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Forçar as portas do futuro: Políticas de cotas raciais como elemento constitutivo para um Brasil de todos/as

216551Por Clédisson Júnior e Marcela Ribeiro.

No Brasil são comuns as ações, os conceitos, as medidas serem valoradas de formas distintas. As diferenças coadunam de acordo com a orientação ideológica de quem reivindica ou ataca qualquer preceito.

Historicamente em nosso país as perspectivas ideológicas dominantes sempre foram alinhadas ao poder do capital e suas necessidades de manutenção, por consequência, aos interesses de pequenos grupos econômicos. A partir da ascensão de setores progressistas ao poder central do país houve um deslocamento de pautas anteriormente marginalizadas reorientando o olhar do poder público para políticas direcionadas às maiorias oprimidas.

Destacamos hoje no cenário político nacional as ações afirmativas para promoção da igualdade racial como um desses avanços. O Sistema de cotas se configura na atualidade como um dos principais instrumentos de democratização das instituições públicas de ensino superior.

Trata-se de uma medida de reparação étnico-racial e promotora de oportunidades para segmentos populacionais historicamente marginalizados, com centralidade nas populações negras e indígenas.

Tanta polêmica criada em torno das políticas de cotas raciais, por setores conservadores, tem no horizonte a defesa de seus interesses, como por exemplo a manutenção do ensino superior como centro de formação de quadros dirigentes todos ligados aos grupos detentores dos meios de produção em nossa sociedade. Democratizar o conhecimento e promover um processo de emancipação de consciência das classes populares, em especial da classe trabalhadora, nitidamente coloca em risco os privilégios desta mesma elite.

Ao defendermos as ações afirmativas não estamos promovendo ineditismos. Ao optar por uma política de substituição de mão de obra negra escravizada por de mão de obra assalariada imigrante oriunda da Europa, no final do século XIX, o Estado brasileiro ofereceu como incentivo à vinda destes imigrantes porções de terras cultiváveis para a reprodução de suas vidas, assim como suas moradias e garantias de empregos.

O pressuposto de que reservas de vagas para afrodescendentes nas universidades públicas fere a Constituição Federal é uma das mais propagadas falácias difundidas por setores reacionários que constroem interpretações dos artigos constitucionais a partir de seus próprios interesses.

A partir do princípio da igualdade regido pela Constituição organizamos nossa intervenção e defesa em torno das políticas de ações afirmativas. Com base neste princípio, todos/as são iguais diante da lei. O que mais se observa é a construção de mitos a despeito de tal princípio apresentar duas interpretações plausíveis e não antagônicas.

O primeiro trata-se do acesso a justiça e o segundo trata da promoção de garantias de oportunidades iguais. Fruto desta compreensão, o tratamento dado pelo Estado a indivíduos em situações de desvantagens políticas, econômicas e social, no mesmo patamar que são tratados os demais em situações de vantagens em relação aos anteriores, se configura como um ato de injustiça.

Na obra “Ética a Nicômaco”, o filósofo Aristóteles já se preocupava com questões referentes à equidade. Defendida por vários juristas brasileiros inclusive pelo coautor da Constituição da Primeira República, Ruy Barbosa, equidade consiste na adaptação da regra existente à situação concreta, observando-se os critérios de justiça e igualdade.

Além de não ferir ao referido princípio há outro que legitima e nos instrumentaliza na defesa das políticas de cotas. Sendo este o princípio da dignidade da pessoa humana, pelo qual está previsto uma série de direitos dentre eles o direito a moradia, ao trabalho, a EDUCAÇÃO.

As cotas raciais são frutos de uma política de inclusão e justiça social formulada pelo movimento social negro e apropriada para fins de políticas públicas pelo Estado e pelas instituições de ensino superior com fulcro no artigo 206, inciso I, da Constituição Federal, o qual determina como princípio do ensino, dentre outros, “a igualdade de condições para o acesso e permanência na escola”, resultante da autonomia universitária garantida constitucionalmente pelo art. 207.

O entendimento sobre o fato das cotas não resolverem os problemas imediatos das disparidades entre negros e não negros, em nossa sociedade, é aceito por todos/as.  Compreendemos políticas de cotas como uma medida necessária a fim de promover o amplo debate sobre as distorções históricas no tratamento dada pelo Estado a população negra assim como a importância de medidas reparatórias que visem ressignificar o papel deste mesmo Estado frente à construção de uma sociedade solidaria, justa e socialmente referenciada.

É essencial compreendermos a dívida histórica do Estado brasileiro com o povo negro. Após a “abolição” da escravidão, os/as negros/as foram postos a margem da dinâmica de socialização, ao passo que trabalhadores europeus foram trazidos como parte de um projeto de embranquecimento de nossa sociedade. Naquele período observou-se a formulação de políticas e leis que dificultavam o acesso dessa grande parcela populacional de ex-escravos a direitos, à cidadania e à dignidade.

Ao divulgarem que promover um processo reparatório com um século de atraso é simplesmente penalizar as gerações atuais pelos erros das anteriores é ignorar que as gerações atuais ainda se beneficiam desse histórico de opressão. A luta e os esforços empreendidos por políticas reparatórias visam problematizar e dar respostas a um preocupante nível de desigualdade enraizado em nosso país fruto deste criminoso processo histórico.

São alarmantes os dados sobre a situação da população negra. Segundo o Censo de 2000 a população negra detinha cerca 4% do rendimento do país entre aposentadoria, salário, programas de renda mínima e aplicações financeiras, pardos 21,9% e brancos 74,1%.

O panorama do nível superior em 2002, também se apresentou desanimador, havia 2 milhões 864 mil e 46 jovens, destes 78,5% eram de brancos, 0,23% de negros que juntando com os pardos representavam apenas 1,84%. Já na pós-graduação a predominância dos brancos é de 86,4%, tendo 9,2% de pardos, 1,8% de negros, 1,9% amarelos e 0,2 de indígenas.

Passadas uma década do levantamento destes dados hoje lidamos com uma tímida, mas significativa alteração nestes índices, graças à adoção de políticas de reservas de vagas a partir de critérios étnico-raciais. Estamos falando de uma verdadeira revolução na inclusão de segmentos populacionais historicamente marginalizados nas universidades brasileiras.

Todo esse panorama demonstra como a dívida do Estado com os afrodescendentes é atual e acumulativa. Evidencia as disparidades sociais e a cor de quem são os oprimidos, por consequência deixando em evidência a cor de quem são os opressores.

Há aqueles/as que defendam que as cotas sejam apenas sociais. Com tudo existe uma necessidade objetiva quanto ao caráter racial das vagas reservadas. Segundo Bourdieu, o “desempenho escolar não é resultado apenas da formação e origem social mas de uma série de fatores que condicionam sua participação na escola”, a discriminação sofrida pelas crianças, a violência psicológica, o racismo na infância influenciam em sua aprendizagem.

É falaciosa a afirmação de que as políticas de cotas agravam o problema do racismo em nosso país. Essa mesma política promove um enfrentamento direto do interesse do conservadorismo e do atraso em continuar hegemonizando o acesso a academia e a produção do conhecimento científico.

Ao analisarmos dados de 2009, que nos apresentam uma radiografia das instituições de ensino superior no Brasil, observamos que o objetivo de construir uma universidade democrática e que seja reflexo da diversidade étnico-racial de nossa sociedade enfrenta um desafiador obstáculo no que diz respeito à composição étnica do seu corpo docente.

Na ocupação das vagas docentes na USP de um total de 4.705 professores/as apenas 5 eram negros/as; na UFRGS dos 2.000 professores/as, 3 eram negros/as; na UFRJ do total de 3.200 professores/as, 20 eram negros/as. Essa disparidade se reproduz nas diversas instituições de ensino por todo o país. A instrumentalização de um número maior de negros/as para ocupar estes e outros espaços em nossa sociedade é estratégico para a construção de uma sociedade verdadeiramente justa e democrática.

O aprofundamento e intensificação das políticas de inclusão e justiça social, como as cotas raciais, são fundamentais para a edificação deste novo marco civilizatório, uma vez que estas políticas propiciam a inserção de diferentes realidades ao tecido social e a partir delas são construídas novas perspectiva, novos referenciais de mundo.

 

Com base nesta compreensão, medidas que democratizem e promovam a inclusão de estudantes de origem popular, trabalhadores e trabalhadoras no ensino superior como o sistema de cotas, o PROUNI, o REUNI são essenciais para o avanço do caráter democrático e emancipatório das políticas educacionais. Essas medidas permitem a construção de um modelo de educação que dialogue com todas as diversas realidades, todas as diferentes juventudes, um modelo educacional libertário que propicie o salto qualitativo da educação brasileira.

Ao construírem argumentação visando imputar inconstitucionalidade a políticas de cotas raciais, setores reacionários buscam deslegitimar e conter o vigoroso processo de democratização e popularização da universidade brasileira. Ao lado destes assistimos argumentos como o da inversão do sistema meritocrático do vestibular, e o fato de que as cotas raciais baixam o nível acadêmico das instituições de ensino, argumento este derrubado pelos recentes dados que apontam para o sucesso dos/as estudantes cotistas nas avaliações de desempenho, assim como inúmeros outros argumentos já problematizados e desmistificados pelas reflexões e formulações do movimento negro, seja atuando na academia ou na arena pública.

Estamos distantes de vivenciarmos no Brasil a tão falada democracia racial, mas medidas como as políticas afirmativas nos fazem acreditar e tecer uma trajetória neste sentido. A vitória que esperamos será fruto das mobilizações dos setores progressistas de nossa sociedade com centralidade no movimento negro brasileiro, que compreende a política de cotas raciais como um verdadeiro salto para o futuro, será essa política o motor deste novo Brasil que, ao olhar para trás em nossa história, não se furtará de construir um destino melhor para todos e todas.

Nada virá de graça ao povo negro, mas os processos históricos mostram que somos herdeiros de uma tradição de intensas lutas e processos de resistência, em nossa constituição identitária não paira o medo, mas a garra, a vontade de lutar, a certeza de vencer!

* Clédisson Júnior é Conselheiro Nacional de Promoção da Igualdade Racial, militante do Coletivo Nacional de Juventude Negra ENEGRECER e membro da Coordenação Nacional da DS.

* Marcela Ribeiro é vice-presidenta da União dos Estudantes da Bahia e militante do Coletivo Nacional de Juventude Negra ENEGRECER. 

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