumentalizado que se apresenta como uma guerra as drogas, um inimigo aparentemente sem rosto, é um desafio que não pode ser adiado.
No caso específico da polícia militar vivemos uma celebração diuturna e constante. Os policiais que matam os negros pobres e jovens nas periferias das cidades são apresentados pela esmagadora maioria dos órgãos e agentes formadores de opinião, e consequentemente assim vistos, como vetores da ordem e da segurança que cumprem a lei e matam bandidos. Que esse justiçamento ocorra e que a polícia aja como acusador, juiz e carrasco é algo que se deve aceitar já o que os juízes não fazem justiça.
Antes de tudo é preciso não esquecer nem subestimar o fato de que na origem do êxito político por Bolsonaro estão duas verdades (meticulosamente) construídas. A primeira delas reza que “bandido bom é bandido morto”. A outra é que “os políticos são todos corruptos”. Coincidentemente são duas pautas postas e abertas na sociedade para as quais o PT, assim como a esquerda, não dispõe de um discurso claro para oferecer ou contrapor.
O que incomoda a razão, ou surpreende de algum modo é que uma boa parte do Brasil já sabe há muito tempo que (há séculos) a carne negra é barata nesse país. O que falta é contar essa estória à outra parte. Sem medo.
Antes, porém, essa parte que sabe, e aí está incluído como primeiro da lista o PT, precisa adotar uma política de segurança pública que enfrente o discurso do ódio e que não se intimide ao defender a universalidade dos direitos humanos, para negros, pobres, nas favelas, nas quebradas, para as prostitutas, os travestis e também para o avião ou o correria do tráfico. Que pecado há em defender os mais fracos, os vulneráveis?
O PT ocasionalmente defende a desmilitarização da polícia e a descriminalização do uso de drogas. Aqui e ali há manifestações de dirigentes do partido nesse sentido. Porém, quando olhamos para o plano de governo que o PT apresentou em 2018 vemos um quadro muito mais confuso onde inexiste uma postura de enfrentamento ao discurso do ódio.
O documento dedica 26 parágrafos, três páginas, ao tema da segurança pública. O problema não está no detalhamento técnico ou na profundidade. O efetivamente lamentável é que não há uma política que ilumine o texto. O plano fala em sistema único de segurança pública, em diminuir a pressão sobre o sistema carcerário, em coibir roubos e furtos com policiamento preventivo, em combate a homicídios e a impunidade. Há, por de um lado, uma rejeição clara e explícita do modelo de “guerra às drogas” e repúdio explicito aos “autos de resistência”. Entretanto, se por um lado o plano aborda, mesmo que lateralmente, pontos críticos, por outro lado o tom geral é de melhor gestão e eficiência sem pôr em questão ou deslegitimar o discurso de exclusão, ódio, armas, violência e morte que hegemoniza a sociedade brasileira.
Não se trata somente da execução fria e planejada de Marielle, mulher, negra, vereadora, homossexual, de esquerda, ou do extermínio dos jovens negros nas periferias. Estamos diante de um discurso de ódio e exclusão que nos cerca e encurrala diariamente nos programas de jornalismo policial sensacionalista dos fins de tarde da televisão ou na estética militar dos agentes privados de segurança com seus coturnos, coletes, algemas e cassetetes, muitos também com armas de fogo. Não por acaso essa estética se assemelha em muito à Alemanha dos anos 20, da República de Weimar, onde os soldados desmobilizados em 1918 inicialmente por pobreza usavam seus antigos uniformes militares e que a seguir, por desígnio, passaram a formar as milícias, elemento fundamental no processo que culminou na ascensão de Hitler em 1933.
Não podemos esquecer que ao arrepio da própria constituição vimos a criação de mais uma força armada de segurança no país. As guardas municipais que desempenham um papel de força de segurança pública de facto surgiram num processo cínico, gradual, silencioso e hoje atuam na mesma lógica de repressão e violência das polícias militares configurando mais um contingente armado mobilizável por Bolsonaro.
Essa atitude meia-sola, pragmática, preocupada em não desagradar pra ganhar eleição permitiu que a política do bandido, morto, versus o cidadão de bem penetrasse a sociedade e chegasse a cada vez mais palácios até atingir o Planalto. Nem é preciso dizer que essa lógica tem uma incrível capilaridade. A família está sob ameaça da educação sexual nas escolas, os funcionários públicos e os petistas não trabalham e vivem de mamata, os pobres não trabalham porque recebem bolsa-família.
Depois da derrota eleitoral e política de 2002 e ainda mais depois que o mensalão não fez ruir o governo Lula a direita recuou e se reorganizou deslocando o enfrentamento para o campo ideológico onde desfrutava de vantagem acumulada.
O impeachment de Bolsonaro ainda é possível, a derrota em 2022 parece hoje provável, mas está longe de certa. É preciso entender que há um cimento (ideológico, de valores) que une a complacência do ministério público com a atuação criminosa da polícia militar e que resulta no arquivamento dos autos de resistência e na impunidade, que justifica a guerra as drogas perante a opinião publica e que banaliza a violência. Se a política social dos governos do PT inverteu, ainda que frágil e brevemente, a naturalização da exclusão social e econômica no Brasil, agora é preciso que a política enfrente abertamente, com serenidade e sem medo a política de ódio, violência e morte.
- Everaldo Fernandez é professor da Faculdade Direito da Universidade Federal do Amazonas (1991).