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Entre a civilização e a barbárie | Luiz Marques

No campo, o agronegócio expõe a visão colonialista sobre o território e os povos originários, como prova a invasão das áreas indígenas pela agricultura tipo exportação e a pecuária “para passar a boiada”, na Amazônia. A legislação é letra morta para aqueles que se consideram os “donos das terras”. A extensão da proteção dos direitos trabalhistas às lides rurais nunca foi aceita, de fato. O extrativismo e o trabalho escravo são crimes colaterais da dominação dos neocolonizadores. A propósito, ver o filme Pureza (2022), de Renato Barbieri, inspirado em fatos reais e revoltantes.

Na cidade, empresários predadores de direitos, para os quais o desgoverno funciona como “capitão do mato” a serviço da acumulação, têm a mesma visão colonial-escravista. Não perdoam a inclusão dos trabalhadores domésticos na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), com a obrigatoriedade da carteira, férias e décimo-terceiro. Preferem a reforma trabalhista e previdenciária, o teto de gastos públicos e o entreguismo privatista, carimbados pelo vice golpista Michel Temer; o traidor que rasgou o programa de governo eleito com a presidenta Dilma Rousseff. Conforme o site Metrópoles, setores do empresariado – tendo na proa o caricato “véio da Havan” e um pastiche da Estátua da Liberdade – tramam o próximo golpe se a “Frente Juntos Pelo Brasil” liderada por Lula vencer as eleições. Assusta-os a ideia republicana de soberania popular. Odeiam a democracia.

No arco que compreende o campo e a cidade, o bloco de classes hegemonizado pelas finanças não possui um autêntico projeto de nação. O domínio que exerce não tem compromisso nenhum com o futuro. Sua gramática se resume à opressão e à exploração. Sua sintaxe é uma ode à relação de mando e obediência. Séculos de escravidão formataram a falta de empatia com os humildes e, em simultâneo, o complexo de vira-lata das classes dominantes diante das potências estrangeiras. Antes, em viagens à metrópole portuguesa, Lisboa; agora, à breguice estadunidense de Miami.

A burguesia brasileira serve-se da ética nietzscheana, que contrapõe os fortes aos fracos. Negros, mulheres, gays, trabalhadores braçais, analfabetos e pobres em geral são os subalternizados do tabuleiro. Vítimas de preconceitos, ocupam lugares secundários no circuito produtivo, quando conseguem. Carecem do estatuto de cidadania, anunciado nas promessas emancipadoras (liberté, égalité, fraternité) da Revolução Francesa, na alvorada da Idade Moderna. Na condição de subcidadãos precarizados e excluídos dos predicados da espécie, uma vasta parcela da população é despojada de oportunidades e dignidade. O sistema alija-a dos ideais da sociabilidade humana. Como na canção: “Ninguém morou na dor que era o seu mal / a dor da gente não sai no jornal”.

Para Antonio Gramsci, na década de 1930, a luta para construir uma contra-hegemonia passava pelo combate: a) ao senso comum, isto é, a ideologia dos poderosos para justificar a subordinação socioeconômica e; b) à religião que legitimava então a repressão estatal contra os movimentos sociais e, no papado de Pio XII, era conivente com a ascensão do nazifascismo na Itália e na Alemanha. De lá para cá, os instrumentos de alienação se sofisticaram, ampliaram e massificaram. Uma recontextualização das notas acima, hoje, implica em desmascarar: a) o dissimulado discurso da meritocracia que oculta as desigualdades de nascimento e; b) a hipócrita teologia que usa a boa fé dos fiéis para enriquecer os pastores / adoradores do “bezerro de ouro”. Desmascaramento, já.

 

Liberdade ainda que tarde

Na França, em 1945, as pessoas acreditavam que a URSS vencera a Segunda Guerra. No entanto, uma pesquisa feita com a geração posterior apontou uma mudança de percepção por efeito da filmografia de Hollywood, encenando os EUA como os vitoriosos. Marshall McLuhan revela que “os meios influenciam a recepção das mensagens”. Shoshana Zuboff denuncia “a era do capitalismo de vigilância”, onde os algoritmos desvendam o desejo dos consumidores para prever e direcionar o consumo. Eugênio Bucci, ao estudar a “superindústria do imaginário” conclui que “perto disso, o 1984 de George Orwell é uma fábula infantil”. As imensas potencialidades contidas nos avanços tecnológicos não revigoraram a representação ou a participação, senão o poder das Big Techs.

No terreno da política, a extrema direita se utiliza dos recursos tecnológicos à disposição para fraudar o resultado das urnas. Vale qualquer expediente (robôs, fake news, deep fakes) para que os meios possam sobredeterminar e manipular a vontade do eleitorado. Este é o auge da conversão de tudo e todos em objetos de decoração, na sociedade de espetáculo. Caracteriza o padrão emergente de enfrentamento político-eleitoral, rumo ao Estado iliberal, que subjuga o devir ao cálculo da fria racionalidade na corrida para a superação da ética e do direito. Na fala do ex-secretário de Cultura de Florença, Giuliano Da Empoli, em Os Engenheiros do Caos (Vestígio): “No mundo de Donald Trump e Jair Bolsonaro, cada dia surge com uma gafe, uma polêmica, a eclosão de um escândalo”. O rompimento sistemático das normas constitucionais e leis cria um novo habitus, entre os comuns. Aberta a tampa do esgoto, subiram ao cume o fanatismo, a intolerância, a ignorância e a corrupção.

O habitus, na acepção de Pierre Bourdieu, no caso, afora fixar um esquema de ação (“rachadinhas”) sedimenta as estruturas cognitivas duradouras (racistas, sexistas), engendra o gosto (camiseta verde-amarela da CBF), os julgamentos éticos (seletivos, que ignoram 51 imóveis comprados em dinheiro vivo), as práticas culturais (das tradições desigualitárias) e as preferências políticas (autoritárias e totalitárias) que remetem o destino pátrio para a distopia. O pertencimento a uma classe, um grupo ou categoria profissional acarreta vivências e posições semelhantes na hierarquia do capitalismo. Assim, se reproduzem as iniquidades, os estigmas, as injustiças e os privilégios. Os indivíduos agem condicionados pelas estruturas objetivas, mas também agem influenciados pelas respostas dadas nas situações que compõem as suas experiências, ao longo da história (00,01,02,03,04).

Cada pessoa tem um duplo; de um lado, a singularidade de um corpo limitado e perecível e, de outro, os coletivos que conferem a autoestima, o reconhecimento e a identidade pública para canalizar os perfis no plano político e ideológico. Bolhas neofascistas se distinguem pelos sinais simbólicos de violência, ao invés do respeito às “regras do jogo” próprias do Estado de Direito democrático. Os ogros aplicam táticas para testar e esticar, mais e mais, o limite de tolerância das instituições. Intimidações, agressões discriminadoras, misóginas ou homofóbicas fazem parte do cardápio de quem não sabe comer com talheres, e sequer manter a boca fechada em um velório.

As mentiras reiteradas com desfaçatez na propaganda bolsonarista de rádio e televisão na campanha, sem que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) restabeleça a verdade e aplique as devidas sanções, somadas às ameaças de arma em punho a militantes e simpatizantes da candidatura progressista, com mortes contabilizadas a exemplo do petista Marcelo Arruda, no Paraná, – não deixam dúvida de que estão em disputa os valores da civilização contra os desvalores da barbárie e da destruição. Para salvar a República, é um dever moral destituir o genocida no primeiro turno.

No momento, nem Ciro Gomes (PDT) nem Simone Tebet (MDB) parecem pensar no dilema dramático vivido pelo Brasil. Minimizam o significado de 400 mil mortes evitáveis na pandemia, fruto do negacionismo sobre a doença viral e a vacinação, pelo mais sórdido e mentiroso governante do planeta. Minimizam a dinâmica de desindustrialização em marcha, a multidão de desempregados e os milhões de esquecidos que padecem a insegurança alimentar e a fome. Minimizam as investidas para armar o arsenal do crime organizado e promover a brutal regressão do país ao “estado de natureza” miliciano. Com cara de paisagem, ambos ainda sustentam a candidatura para o Palácio do Planalto, sem metabolizar as consequências do perigoso flerte com a tragédia. Como no poema de Bertolt Brecht: “Por que não visitam as nossas feiras? Não fiquem tanto tempo à mesa!”

A “terceira via”, alavancada pela mídia corporativa durante meses a fio, fracassou. Os eleitores pedetistas e emedebistas não podem deixar a sua consciência refém da vaidade de líderes que se comportam como linha auxiliar do neofascismo (logo, do neoliberalismo). A boa política cobra coerência e desprendimento. Chega de desafiar os deuses na roleta da irresponsabilidade. É hora de recolocar o processo histórico e a esperança nos trilhos da democracia. Libertas quae sera tamen.

Luiz Marques é Docente de Ciência Política na UFRGS, ex-Secretário de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul.

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