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Essa hipocrisia dá hemorragia – É hora de a esquerda se posicionar!

Acaba de ser sancionada, em Portugal, uma nova legislação que legaliza o aborto no país. Um plebiscito registrou que 59% dos que foram às urnas são favoráveis à legalização do aborto, realizado nas primeiras 10 semanas de gravidez e em estabelecimento de saúde legalmente autorizado. O resultado final teve participação notável dos movimentos de mulheres e presença firme dos partidos de esquerda. Com base no resultado do plebiscito, no dia 8 de março, o Parlamento português ratificou a legalização do aborto.

Alessandra Terribili

Portanto, a maioria expressiva manifestou-se em defesa de milhares de mulheres que, todos os anos, são vitimizadas pela hipocrisia que as faz sofrer diversos males decorrentes de abortos clandestinos, efetuados sem condições mínimas de segurança e sem acompanhamento, o que, em muitos casos, leva-as à morte. No Brasil, estima-se que sejam realizados cerca de 1 milhão de abortos clandestinos todos os anos; e de cada mil mulheres submetidas ao procedimento ilegal, uma morre.
No caso português, com o objetivo de inviabilizar a votação, a direita e setores conservadores utilizaram a estratégia da abstenção. Isso explica, no fundamental, que o comparecimento tenha sido de 43% dos aptos a votar. Aliás, portugueses e portuguesas já tinham experiência no assunto: em plebiscito anterior, realizado em 1998, a taxa de abstenção foi da ordem de 68%, sendo que 49,1% declararam-se favoráveis à legalização.
Portugal foi um dos últimos países a legalizar o aborto na Europa. Na Irlanda (onde a força da Igreja é bastante notória), e na Polônia, por exemplo, a prática de aborto ainda é criminalizada. Neste último, cabe lembrar que o retrocesso se deu com a retomada do capitalismo no país, na década de 1990.
Outro país que recolocou a questão do aborto na ordem do dia foi o México. A capital do país, administrada pelo PRD (Partido da Revolução Democrática), que também tem maioria na Câmara Municipal, deve aprovar a legalização do aborto nas próximas semanas. Não sem resistência da Igreja e dos setores conservadores e partidos de direita. A questão acirra os tensionamentos entre o presidente mexicano, o direitista Filipe Calderón, e o PRD. O presidente procura ficar distante da polêmica pública, mas seu Ministro da Saúde é um dos líderes contra a legalização.
Na América Latina, apenas 3 países têm o aborto legalizado em seu território: Cuba, Guiana e Porto Rico. Por isso, a definição a ser tomada no México é de grande importância para a esquerda e para o feminismo.

Desafios da esquerda no Brasil

A discussão sobre o aborto no Brasil é fortemente marcada pelo peso das Igrejas. É de se questionar as condições do debate, em particular, sabendo que as Igrejas (não apenas a Católica) controlam parte considerável dos meios de comunicação, entre rádios e TVs. Por isso, diferentemente do encaminhamento em Portugal, um plebiscito (ou referendo) não seria um caminho adequado para se decidir sobre a questão aqui. O pressuposto democrático da igualdade de condições não estaria assegurado.
O movimento de mulheres, há décadas, luta para garantir visibilidade ao tema, e deve estar preparado para este novo momento. Os conservadores já estão a postos e são esses que têm acesso aos meios de comunicação – que já começam a tomar posição. Por isso, a esquerda brasileira não pode se eximir de cumprir papel nessa luta.
As mulheres que morrem em decorrência de abortos clandestinos não são aquelas que podem pagar até R$ 5 mil em clínicas especializadas para efetuar a interrupção da gravidez. São, isso sim, aquelas das periferias, as mais pobres, as que não podem arcar com mais uma gravidez, as que são mais vulneráveis ao machismo que atinge a todas as mulheres, mas não igualmente. São essas as vítimas da hipocrisia que não permite que essas mulheres tenham atendimento adequado, que evite o risco de perfuração no útero, de hemorragia, de esterilidade. São essas as vítimas da imposição a todos de uma crença religiosa que é de alguns. São essas as vítimas do controle do Estado, da Igreja, da Justiça sobre o corpo das mulheres. São essas as vítimas do pensamento que afirma e prega que o destino inexorável das mulheres é a maternidade, e que elas não podem decidir se querem ou não ter filhos, sob risco de sofrerem as mais duras conseqüências.
É inadmissível que na esquerda brasileira – e especialmente no PT – haja vozes que se somam ao coro dos conservadores e da direita contra a vida dessas mulheres. Assim como em Portugal e no México, onde a presença dos partidos de esquerda, ao lado do movimento feminista, foi fundamental para a prevalência de um posicionamento progressista, é preciso que a esquerda brasileira se posicione a favor da autonomia das mulheres, não assimile o discurso da direita e nem caia na armadilha de fazer média com a Igreja e os setores mais conservadores da sociedade.
A participação do deputado federal Luís Bassuma (PT-BA) nas ações anti-legalização do aborto, nesse sentido, merece ser alvo de questionamento, e mais do que isso, de reprovação por parte do partido. É largamente sabido que o PT tem posicionamento sobre o tema, inclusive em forma de resolução do último Encontro Nacional. As mulheres do PT têm um vasto acúmulo de discussão e de ações referentes à legalização do aborto, e ao longo da história do partido, tornaram-se atrizes fundamentais na construção de uma perspectiva feminista para a esquerda socialista brasileira.
Como filiado do Partido dos Trabalhadores, e principalmente, como um filiado em contradição com resoluções partidárias, o deputado em questão, e outros que eventualmente se manifestem da mesma forma, deve ser submetido a procedimento de praxe em outros casos semelhantes de desrespeito às resoluções políticas do PT. Não podemos tolerar tamanho desrespeito – explícito na participação do deputado à frente da reação contra a legalização do aborto, nas cobranças públicas feitas ao Presidente Lula quanto às (boas e dignas) declarações do Ministro Temporão, e até em artigo publicado em jornal de circulação nacional. Não podemos tolerar haver, entre nós, um ator político encaminhando o contrário do que acumulamos e defendemos.

Uma luta que marca a esquerda

A luta pela legalização do aborto é uma bandeira histórica do movimento de mulheres, e expressa compreensões políticas importantes que o feminismo traz para a esquerda e para a sociedade em geral. O direito das mulheres ao seu próprio corpo, à autonomia, à livre opção entre querer ou não serem mães e quando isso deve acontecer. Por isso, as mulheres devem ter direito a realizar aborto legal, em condições seguras e sob acompanhamento, para que evitemos as milhares de mortes que acontecem todos os anos em decorrência de complicações resultantes de abortos clandestinos.
Sabemos que a interrupção de uma gravidez é uma circunstância altamente desconfortável e, muitas vezes, traumática para as mulheres. Não se trata, portanto, de recorrer ao aborto como método anticoncepcional, muito pelo contrário. Trata-se de, combinado com a legalização do aborto, ampliar o acesso das mulheres à informação, a métodos anticoncepcionais e criar condições para que elas negociem o uso de preservativos com seus companheiros de forma tranqüila, o que, muitas vezes, não ocorre. Em diversos países onde o aborto é legalizado, os números provam que os casos de aborto não aumentam por conta da situação de legalidade.
Queremos que as mulheres tenham direito de interromper uma gravidez sem precisar correr riscos, tendo o direito de definir sobre seu corpo, sobre sua vida, sem ser refém de credos e crenças que não são seus. Por isso, o autoritarismo do deputado Bassuma – por desrespeitar resolução partidária e por querer impor a sua crença a um conjunto, ignorando que o Estado e a Justiça são laicos – não condiz com o momento histórico que vivemos, e não condiz com a trajetória política do Partido dos Trabalhadores.

Alessandra Terribili é membro do Diretório Municipal PT S. Paulo

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