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“Estamos em meio a uma confluência de crises existenciais”. Entrevista com Noam Chomsky

O linguista e cientista político estadunidense Noam Chomsky, um dos intelectuais mais eloquentes para ler os cenários complexos que se articulam sob a pandemia que hoje paralisa o mundo, argumenta que estamos diante de uma confluência crítica gerada pela deterioração da democracia, a iminência de uma catástrofe ambiental e da ameaça de uma guerra nuclear. A evolução deste panorama depende das próximas eleições no seu país, que define em uma entrevista exclusiva concedida à presidente da Télam como “as mais importantes, não só da história da Estados Unidos, mas também na história da humanidade”.

A entrevista é de Bernarda Llorente, publicada por Télam, 11-09-2020. A tradução é do Cepat. (Publicação original em português no IHU – Unisinos)

Aos 91 anos, o brilhante pensador e autor de obras como El nuevo orden mundial (y el viejo) e Poder y terror mantém a força de sua voz dissidente e antibelicista que ao longo de mais de sessenta anos o levou a compatibilizar suas contribuições acadêmicas com intervenções públicas que lhe renderam represálias de sucessivos governos de seu país, como ser preso por condenar a Guerra do Vietnã , figurar na lista negra do ex-presidente Richard Nixon e receber duros questionamentos por denunciar a guerra suja de Ronald Reagan.

Acusado às vezes de “antiamericano” pela dureza de suas críticas, Chomsky tem participação ativa em causas coletivas – há poucos meses, assinou um manifesto junto com 150 intelectuais que alertam sobre o risco de censura a conteúdos que não se enquadrem nos parâmetros impostos pelo politicamente correto -, sem deixar de alimentar suas cruzadas pessoais: a luta contra as multinacionais, o neoliberalismo e o atual presidente Donald Trump, que caracteriza em entrevista ao Télam, via Zoom de sua casa em Tucson (Arizona), como “uma espécie de ditador de meia-tigela que criou em Washington um pântano de corrupção”.

Eis a entrevista.

Dr. Chomsky, enquanto uma parte importante da humanidade parece focada no impacto do Coronavirus e suas consequências, você redobra a aposta e alerta que a sobrevivência de nossa espécie humana é o que está verdadeiramente em perigo.

Devemos reconhecer que este é um momento histórico notável. Estamos em meio a uma confluência de crises existenciais: a da catástrofe ambiental, a da guerra nuclear, a crise da deterioração da democracia, que é a única forma de combater essas crises. E, além disso, crises de pandemias. A Covid-19, em particular – do qual sairemos -, terá um custo desnecessário e terrível. Mas não será a última.

Tivemos muita sorte até agora, porque as repetidas epidemias de coronavírus que experimentamos conseguiram ser contidas. O ebola, por exemplo, era altamente letal, mas não excessivamente contagioso. A SARS é muito contagiosa, mas não muito mortal. A próxima pandemia que vir poderá ser as duas coisas: altamente contagiosa e altamente letal. Então, enfrentaremos algo como a Peste Negra do século 14. Podemos preveni-la, mas devemos agir.

Por que temos uma pandemia hoje?

É uma pergunta importante a ser feita. Tivemos a epidemia de SARS em 2003, um vírus muito semelhante. Os cientistas alertaram que viriam outras, que tínhamos que nos preparar e sabíamos como fazer: isolar vírus, planejar como desenvolver uma vacina, fortalecer um sistema de prevenção de pandemia. Tudo está bastante claro. Mas não basta ter a informação, alguém tem que fazer.

As grandes empresas farmacêuticas têm os recursos, os laboratórios, etc. Não fazem isso, no entanto, porque existe algo chamado Capitalismo. O capitalismo exige que você sempre tente aumentar seus lucros. Você não gasta dinheiro em algo que pode acontecer daqui a dez anos e que não se ganhará muito dinheiro, de qualquer modo. Você tem a vacina, as pessoas usam, acabou. As empresas farmacêuticas investem em produtos que podem continuar vendendo amanhã.

Talvez as crises estejam mostrando a necessidade de o Estado retomar seu protagonismo?

O governo tem recursos inesgotáveis, laboratórios maravilhosos, mas não pode fazer isso por causa de uma coisa chamada neoliberalismo. Como disse Ronald Reagan em seu discurso inaugural: “o governo é o problema, não a solução”. Isso significa que as decisões têm que passar das mãos do governo para o poder privado. A razão? Eles acreditam que o governo é uma instituição defeituosa porque responde à população, pelo menos em parte, e isso é um problema sério. Não podemos permitir isso.

Portanto, para eles é necessário transferir as decisões para tiranias privadas que não prestam contas ao público de forma alguma. Isso se chama “liberdade” no discurso orwelliano contemporâneo. Voltando à pandemia, significa que o governo não pode intervir, porque nunca pensaram nas pessoas. Sendo assim, não houve esforços para desenvolver a vacina e assim sucessivamente. Não obstante, houve alguns avanços.

Refere-se às políticas do presidente Obama e sua proposta de seguro saúde? Quanto desse legado Trump devastou?

A administração Obama colocou em funcionamento um plano de resposta frente a uma pandemia que era bastante esperável que ocorresse. Houve pesquisas conjuntas entre cientistas americanos e chineses para tentar identificar coronavírus em cavernas na China e tentar sequenciar os genomas. Foram executados programas de demonstração para ver o que aconteceria se o vírus se propagasse. Todas essas iniciativas aconteceram até janeiro de 2017. Embora não fossem suficientes, pelo menos eram algo.

Nos primeiros dias de posse, Trump desmontou esses projetos. Todo ano, tenta retirar os fundos. A última vez foi em fevereiro de 2020. Quando a pandemia estourou, o presidente cortou gastos relacionados à saúde pública, incluindo os do Centro de Controle de Doenças. Como resultado, os Estados Unidos estavam singularmente mal preparados quando a pandemia aconteceu. Houve todo tipo de incompetência e malícia em relação ao seu manejo.

Aquilo que aparece como sérios desatinos do presidente Trump contou, na verdade, com respaldos institucionais sólidos.

Congresso Republicano aprovou centenas de esforços legislativos para acabar com a lei de atendimento médico acessível, a lei Obama, e não deixou nada em seu lugar. A lei avançou um pouco. Não chega perto do que outros países têm, mas pelo menos foi um avanço e querem matá-la, porque para eles nada deveria existir fora do mercado. Você pode sobreviver bem ou então mal. Isso é chamado de “Libertário”, o que é uma piada de mau gosto. É totalitário.

Estão dizendo que se você for rico o suficiente para sobreviver, ótimo, se você não for, uma pena. Isso está se manifestando na crise da covid-19. Há muitas pessoas que se recusam a fazer o teste porque é muito caro. Quero dizer, tecnicamente, o governo paga, mas as pessoas recebem copagamentos que sua seguradora não pagará. Os cidadãos dos Estados Unidos representam 4% da população mundial e 25% dos casos. Não há melhora. Na verdade, está piorando. Não saio de casa há quatro meses.

Houve um momento em que essas ideias ganharam maior força?

Dê uma olhada nos hospitais, especialmente com Reagan. Os programas neoliberais de Reagan foram realmente duros para a população em geral. Os hospitais funcionam em um modelo comercial, devem ser eficientes, só têm os recursos para serem usados em uma situação normal. Assemelham-se a uma linha de montagem da empresa Ford Motors. Com recursos justos. Quando surge alguma situação excepcional, o desastre é total.

De fato, esse modelo de negócio reaganiano teve efeito em todo o mundo. Essas são as batalhas que estão sendo travadas internamente nos Estados Unidos, mas o mesmo está acontecendo em todos os lugares. Os movimentos populares estão tentando se mover em direção a uma sociedade viável e habitável. E a questão é quem vai ganhar?

Como reverter algumas dessas políticas diante de tantas urgências?

É claro que muita coisa pode ser feita, mas barreiras sérias devem ser superadas. A lógica capitalista deve ser superada, a praga neoliberal deve ser superada e a liderança malévola deve ser superada, três barreiras principais. Não será fácil, mas não é impossível. As outras crises: aquecimento global, guerra nuclear, deterioração da democracia, sabemos como enfrentá-las e é essencial fazer isso. Não resta muito tempo.

Nesse contexto, o resultado eleitoral do próximo 3 de novembro pode ser o ponto de virada para superar ou agravar as diversas crises que vem enumerando e descrevendo?

Claro, as eleições de 2020 são provavelmente as mais importantes não apenas na história dos Estados Unidos, mas também na história da humanidade, por uma razão que não se discute e que é em si mesma espantosa. É a questão mais importante que a humanidade enfrenta hoje e, se não for respondida em breve, pode significar o fim da vida humana organizada na Terra. Trata-se da catástrofe ambiental que está se aproximando. Não está longe, não pode ser adiada e devemos decidir se vamos enfrentá-la. Esta é a principal questão em jogo na eleição.

O presidente Trump e seu partido deixaram bem claro que desejam acelerar a corrida para o desastre. Talvez seja um sinal de que a espécie humana é simplesmente inviável, se não consegue lidar com um problema como esse. E não é o único.

A segunda questão crucial que os seres humanos enfrentam – e também não mencionada – é a crescente ameaça de guerra nuclear. É muito alta, maior que durante a Guerra Fria, de acordo com os principais especialistas no assunto, e continua aumentando consideravelmente. Temos que nos perguntar em que tipo de sociedade vivemos. Que tipo de espécie somos nós, se não estamos dispostos a impedir esses desastres.

Qual a razão para que esses temas tão vitais e urgentes não sejam a prioridade no na agenda política estadunidense?

Os Estados Unidos é um país muito livre, mais do que qualquer outro no mundo. Por outro lado, é a mais empresarial das democracias ocidentais. Os empresários estadunidenses têm uma elevada consciência de classe. São marxistas até o âmago, em uma espécie de marxismo vulgar invertido. Travam uma guerra de classes conscientemente, sem descanso, sem recuar, sem nunca parar. E existem resultados.

As instituições financeiras são tão poderosas que não podem resolver esses problemas porque não são para elas um problema. A população quer, mas toda vez que algo é feito, as instituições financeiras vêm e esmagam. Bem, por que deveriam existir? Por que deveríamos ter 40% dos lucros no Estados Unidos nas mãos de instituições predatórias, que nada fazem pela economia e provavelmente a prejudicam? Por que deveríamos ter uma indústria de combustíveis fósseis, que serviu ao seu propósito nos estágios iniciais do desenvolvimento capitalista, mas agora é uma instituição dedicada a matar pessoas e destruir a vida na Terra? Por que conservá-la? Por que não há rejeição em massa? Nem sequer seria tão caro hoje com o preço do petróleo caindo. Com muito menos gastos do que dedica para outras coisas, o governo poderia matar a indústria de combustíveis fósseis. Por que não tampar poços que estão vazando metano e seguir em direção à energia sustentável? São tarefas factíveis, mas antes de tudo devem ser elevadas ao nível de consciência.

Nesse sentido, observa-se o surgimento de novos tipos de ativismo político, além de protestos de massa, com intensa participação de jovens, e fenômenos como o movimento Black Lives Matter. O que o surgimento desses novos fatores e atores significa na política estadunidense?

É muito significativo. Black Lives Matter, após o assassinato de George Floyd, é diferente de tudo na história dos Estados Unidos, literalmente. Nunca houve um movimento social que se desenvolveu em tamanha escala, com enorme apoio popular. Dois terços da população o apoiaram, isso é mais do que Martin Luther King conseguiu a todo vapor. É a solidariedade entre negros e brancos, marchando de braços dados, em busca de questões importantes para resolver, não apenas os ataques da polícia contra os negros – o que já é escandaloso -, mas também problemas muito mais profundos.

Embora seja uma mudança notável na sociedade estadunidense, não é um fenômeno isolado. É um dos muitos sinais de uma consciência crescente dos problemas mais arraigados e complexos. Passaram-se 400 anos desde que os escravos foram trazidos para os Estados Unidos, 400 anos de violência contínua e opressão implacável até o presente, com um legado sombrio. E finalmente se está considerando com bastante seriedade. Há alguns meses, o New York Times publicou uma série muito significativa chamada “1619” (data do início do tráfico de escravos), na qual foram expostos os crimes hediondos da escravidão e pós-escravidão até o presente. Alguns anos atrás, teria sido inimaginável, nem mesmo teria ocorrido a alguém fazer isso.

Quanto o racismo e o antirracismo vão influenciar nas próximas eleições, em 3 de novembro?

Está tendo um efeito substancial. Para a administração Trump, para o Partido Republicano, é absolutamente a peça central de sua campanha. Enfatizam abertamente a supremacia branca. O tema central é mostrar uma América cristã branca em perigo, enquanto diminui seu número e cresce a ameaça de pessoas de cor, minorias e setores com ideias progressistas, devemos preservar a América cristã supremacista, branca e racista. Esse é o tema aberto da campanha.

Jamais existiu algo parecido. Eu vi tendências desse tipo em toda a história dos Estados Unidos, mas nada tão abertamente racista. Não é apenas a campanha, são os tuítes, os comentários, cada declaração que Trump está fazendo é um incitamento à supremacia branca, ao ódio branco. Sua base agora são os evangélicos, aqueles 25% da população que é republicana, rural, tradicional, conservadora, cristã branca.

Hoje, reflete-se no clima social um nível de polarização que não era visto há décadas. Uma parte importante está mobilizada com questionamentos profundos. Os protestos podem ser o motor da mudança?

Sim, é possível com ativismo popular comprometido. É o tipo de coisa que está sendo visto nas ruas, após o assassinato de Floyd. Esse tipo de mobilização intergeracional e multiétnica pode gerar mudanças. Na verdade, levou a todas as mudanças positivas que ocorreram ao longo da história: a abolição da escravidão, direitos das mulheres, oposição à agressão, o que quiser, sempre veio do mesmo lugar e isso pode acontecer agora. Mas isso deve ser feito. Tudo o que mencionamos tem soluções que não são utópicas, estão ao nosso alcance. Alguém precisa pegar a bola e correr com ela.

Algumas das maneiras de fazer isso são a manifestação nas ruas ou ocupar escritórios do Congresso, como o grupo de jovens do Movimento Sunrise fez com o escritório de Nancy Pelosi. Bem, obtiveram o apoio dos jovens representantes eleitos na onda de Sanders, especialmente Alexandria Ocasio-Cortez, e um New Deal Verde foi colocado na agenda legislativa pela primeira vez. Esse é um pré-requisito para a sobrevivência, a enorme oposição nos centros de poder, na indústria de combustíveis fósseis, nas indústrias financeiras, nos bancos, etc. É o tipo de coisa que oferece esperança de sobrevivência e uma vida digna. Isso pode ser feito, mas não acontece por si só.

Como o Partido Democrata atua neste novo cenário político e com um panorama eleitoral em que leva vantagem, mas pode ser imprevisível?

Os movimentos populares são tremendamente significativos, também dentro do Partido Democrata. Qual vai prevalecer? O partido da base popular, que é uma espécie de socialdemocrata, e o dos clintonistas, orientado para os doadores, principalmente os mais ricos. A oposição democrática está dividida entre essas duas tendências e suas diferenças se refletem em muitas questões importantes. Um, por exemplo, é a mudança climáticaJoe Biden e Kamala Harris, os indicados à presidência e vice-presidência, pediram o fim dos subsídios às empresas de combustíveis fósseis, demanda explicitada na plataforma eleitoral de 2016.

A ideia de que o governo subsidie as empresas que se comprometem em destruir a vida na Terra está além das palavras. E não apenas nos Estados Unidos, isso acontece em todo o mundo. O Partido Democrata, liderado por burocratas partidários de Clinton, a eliminou do programa, diante do risco de que essas empresas deixassem de contribuir para a campanha.

Qual a profundidade das diferenças entre a ala mais “progressista” e a “burocracia arrecadadora”, conforme você chama os apoiadores de Clinton?

Dê uma olhada na campanha de Sanders. As posições de Bernie são condenadas em um amplo espectro, até mesmo por liberais que dizem: “são agradáveis, são boas, mas o país não está preparado para elas”. Repassemos o programa para o qual o país “não está pronto”. Sanders tem duas propostas principais: uma é a saúde universal. Você consegue pensar em um país que não tenha saúde universal? Não, existe em todos os lugares. Portanto, o que está sendo afirmado em todo o espectro dos meios de comunicação é que é muito radical dizer que os Estados Unidos poderiam chegar ao nível de qualquer outro país avançado, até mesmo países pobres. “É impossível. Não podemos chegar tão alto”.

O outro programa é o ensino superior gratuito. Está em todo lugar, nos países capitalistas mais avançados, aqueles com os maiores recordes e conquistas: AlemanhaFinlândiaFrança, onde quer que olhe, há ensino superior gratuito. Os países pobres também têm. Mas parece muito radical para os americanos. Para os clintonistas – burocratas, conservadores, preocupados com os doadores ricos -, essas propostas não podem ser permitidas. Para a base popular são fundamentais, querem chegar ao nível do resto do mundo.

Com seu primeiro mandato quase no fim, o que acha que a presidência de Trump significou para a democracia estadunidense?

Você abre os jornais quase todos os dias, por exemplo, no New York Times, e vê uma manchete que diz: “Este é o fim da democracia estadunidense?”, “Esta é a última eleição estadunidense?”. Não são teorias de conspiração marginais. A sobrevivência da democracia está em jogo. A democracia não se baseia apenas em regras e leis. Baseia-se na boa fé e na confiança. A mais antiga democracia moderna, a Grã-Bretanha, tem 350 anos, sua constituição pode ser escrita em um pequeno cartão, é uma frase ou duas. E existe graças à boa fé e à confiança.

Quando Boris Johnson prorrogou o Parlamento, a fim de aprovar sua versão do Brexit, houve um grande alvoroço na Inglaterra e a Suprema Corte reagiu. Isso não aconteceria nos Estados Unidos com o Tribunal que temos. O que Trump está fazendo é muito mais extremo. O Poder Executivo foi quase totalmente expurgado de qualquer voz crítica ou mesmo independente. Os que permanecem são apenas bajuladores, como Mike Pompeo ou Mike Pence. Constitucionalmente, as indicações feitas pelo presidente devem ser ratificadas pelo Congresso, pelo Senado. Isso não está acontecendo. Nem sequer as envia para confirmação. Apenas os nomeia para uma posição temporária. Trump criou em Washington um pântano de corrupção. É como uma espécie de ditador de meia-tigela.

Na era Trump, não somente os direitos foram reduzidos, mas também foi afetada a qualidade institucional de uma democracia que parecia “exemplar”?

O que resta da democracia? Não muito. Os democratas podem ser muito culpados. Muito. Mas o que está acontecendo no Partido Republicano nunca aconteceu na história da Democracia Parlamentar, sob a liderança de um ditador de meia-tigela. O Senado nas mãos de Mitch McConnell, um cúmplice próximo do presidente, simplesmente se recusa a agir. Não faz nada mais do que aprovar leis para enriquecer a porção do eleitorado super-rico de Trump: cortes de impostos, isenções corporativas, etc. Também se dedica a lotar o poder judiciário com jovens advogados de direita que permanecerão por mais de uma geração e poderão bloquear qualquer legislação que se afaste de suas posições extremamente reacionárias. Este é o Senado. O Poder Executivo acabou.

Como apontou muito claramente, nos Estados Unidos existe um governo que está cada vez mais correndo para a extrema direita do espectro político, com enormes movimentos políticos de participação de massa em meio a essa profunda crise de saúde, que exacerbou muitas das contradições subjacentes. Nesse contexto, como imagina o mundo pós-covid-19?

Aqueles que produziram a crise em que vivemos (a pandemia, o aquecimento global – o que é muito mais grave -, a ameaça de uma guerra nuclear, a destruição dos processos democráticos, basicamente todo o programa neoliberal) lutam incansavelmente para garantir que o sistema que criaram, do qual se beneficiaram, persista de forma ainda mais dura, com maior vigilância e controle. Uma tendência global exemplificada na política externa de Trump. Não é fácil encontrar muita coerência no caos da atual administração, embora alguns itens se destaquem.

Nos assuntos internacionais, a intenção abertamente descrita por Steve Bannon (um dos principais estrategistas de Trump nos primeiros anos) foi criar uma internacional reacionária, uma internacional dos estados mais direitistas do mundo, liderado pela Casa Branca. Isso significa no Oriente Médio encorajar ditaduras familiares no GolfoMBS [Mohammad bin Salman, príncipe da Arábia Saudita] e o resto. E apoiar a pior ditadura da história do Egito (Trump a chama de sua ditadura favorita) e que Israel tenha se movido muito para a direita. No hemisfério ocidental, apoiar países como o Brasil de Bolsonaro e outras figuras de extrema direita. Indo mais para o leste, temos a Índia de Modi, que está tentando desmantelar a democracia secular. O grupo governante radical hindu é seu candidato preferido. Na EuropaVictor Orbán da Hungria, que mina o sistema democrático e além de outros exemplos que abundam em todo o mundo. Basicamente, uma iniciativa internacional reacionária da Casa Branca.

Trata-se de uma estratégia global combinada em nível nacional com programas neoliberais que prejudicaram gravemente a população e beneficiaram enormemente uma pequena minoria. Persistirão em uma forma ainda mais dura, essa é uma tendência internacional.

Que alternativas existem diante disso? Qual seria a resposta?

Em todo o planeta existem forças populares que dizem “este não é o mundo que queremos”, “este não é um mundo em que as pessoas possam viver uma vida digna, em que a sociedade possa sobreviver, em que haverá políticas orientadas às necessidades não lucrativas”. Estão se reunindo de fato. Em alguns dias, será realizado o primeiro encontro da Internacional Progressista. Foi fundada por pessoas de Bernie Sanders, nos Estados UnidosYoung 25, na Europa, com pessoas de Varoufakis (ex-ministro da Economia da Grécia), um movimento europeu transnacional que está tentando preservar o que é valioso na União Europeia e superar suas graves falhas. Possuem candidatos no Parlamento Europeu e trouxeram vozes do Sul Global.

A primeira reunião acontecerá na Islândia. O primeiro-ministro é membro da organização. Isso representa outra força em diferentes partes do mundo. Representa uma espécie de guerra de classes em escala internacional, enfrentando riscos que nunca existiram na história da humanidade. São colossais. É literalmente sobre a sobrevivência da humanidade. Essa é a situação que temos agora, não é possível fazer uma previsão.

Sabemos muito bem como atuarão as forças reacionárias. Têm recursos econômicos, têm poder de Estado, têm programas, estão comprometidos. A questão é como a população geral do mundo vai reagir. Têm opções, têm possibilidades, têm números. A questão é se podem montar uma força contrária que de alguma forma permita que a humanidade escape da atual confluência de crises que enfrentamos.

Que tipo de liderança política é necessária nessas circunstâncias? Quais imagina emergindo desta pandemia?

No momento, é difícil ser particularmente otimista sobre isso, mas sabemos que tipo de liderança política gostaríamos de ver surgindo. A questão é se podemos fazer com que assumam. Tomemos a Internacional Progressista. Acho que pessoas como Bernie Sanders e Yanis Varoufakis e outros associados ao seu movimento, AOC [Alexandria OcasioCortez], nos Estados Unidos, e alguns outros com este perfil seriam o tipo de líderes políticos que poderiam lidar com essas grandes crises. Não sozinhos, é claro. Os líderes políticos não podem fazer nada [sozinhos]. Primeiro precisam de um apoio popular massivo. E então precisam quebrar o poder que as instituições têm e que controlam a sociedade.

Devemos lembrar que vivemos em mundos de EstadoCapitalismo e cada país tem uma forma ou outra de EstadoCapitalismo. Isso significa uma extrema concentração de poder em instituições privadas com enorme vontade e enorme poder e que tendem a ter grande influência em tudo o que acontece. Isso tem que ser eliminado.

Dr. Chomsky, uma pergunta final. No que se refere à América Latina, onde vemos essa batalha entre governos mais progressistas e governos de direita ou extrema direita como é o caso do Brasil de Bolsonaro. Que mensagem gostaria de transmitir à Região neste momento?

Brasil envia mensagens muito claras. O Banco Mundial, que não é uma organização particularmente de esquerda, fez uma análise detalhada da economia em 2016, alguns anos após a saída de Lula. Qualificaram os anos de Lula como uma década de ouro na história do Brasil, com forte redução da pobreza, incorporação de grande parte das populações marginalizadas, inclusão e grandes avanços no desenvolvimento social. Disseram que foi uma década de ouro, nada comparável. Naquele momento, o Brasil provavelmente era o país mais admirado do mundo, estava nos fóruns internacionais, era uma voz do Sul Global, estava unindo a América do SulLula foi provavelmente a figura política mais respeitada do mundo. O que é agora? O Brasil é simplesmente objeto de desprezo e o ridículo do mundo, liderado por um palhaço virulento, uma pessoa que apoia a ditadura militar, que busca destruir.

devastação da floresta amazônica aumentou cerca de 30% só no ano passado. Vamos acabar com tudo, enriquecer ainda mais os ricos, matar quem não gostamos, deixar a pandemia continuar. É talvez o governo mais reacionário da história do Brasil. Um objeto de zombaria em todo o mundo. Bem, essas são lições. Contamos com um prazo de dez anos. A lição é que você tem o futuro em suas mãos. Você pode fazer isso de uma maneira, você pode fazer de outra maneira. Não há como prever isso. Isso é o Brasil, o mesmo poderia ser aplicado aos demais.

Publicação original: www.ihu.unisinos.br/602842-estamos-em-meio-a-uma-confluencia-de-crises-existencias-entrevista-com-noam-chomsky

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