Lula e o PT. A importância de se manter vivo o programa do partido diante do governo.
Entre a incerteza e a esperança
Flavio Koutzii*
Nosso Governo, a situação do partido e as expectativas da sociedade ainda estão enormemente tensionadas. É verdade que a esperança venceu o medo. Como também é verdade que no lugar da esperança instalou-se a incerteza. Avaliemos nossas principais referências.
Sobre o programa
Devemos sempre ter presente a diferença entre o programa do partido e o programa do governo. Refletindo sobre o programa do PT, é evidente que os resultados do Encontro Nacional realizado em dezembro de 2001, em Pernambuco, mudaram algumas posições, a partir do estabelecimento de uma clara e legítima maioria.
Resumidamente, recuamos algumas bandeiras e flexibilizamos as alianças. Ao longo de 2002, fizemos o que devíamos fazer: concentração e esfoço total para eleger nossos candidatos, especialmente Lula. Ao longo do ano, na dinâmica mesmo da eleição, na pressão que nos mostrava cada vez mais a possibilidade de vitória, fizemos novos ajustes (portanto, continuamos mudando).
Em 2003, o ritmo de governar o Brasil e a premência de algumas iniciativas políticas criaram uma dissintonia entre as nossas velhas referências e novas urgências (portanto, continuamos mudando).
É fácil, então, perceber por que, após a inflexão programática do Encontro de 2001, passaram-se mais de dois anos sem que o partido explicitasse como fica o seu programa. Se ainda vale o velho programa ou se uma nova proposta (2002/2003), embora não tenha sido discutida, é a que passa a valer. Infelizmente, portanto, estamos num terreno de perda de paradigma, modelos e referências.
Sobre o partido
Nesta dura confrontação estabelecida, nossos adversários usam a fala do partido para colocar o Governo Lula em contradição ou paradoxo. O resultado é que o partido acaba calando para não “atrapalhar” e vai ficando cada vez mais “sem lenço e sem documento”. Vejamos melhor a questão partidária.
- Geralmente – e não há surpresa nisso – quando vencemos uma eleição que nos permite governar uma cidade, um estado ou mesmo um país, é típico o fato de que o aparelho de Estado drena uma grande parte dos quadros partidários mais experientes e preparados.
- Constata-se igualmente que o aparelho de Estado acaba fazendo preponderar o peso de sua existência material e seu poder efetivo em relação à estrutura partidária. Também isso não é novidade.
- Sabemos, desde as nossas primeiras experiências administrativas, que o programa de governo não é igual ao programa do partido. Embora lhe seja devedor quanto aos fundamentos, necessariamente o programa de governo se faz com maior amplitude, universalmente e para o conjunto do município, do estado ou do país.
- Mas exatamente por esta contingência, a nitidez do programa partidário não pode desconstituir, subsumir ou mesmo sumir diante do programa de governo. A “fala” do partido e a “fala” do governo não são iguais, mas são imprescindíveis uma da outra.
- Seria ingênuo e simplificador imaginar que não há uma forte tensão entre as duas “falas” ou os dois discursos. Isto é natural e previsível. O problema é se uma das partes fica muda. É o que acontece atualmente em nível nacional.
- É claro que a magnitude do Governo federal, a sua dimensão estratégica, a indiscutível importância de que as coisas dêem certo e as imensas dificuldades a enfrentar centralizam de tal forma a estrutura do país – e a nossa dentro dela – que todas as coisas têm como medida o que é bom, necessário ou imprescindível ao governo Lula.
- Conseqüentemente, as nossas “razões de Estado” só aumentam de importância e, portanto, os movimentos táticos, a ampliação de alianças, as concessões políticas inesperadas em torno de grandes temas – transgênicos, FMI, etc. – passam a ser não somente a “fala” do Governo, mas a “fala” do partido, já que o PT é indissociável do Governo Lula e o Governo Lula inseparável do PT.
Sobre a figura do presidente
O presidente Lula começa a ter um certo desgaste porque acaba segurando – ele mesmo – o prestígio e a autoridade política e moral do Governo. Portanto, acaba sendo ele o escudo do Governo e, obviamente, vai tendo erosionada a sua imagem.
É complicado ser uma gigantesca liderança popular na época do neoliberalismo triunfante em nível mundial. Isto porque a estrutura e os recursos do aparelho de Estado cada vez mais frágeis não permitem uma resposta nítida para as políticas sociais e os grilhões da política econômica herdada continuam drenando a energia e os frutos do trabalho do povo brasileiro.
É complicado “manter a popularidade” de um líder popular (a redundância é intencional) quando ele não pode fazer o que fez o velho populismo – Vargas e Perón – , concedendo leis e direitos aos trabalhadores e nem pode desenvolver uma política moderna de leis e mudanças sociais. Isso porque, de um lado, o Estado está quebrado e, de outro, a dívida come e determina os caminhos de uma parte importante dos resultados da atividade econômica do país.
Sobre o conteúdo do discurso
A situação se agrava na medida em que o “discurso” do governo e, particularmente, do presidente é o de explicar com energia porque não fazemos o que desejaríamos. Assim, o discurso é convencer que é preciso compreender que os programas da esperança são de distante realização.
Se existe uma pedagogia política – e sabemos que sim – é um grande complicador que em vez de falar o que queremos fazer, passamos o dia explicando por que não temos força para fazer o que queremos.
Sobre a ausência de símbolos
É muito negativo que com quase um ano e meio de governo não tenhamos conseguido afirmar símbolos positivos notáveis e simples para identificar melhor por que esse governo não é igual aos outros – e não é. Entre as oportunidades mais evidentes que perdemos para fazer um sinal em direção aos setores populares, está a opção governamental pelo salário mínimo de R$ 260.
Compreendemos profundamente que a nossa vitória nacional se deu sob condições de cerco, herança nefasta, destruição do país e do aparelho de Estado, como também temos consciência da forma dramática com se deu a inserção subserviente do Brasil no mundo globalizado. Mas, por isto mesmo, se a evolução positiva das metas que estabelecemos na última campanha presidencial é fatalmente lenta e cheia de obstáculos, não é possível percorrer este caminho sem sinalizar e concretizar, ao menos em determinadas situações, posições claras que segurem a confiança dos trabalhadores.
Sobre a época histórica
Devemos ter uma permanente consciência e um militante trabalho de conscientização da nossa gente sobre o mundo onde estamos e o poder de retaliação e destruição – seja por meios militares ou financeiros – que a direita hegemônica e predadora possui.
Por tudo isso, nunca é demais insistir na fragilidade da conjuntura, na necessidade estratégica de defender o nosso projeto, na consciência dilacerante de compreender como ele evolui por entre contradições e dificuldades. É só assim que doloridos e lúcidos agüentaremos o tranco, continuaremos na luta e renovaremos a esperança.
*Flávio Koutzii é deputado estadual pelo PT no RS