Agrodisputas. Definições no campo opõem agricultura familiar e agronegócio.
Por Caio Galvão*
A busca por alternativas para o modelo de desenvolvimento brasileiro passa pela definição de um novo padrão também para o meio rural. Modelos distintos de produção e de distribuição de terras conduzem a diferentes resultados. O próprio governo já se mostrou internamente dividido na orientação de políticas públicas. O debate, no entanto, revela que ainda há muitas visões mitificadas.
A suposta inviabilidade econômica da agricultura familiar é um desses mitos. Este universo é hoje responsável pela maior parte da produção dos alimentos que compõem a cesta básica do brasileiro. O modelo familiar responde por 77% dos postos de trabalho no campo e tem participação expressiva na cadeia produtiva de importantes produtos de exportação, como leite e frango. Tudo isso sem assistência técnica, com um acesso ao crédito inferior ao seu peso na produção e sem um sistema de inovação tecnológica adequado às suas características.
Para além dessa importância econômica, a agricultura familiar contribui para um padrão mais equilibrado de ocupação do território, do ponto de vista espacial e ambiental. Isso também se observa nos assentamentos de reforma agrária. Pesquisas mostram que os assentamentos resultam em melhoria das condições de vida da população beneficiária e produzem importantes impactos sobre a região, diversificando a produção e dinamizando a atividade econômica.
Modernização conservadora
Os que alegam a inviabilidade desse modelo o fazem de forma indireta, defendendo as conquistas da modernização conservadora da agricultura brasileira. Em geral, põem em destaque os ganhos de produtividade e competitividade, mas desconsideram outros de seus efeitos bastante conhecidos.
A concentração da propriedade de terra é o mais imediato deles. Outra distorção é a injeção de subsídios expressivos – na forma de crédito e pesquisa – para a consolidação de um modelo tecnológico intensivo na utilização de insumos, cada vez menos demandante de força de trabalho.
Ocultando os efeitos sociais e ambientais, os arautos do agronegócio sustentam seu discurso numa suposta dualidade. De um lado estaria o setor “moderno”, “que produz”, a agricultura patronal rebatizada, com seus expressivos resultados comerciais e sua independência do Estado. De outro, o campo dos conflitos, das ocupações com motivações políticas, da agricultura familiar, que para sobreviver precisaria ser objeto de políticas sociais.
A criminalização dos movimentos sociais do campo durante o governo FHC e a associação do agronegócio com a estabilidade econômica, por meio de sua contribuição para o saldo comercial, reforçaram esta caracterização, que mais oculta do que desvela. Até porque, a própria dinâmica que impulsiona essa capacidade exportadora é a mesma que produz e reproduz a desigualdade no meio rural brasileiro.
Em disputa
Duas questões objetivas concretizam essa disputa de modelos. O primeiro é o debate sobre as redefinições no comércio internacional. Para o Ministério da Agricultura e a Confederação Nacional da Agricultura, a prioridade é a ampliação do acesso a mercados de exportações, o que justificaria concessões brasileiras em outras áreas, como compras governamentais e propriedade intelectual. Eles consideram o aumento do comércio como condição para o desenvolvimento.
Já o Ministério do Desenvolvimento Agrário, ao lado do Itamaraty, vem defendendo a visão oposta. As definições sobre comércio é que devem estar subordinadas a um projeto de desenvolvimento. Mantém-se a demanda pela ampliação do acesso a mercados, mas ganha peso a necessidade do país preservar sua capacidade de implementar políticas internas.
A segunda polêmica refere-se à lei de biossegurança, cujo principal debate público é sobre a liberação da soja transgênica. A polaridade se repete. De um lado, os que sustentam a liberalização, que “proporcionaria vantagens comparativas ao Brasil e uma ampliação de nossas exportações”. Do outro, os que defendem o princípio da precaução e do risco da dependência que os agricultores passariam a ter das indústrias químicas, hoje proprietárias das indústrias de sementes.
Defensores dessa vertente, os pequenos agricultores e os sem-terra conquistaram boas perspectivas a partir do Plano Nacional de Reforma Agrária (ver texto abaixo). As alianças sociais galvanizadas no processo de construção do Plano fortalecem o campo político que defende esse modelo. Do outro lado, as crises econômica, urbana e ambiental revelam os limites do atual padrão de acumulação.
Assim, fica claro que a questão agrária deve integrar a agenda econômica, como condição estruturante de alternativas sintonizadas com um projeto democrático e popular. A reforma agrária e o fortalecimento da agricultura familiar são condição não apenas para um novo padrão de desenvolvimento rural, mas para reestabelecer novas bases de um projeto de nação.
*Caio Galvão é coordenador do Núcleo de Estudos Agrários de Desenvolvimento Rural (NEAD)