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Entrevista: “Não largar mais a mão da esperança” é a grande lição | Juarez Guimarães

Juarez Guimarães fala sobre a vitória de Lula e das forças progressistas contra o bolsonarismo, o futuro governo e as lições tiradas do período de contrarrevolução neoliberal.

Foto: Sul 21

Após a vitória histórica do campo progressista nas eleições de 2022, levando Luiz Inácio Lula da Silva a ocupar pela terceira vez a Presidência da República, Teoria e Debate entrevista Juarez Guimarães, professor de Ciência Política e coordenador do Centro de Estudos Republicanos Brasileiros, Cerbras, na Universidade Federal de Minas Gerais. Integra o Conselho Editorial da Jacobin.

Da conversa de avaliação desse processo eleitoral e sobre as perspectivas do governo Lula e a ampla coalizão que o apoiou participaram Adriana Novais, Luiza Dulci, Carlos Henrique Árabe e Rose Spina.

Adriana Novais é dirigente estadual do MST de São Paulo, atuando em relações políticas. Psicanalista, atua também na rede de saúde mental do movimento. É doutora em Ciências Sociais.

Luiza Dulci é economista (UFMG), mestre em Sociologia (UFRJ) e doutora em Ciências Sociais, Desenvolvimento e Agricultura (UFRRJ). Integra o coletivo da Secretaria Agrária Nacional do PT e o Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo.

Carlos Henrique Árabe é diretor da Fundação Perseu Abramo, responsável pela área de publicações.

Rose Spina é editora de Teoria e Debate.

Rose Spina: Qual sua avaliação do processo eleitoral pelo qual passou o país? Quem foram os ganhadores e os derrotados?

Juarez Guimarães: As eleições presidenciais, para a renovação do Congresso Nacional e dos governos e assembleias estaduais de 2022 devem ser entendidas como um histórico acontecimento político da luta de classes internacional. Isso porque essa disputa reflete e tem impacto sobre os caminhos de reiteração ou superação do impasse de uma crise internacional, dos direitos humanos e da democracia, que resultou de cinco décadas de domínio neoliberal. Essa disputa política se inseriu nesse contexto internacional, de forma direta, com suas mediações nacionais. Foi derrotado o governo mais importante da extrema direita fascista internacional, com todas as suas implicações para a América Latina e para o mundo. O presidente Lula confirma o seu protagonismo como a grande liderança internacional das esquerdas e das forças progressistas.

É um acontecimento histórico porque altera uma certa etapa da luta de classes no Brasil que vinha se dando nos últimos nove anos. Desde 2013, mais claramente desde 2014 e 2015, veio se formando o que chamamos de uma contrarrevolução neoliberal, com seis anos de uma guerra contra os direitos humanos no Brasil, desde o governo Temer, e quatro anos de um governo que afirmava sua característica fascista de modo muito evidente.

Chamamos de um acontecimento político da luta de classes porque, muito mais do que uma disputa eleitoral, estava em jogo os rumos do país. Havia uma consciência de que uma eventual vitória de Bolsonaro levaria a uma possível extinção da democracia no Brasil, a um avanço na construção de um regime fascista no país. A história registrará o papel fundamental do PT e das esquerdas em evitar essa tragédia.

Essa expressão da luta de classes é muito clara e se refletia nas pesquisas eleitorais, já que os trabalhadores mais pauperizados, os negros, as mulheres, os nordestinos, os povos originários, os movimentos LGBTQIA+ votaram maciçamente na candidatura Lula versus representantes do agronegócio e dos financistas, empresários da indústria e do comércio em geral, as classes médias mais altas, poderíamos dizer brancos racistas, homens patriarcais e predadores da natureza votaram maciçamente em Bolsonaro.

Quem venceu esta disputa foram fundamentalmente as forças democráticas populares. A base eleitoral amplamente majoritária, a campanha, o programa, a própria figura histórica de Lula expressam a vitória democrático-popular. É claro que no segundo turno houve um apoio de neoliberais não bolsonaristas, que pela reduzida diferença obtida na vitória, foi muito importante e decisiva. Também tem sido muito importante a posição pública do atual governo dos Estados Unidos contra um golpe no Brasil.

Derrotada, em síntese, foi a coalizão neoliberal, que com o apoio direto do Estado norte-americano à época, organizou essa contrarrevolução no Brasil. Houve claramente uma primeira fase dessa contrarrevolução, coordenada e dirigida pela coalizão liderada pelo PSDB, que levou ao impeachment da presidenta Dilma Rousseff, sucedida pelo governo Temer com um programa muito semelhante àquele apresentado por Aécio Neves nas eleições de 2014. E uma segunda fase em que, devido ao desgaste dessa coalizão política liderada pelo PSDB e a condenação e prisão de Lula, houve a vitória de Bolsonaro. Um governo com programa neoliberal e uma face autocrática mais visível, que nós procuramos caracterizar desde o início como de orientação fascista, um governo que entende seus adversários como inimigos a serem progressivamente eliminados, constituindo toda uma base social mobilizada em torno de uma política de ódio.

Seria importante entender os resultados de 2022 como uma dupla derrota do bolsonarismo, imediatamente, e do programa neoliberal. Essa dupla derrota deveria ser qualificada no sentido de que o bolsonarismo mostrou uma força política importante, resiliente, conquistando governos importantes, elegendo grandes bancadas no Congresso Nacional. Também no sentido de que houve uma construção institucional do neoliberalismo, avançou-se nesse período em reformas políticas, programas, privatizações e um conjunto de ações que aprofundaram essa dinâmica neoliberal no Estado brasileiro. Essa dupla derrota do bolsonarismo e do programa neoliberal não significa que eles estão finalmente vencidos ou superados, mas apenas que sofreram uma derrota política estratégica.

Adriana Novais: Vimos a consolidação de uma extrema direita no país, que tem o seu núcleo duro “bolsonarista raiz”, que podemos chamar de fascistas. Bolsonaro recebeu 58 milhões de votos no segundo turno. Contudo, há um grupo em torno de 40 milhões de brasileiros que votaram em Bolsonaro, que precisamos disputar para outra visão de mundo. Quais os caminhos para empreendermos esta disputa?

Juarez Guimarães: Há uma pesquisa interessante divulgada pelo Instituto Quaest sobre o perfil dos eleitores do Bolsonaro no segundo turno. Essa pesquisa identificou que dos 49% dos votos obtidos por ele, 18% são de extrema direita – constituiriam o núcleo do bolsonarismo –, 7% votaram nele por conservadorismo religioso, 21% por uma consciência antipetista – esses conhecemos de larga data, mais acentuada desde 2013 – e 3% foi denominado na pesquisa como direita democrática.

Então, podemos pensar o bolsonarismo como uma série de círculos concêntricos nucleados por essa extrema direita, que chamamos de fascista, um fascismo do século 21, como tem sido teorizado por muitos autores. Gosto muito da teorização de Roger Griffin, historiador inglês que estuda este fenômeno há décadas, que entende o fascismo não como um evento histórico do passado, mas como uma tradição da modernidade que nunca se extinguiu de fato, e que se organiza internacionalmente de maneira cada vez mais visível neste século.

Penso que esses 49% obtidos por Bolsonaro revelam um momento de sua máxima força organizada a partir do controle do governo central. Sabemos que não se trata apenas de um fenômeno eleitoral. Expressava um certo posicionamento das Forças Armadas, de polícias militares, de setores que conformam o núcleo coercitivo do Estado brasileiro, com suas dimensões federativas também. Teve apoio muito forte do agronegócio, de grandes bancos e apoios orgânicos de várias federações de indústria, comércio. Além de uma base popular organizada em torno do neopentecostalismo com sua força de raiz, que deveria ser avaliado como um dos grandes fenômenos de mudança cultural das classes trabalhadoras nas últimas décadas. É um evento muito importante porque essa consciência neopentecostal se organiza com valores antissocialistas e patriarcais, contra todos os valores progressistas e tem uma certa concepção individualista de mundo, egoísta, acumuladora, como tem se estudado.

Houve uma coalizão formada em torno de Bolsonaro e o entendimento de sua diversidade é muito importante para nós trabalharmos o isolamento desse núcleo que estamos identificando como politicamente de tendências fascistas. Ainda estamos muito próximos desse grande acontecimento histórico para avaliar o grau de perda de capacidade de centralização do bolsonarismo. O que é o bolsonarismo fora do governo e com a sua base, uma parte dela fisiológica, desorganizada e com um processo de normalização das Forças Armadas e de repactuação e institucionalização dos conflitos políticos? O processo político ainda não fez uma primeira sedimentação após a derrota para se constituir uma avaliação. Mas hoje nós compreendemos muito mais o que é o bolsonarismo do que em 2018, quando a inteligência política brasileira foi pega de surpresa diante da ascensão daquele movimento.

Discordo da ideia de que o bolsonarista típico é apenas uma expressão das elites brasileiras e seus valores anticivilizatórios. Não só porque ele tem bases populares também, mas porque é fundamentalmente um americanismo que atualiza as culturas de dominação brutalmente classistas, racialistas, patriarcais, predatórias, que nunca foram superadas no Brasil. Trata-se de um movimento que tem sua raiz em um movimento internacional organizado, sua referência de identidade política, modo de se organizar, sua linguagem são a desse circuito internacional.

Considero também um erro de analogia dizer que Bolsonaro é igual a Trump. Talvez o fenômeno de Trump nos Estados Unidos seja mais profundo, mais enraizado e mais forte institucionalmente do que o bolsonarismo devido a sua forte presença no Partido Republicano. Portanto, o bolsonarismo é mais frágil politicamente do que o fenômeno do trumpismo. De outro lado, nós temos que ter consciência de que subestimamos, em geral, o bolsonarismo em 2018 e voltamos a subestimar a sua força em 2022.

Portanto, nós estamos diante de um processo político que durará algum tempo até se isolar esse núcleo de tendências fascistas e neutralizá-lo.

Há duas questões fundamentais. A primeira é o processo de institucionalização do conflito, o desafio de trazer o conflito para as instituições. O que houve desde 2013, e que teve um momento decisivo quando o PSDB questionou o resultado das eleições de 2014, é uma fuga da frágil institucionalidade democrática constituída, e uma dinâmica para padrões de conflito não mais possíveis de serem traduzidos e pactuados no interior da Constituição. A radicalização do conflito se manifesta hoje inclusive nessa violência desatada na sociedade brasileira por parte do bolsonarismo.

A segunda questão, também muito importante, é a defesa da paz como um valor das esquerdas em um sentido muito profundo. Pensar uma sociedade tão desigual como a brasileira é pensar que a violência é estrutural e histórica e a paz é um valor para quem quer uma política de emancipação. Há aí muitas questões a serem pensadas.

O STF, num primeiro momento, legitimou o discurso do ódio no Brasil. Bolsonaro dedicou o seu voto na sessão de impeachment de Dilma a torturadores, editoriais dos jornais Folha de S. Paulo e O Globo, simultaneamente, disseram que discordavam de Bolsonaro, mas que ele tinha o direito de se manifestar porque isso era um direito garantido pela liberdade de expressão. Em outra ocasião, a presidente do STF, Carmem Lúcia, decidiu pelo provimento a um recurso contra a reprovação de uma redação inteira contra os direitos humanos de um aluno do Enem, em nome da liberdade de expressão. De novo, não se trata de uma jurisprudência nova no Brasil, mas muito corrente nos Estados Unidos, onde, desde a década de 1970 e 1980, houve uma mudança da jurisprudência na interpretação da liberdade de expressão e nazistas e racistas podem falar publicamente. Nos estudos da ONU, os EUA são um lugar de exceção e de certa legitimação do discurso do ódio. Penso que o discurso do ódio preparou o lugar da violência no Brasil e os vetores da violência no sentido de legitimá-la.

Lembro que no balanço das eleições de 2010, em que Dilma derrotou Serra, escrevemos que o candidato do PSDB no segundo turno tinha levado o conflito a um padrão de virulência que relembrava 1964. E isso foi sendo aprofundado ao longo da campanha para derrubar Dilma, o antipetismo. O verde amarelo dos bolsonaristas já foi usado antes. O horror ao vermelho também já existia. Assim como a acusação de que todo mundo era comunista já existia antes de Bolsonaro. Isso faz parte de uma certa cultura neoliberal, cujos grandes intelectuais sempre interpretaram até a social-democracia, os liberais sociais como traidores do liberalismo, como pró-comunistas, pró-socialistas.

É muito importante firmar uma jurisprudência contra o discurso do ódio. Isso é fundamental para recuperarmos o espaço público da democracia, a cultura da democracia. Hoje há no Brasil uma consciência antirracista histórica muito elevada e há também uma expansão da consciência feminista. Essas são plataformas muito importantes para a superação e o isolamento desse núcleo político fascista que nós identificamos porque a sociedade da apartação construída pelo neoliberalismo reproduz a cultura da violência. Essa cultura de violência política é uma reprodução da desigualdade estrutural aprofundada. Então, é muito importante que o governo ataque as raízes da desigualdade social no Brasil.

Isso faz parte da construção de uma paz entre os brasileiros no processo de institucionalização do conflito, lembrando que a própria Igreja chamou uma das suas principais instituições progressistas de Justiça e Paz. É um pensamento muito antigo, que sem justiça, a paz é ilegítima. Há pensadores, como Rousseau, que dizem inclusive que a paz na injustiça serve mais a quem exerce a dominação do que aos escravizados e, portanto, a paz precisa caminhar com a justiça social. A democracia precisa caminhar junto com a superação do neoliberalismo.

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