O Portal Democracia Socialista entrevistou o psicólogo e professor universitário Túlio Batista Franco, sobre as ações desenvolvidas pela Frente pela Vida. Franco é Mestre e Doutor em Saúde Coletiva pela Unicamp, membro da Rede Unida, Diretor do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal Fluminense e faz parte da Operativa da Frente pela Vida(FpV).
Nesta entrevista ele fala sobre a articulação para a criação da FpV, da construção de consensos, da unidade de atuação, bem como dos desafios que estão colocados para a Conferência Nacional Livre Democrática e Popular de Saúde, que acontece em agosto deste ano. Para ele, o momento exige “uma defesa intransigente da democracia, porque sem ela não haverá SUS.
1- Você poderia nos contar como se formou e qual a importância da Frente Pela Vida para a luta democrática hoje no Brasil?
No início de 2020 as entidades da saúde coletiva e bioética, Associação Brasileira de Saúde Coletiva – ABRASCO, Centro Brasileiro de Estudos de Saúde – CEBES, Associação Rede Unida – REDE UNIDA e Sociedade Brasileira de Bioética – SBB, no intuito de fortalecer sua intervenção no enfrentamento à pandemia e ao governo, buscaram outras entidades para formar a Frente pela Vida (FpV). A Frente foi lançada em 9 de junho de 2020, com uma marcha virtual com participação de mais de 6 mil pessoas. Esta declaração foi assinada por cerca de 600 entidades, e proclama os pilares sob os quais organiza sua unidade, que são:
- O direito à vida é o bem mais relevante e inalienável da pessoa humana, sem distinção de qualquer natureza;
- As medidas de prevenção e controle para o enfrentamento da pandemia da COVID-19 devem ser estabelecidas com base científica e rigorosamente seguidas a partir de planejamento articulado entre os governos federal, estadual e municipal;
- O Sistema Único de Saúde (SUS) é instrumento essencial para preservar vidas, garantindo, com equidade, acesso universal e integral à saúde;
- A solidariedade, em especial para com os grupos mais vulneráveis da população, é um princípio primordial para uma sociedade mais justa, sustentável e fraterna;
- É imprescindível para a vida no Planeta a preservação do meio ambiente e da biodiversidade, garantindo a todos uma vida ecologicamente equilibrada e sustentável;
- A democracia e o respeito à Constituição são fundamentais para assegurar os direitos individuais e sociais, bem como para proporcionar condições dignas de vida para todas as brasileiras e todos os brasileiros.
*Fonte: Site da Frente pela Vida – https://frentepelavida.org.br/marcha/
- A partir da formação, como ela foi se consolidando? Qual foi o maior desafio?
A Frente pela Vida já nasce consolidada nacionalmente e reunindo desde entidades científicas, passando por movimentos sociais, entidades de direitos humanos, trabalhadoras e trabalhadores das redes de saúde, movimentos sindicais, partidos políticos e eclesiásticos, como a CNBB, entre muitos outros segmentos. Com seu enorme alcance territorial, e grande diversidade na cultura e posições políticas das entidades que formam a Frente pela Vida, o grande desafio político é de mantê-la unificada para enfrentar desafios da magnitude de uma pandemia, e ao mesmo tempo um governo autoritário, que apostava na doença e morte, e tomou decisões favorecendo a disseminação do vírus, como mostra um estudo realizado pela Unicamp.
A Frente pela Vida resolve tratar sua unidade ao inovar na estética política. Assim propõe que as divergências fossem conduzidas por um conceito onde se pensa a criação do “consenso progressivo”, ou seja, não seriam enfrentadas no confronto, mas na escuta, pactuação e ajuste de posições. A prática do “consenso progressivo” se torna um dispositivo político que toma da energia criada pela divergência, o combustível para aprimorar a formulação de propostas, e no processo, aumentar a confiança política e unidade na ação entre as entidades. O acordo básico é que na FpV as decisões são por consenso, busca-se a produção de um “comum”, fruto da formulação política coletiva. Há, ao mesmo tempo, liberdade de expressão das entidades nas suas próprias mídias, repercutindo posições da FpV, e produzindo e publicando suas próprias posições sobre os acontecimentos políticos no âmbito da pandemia e da saúde em geral.
A estética política que sustenta uma Frente da envergadura da Frente pela Vida, somada às bandeiras que defende em conexão com os movimentos em todo país, são em si uma contribuição para o movimento social e a democracia. Com dois anos de funcionamento, a FpV é caracterizada pela alta legitimidade junto ao movimento social, e gestores do SUS; combatividade contra o negacionismo e todas as formas de conduta que ameaçam a saúde da população, assim como pela unidade política em DEFESA DA VIDA, DA DEMOCRACIA E DO SUS, é a insígnia sob a qual se debate.
3- Há vários companheiras e companheiras que estão identificando uma dimensão histórica na Conferência Nacional Livre Democrática e Popular de Saúde. Como ela se relaciona com a história de construção do SUS, seus impasses e desafios?
A Conferência Nacional Livre Democrática e Popular de Saúde foi convocada pela Frente pela Vida para o dia 5 de agosto de 2022, em São Paulo, com o objetivo inicial de aprovar diretrizes para uma política de saúde para o país, no contexto da disputa de projeto de nação que enfrentamos em 2022. Ela é também preparatória da 17ª. Conferência Nacional de Saúde convocada pelo Conselho Nacional para 2023. Este cenário tem como pano de fundo a experiência trágica da pandemia de Covid-19, que matou quase 670 mil pessoas no Brasil, e 30 milhões de infectados, deixando um rastro de doença, morte e dor entre essas milhões de famílias. São 130 mil órfãos, milhões de famílias com suas economias devastadas, aumentando o cenário de desemprego, fome e desamparo em um grande contingente.
Vivemos um momento paradoxal onde a pandemia mostrou a enorme resiliência do SUS, pela atuação heroica dos mais de 2 milhões e 400 mil trabalhadores e trabalhadoras da saúde pública durante a pandemia de Covid-19, um gigante que se colocou à frente da defesa e proteção à vida da população. Por outro lado mostrou suas deficiências, pelo subfinanciamento, carência de investimentos no complexo industrial estatal da saúde, necessidades de atualização na formulação do modelo de assistência, e maior necessidade de se incluir em outras políticas sociais e deixar ser agenciado também por elas, quebrando a ideia de intersetorialismo, na qual permanecem as “caixinhas” estruturadas das políticas, para uma prática em que todas as políticas se encontram nos territórios em conexão com as comunidades. A superação destas questões pode ser histórica e revolucionária. A defesa da vida no Brasil de hoje, das políticas de morte, é uma bandeira disruptiva, abre para a construção do novo.
Se a Conferência expressar o aprendizado que a experiência da pandemia nos proporcionou, e transformar isto em diretrizes para uma política, terá sim uma expressão histórica para a continuidade da construção do SUS. Esta construção é possível mediante um SUS 100% público, democrático e de controle social e, para isto, a energia da Conferência precisa se transformar em movimento concreto para dentro do novo governo Lula. Esta é uma questão importante, junto à defesa intransigente da democracia, porque sem ela não há SUS.
4- Quais serão os temas centrais tratados no documento a ser aprovado na Conferência Nacional Livre de Saúde?
O principal tema é manter o SUS 100% público, com financiamento estatal, sob o controle social, o que supõe que seja um sistema que reafirma o direito universal de acesso aos serviços e produtos da saúde. Este tema nos traz a questão da necessidade de superar o histórico de subfinanciamento da saúde. Diretriz que deve estar associada à ideia do modo de produzir a assistência, porque o atual Modelo Médico Hegemônico induz a um modelo assistencial com alto consumo de procedimentos, especialmente de média e alta complexidade e hospitalares, como forma de aumentar a acumulação de capital no setor, para grandes corporações econômicas fornecedoras de equipamentos e insumos para a saúde. Por isto a discussão de financiamento não deve ficar restrita a valores, mas deve contemplar o modelo assistencial, e uma boa diretriz alocativa dos recursos.
O modelo de assistência deve ter como primeiro princípio a ideia de fortalecer os serviços de referência territorial, como Atenção Primária à Saúde, Rede de Atenção Básica e outros. São serviços de baixo custo e alta eficácia, porque podem resolver a grande maioria dos problemas de saúde, e é o lugar de encontro do SUS com as comunidades, formando com elas um vínculo importante de cuidado, proteção e confiança. Para isto é necessária muita criatividade e ousadia para inovar em soluções na gestão do SUS. Por exemplo, de acordo com dados do Ministério da Saúde, há 5.100 Hospitais de Pequeno Porte no Brasil (até 50 leitos), com média de 30% de ocupação, subutilizados, espalhados em pequenas cidades. Uma rede que poderia abrigar um Programa de Cuidados Intermediários (entre APS e Rede Hospitalar), a ser criado, contando com estes recursos já existentes, portanto, de baixíssimo custo, e viria para suprir uma lacuna existente na rede do Sistema Único de Saúde, hoje polarizada entre a Atenção Primária de um lado, e Hospitalar de outro.
Outra diretriz importante diz respeito ao desenvolvimento do complexo econômico estatal da saúde, particularmente o médico-industrial, onde o Brasil já demonstrou possuir relevantes indústrias de fármacos, imunizantes entre outros produtos que têm alto consumo e necessidade para o sistema de saúde. O complexo econômico da saúde contribui para alavancar o desenvolvimento do país, com possibilidade de se tornar autossuficiente em vários componentes do SUS, e mesmo exportador, beneficiando áreas mais carentes do planeta, em uma política diplomática Sul-Sul, facilitando seu acesso.
A questão ambiental e emergência climática surgem como grandes temas a serem incorporados no âmbito da saúde. Cuidar do ambiente é um importante dispositivo de proteção à saúde e à vida. Sabe-se que o surgimento do novo coronavírus que causou a pandemia de Covid-19 certamente é fruto do desequilíbrio ambiental, que levou ao efeito “transbordamento”, quando o vírus passa de uma espécie silvestre para a humana. Se não cuidar desta questão, este fenômeno se repetirá muito antes do que se espera, ameaçando a vida na Terra novamente.
Por fim, a questão democrática é transversal a todos os temas. Não há SUS sem democracia, nem democracia sem uma política de acesso universal aos cuidados à saúde. A ela está incorporada a diretriz de Controle Social do SUS, através dos Conselhos e Conferências, onde se dá de forma direta a participação da comunidade. Em um país onde a liberdade anda severamente ameaçada, com instituições frágeis, a democracia é uma questão a ser abraçada pelos movimentos sociais, em especial no caso da saúde é desde sempre considerado um requisito.
5- Como a construção plena do SUS se relaciona com a possível conquista de um governo democrático e popular?
A conquista de um governo democrático e popular é requisito para a construção de uma política de saúde organizada nacionalmente pelo SUS, voltada às necessidades da população, reunindo cuidado, proteção e liberdade.
É esperado que um governo democrático e popular venha fortalecer a política universalista do SUS, e coloque fim ao histórico subfinanciamento e mais recentemente desfinanciamento do setor saúde. A defesa da vida deve estar no centro de um governo com este perfil, em todas as políticas sociais. No caso da saúde é mais visível porque é o lugar onde a linha tênue entre vida e morte está presente nas redes de saúde, e deve influenciar positivamente as decisões de governo.
Os governos democráticos-populares no Brasil, Lula e Dilma, têm um histórico de investimentos e ousadia importantes no SUS e na Atenção Primária. Para ficar em um dos exemplos, o Programa Mais Médicos se destaca como o maior da história, sem precedentes no mundo, que chegou a recrutar 18 mil médicos para áreas desassistidas, sejam lugares muito remotos, até centros urbanos de grande risco, fundou escolas médicas, e estabeleceu um programa ousado de formação de médicos de medicina de família. O próximo governo que tomar a experiência acumulada como referência, deve partir dela para continuar o ciclo de construção progressiva e progressista rumo ao sistema universal, 100% público e estatal. Um objetivo a ser alcançado pelo povo brasileiro.
6- Como está sendo o processo de preparação da Conferência Nacional Livre de Saúde? Como participar dela?
A Frente pela Vida tem aprovadas e está encaminhando as seguintes propostas:
- Realização das Conferências Estaduais, Locais ou por Segmentos, preparatórias da Conferência Nacional Livre até 30 de julho de 2022.
- Os coletivos locais ou de movimentos sociais devem convocar as Conferências, adaptando seu formato e discussões, à realidade de cada lugar ou movimento. A Conferência Livre nos estados pode ser organizada no formato de plenária, ou outro, conforme os movimentos locais considerarem melhor.
- Há uma série de Lives marcadas para discutir as principais questões que estarão em debate entre as diretrizes que formam o documento da Frente pela Vida, a ser aprovado na Conferência Nacional Livre, Democrática e Popular de Saúde.
- CARTA COMPROMISSO a ser elaborada a partir das diretrizes para uma política de saúde no país, que será discutida com candidatos à presidência da república do campo democrático.
- Organização dos Comitês de Defesa da Vida, Democracia e do SUS, para discussão e mobilização em torno pautas levantadas no âmbito da Frente pela Vida.