Democracia Socialista

Fortalecer a democracia representativa

Por Marcus Ianoni, na Teoria e Debate

Novamente o Congresso Nacional move-se com o objetivo de aprovar a reforma política. Mas, mais uma vez, as dificuldades políticas de obtenção de consenso se fazem presentes. A ideia de pôr em votação no plenário da Câmara os projetos relatados pelo deputado Henrique Fontana (PT-RS), na Comissão Especial da Reforma Política, foi rejeitada pela maioria dos líderes. Por isso, os projetos seguirão o trâmite normal, devendo ser, primeiramente, submetidos à votação na Comissão Especial, o que, no entanto, ainda não havia sido feito por falta de acordo naquele fórum. Além disso, o Diretório Nacional do PT acaba de lançar uma campanha de mobilização para tentar liberar a reforma política do grilhão institucional em que se encontra.

Em uma pesquisa feita em 2011 para a Fundação Perseu Abramo, este autor apontava três elementos de análise sobre a reforma política: a dificuldade de construir consenso, a avaliação de que as mudanças institucionais do sistema político têm sido incrementais e a necessidade de evitar o reducionismo institucionalista. O primeiro elemento deriva da avaliação do processo da reforma política, em curso desde o início dos anos 1990. Ele tem se caracterizado pela grande dificuldade de os atores, partidos, lideranças, congressistas e forças sociais acordarem sobre o conteúdo das mudanças (1). Um desdobramento do obstáculo representado pela falta de consenso é que a mudança tem sido gradualista, tem tido um caráter incremental e produzido resultados cumulativos, os quais, no entanto, ainda não alteraram instituições-chave que conformam a estrutura institucional atual do sistema representativo brasileiro: o padrão privado do financiamento político e o sistema eleitoral de lista aberta nas eleições proporcionais.

A proposição contra o reducionismo institucionalista se coloca devido às instituições políticas resistentes à mudança reproduzirem relações sociopolíticas arraigadas, históricas, baseadas no personalismo e, cada vez mais, na desigualdade de poder econômico, elementos que impregnam as campanhas eleitorais e outros momentos da dinâmica do sistema político. Os impactos institucionais dessas relações de poder precisam ser vistos, então, a partir dos nexos entre o sistema político e a estrutura social mais ampla.

O propósito deste trabalho está expresso em seu título: é abordar um objetivo global da reforma política. Mas não se ignora que a esquerda democrática defende um conjunto mais amplo de mudanças. O foco aqui é a democracia representativa, o regime político que o PT quer fortalecer com a introdução de algumas mudanças institucionais. A democracia brasileira também contém elementos participativos e diretos, os quais, no entanto, não serão abordados aqui.

Sistemas partidário e eleitoral no Brasil

Entre os elementos que compõem a democracia representativa, podem ser destacados os seguintes: eleições regulares, partidos e candidatos, plataformas, eleitorado, participação, financiamento político (partidário e eleitoral), vagas em disputa (no Executivo e no Legislativo), sistema eleitoral, representantes eleitos e vínculos entre representantes e representados.

Quando se fala em fortalecer a democracia representativa, surgem algumas perguntas. O que se quer fortalecer? Os partidos e a participação partidária e eleitoral. Como? Mudando as instituições políticas. Quais? O sistema eleitoral de lista aberta e o financiamento privado. Por quê? Porque essas duas instituições dificultam o fortalecimento dos partidos e restringem a participação partidária e eleitoral.

Partidos e participação são dois elementos-chave da democracia representativa. Resgatemos uma reflexão bastante conhecida do cientista político norte-americano Elmer Eric Schattschneider: “Partidos políticos criaram a democracia moderna e a democracia moderna é impensável exceto em termos dos partidos”. (2) Como é possível ter organizações partidárias que possuam plataformas e sejam meios de participação política e eleitoral?

Que diagnóstico se tem do sistema partidário brasileiro? Há trinta partidos com registro no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). De 2011 para cá três novos partidos conseguiram registro: o Partido Social Democrático (PSD), o Partido Pátria Livre (PPL) e o Partido Ecológico Nacional (PEN). Além disso, em 2012, requereram registro mais cinco: Partido Nacionalista Democrático (PND), Partido da Mulher Brasileira (PMB), Partido Federalista (PF), Partido Humanista do Brasil (PHB) e Partido Social (PS). Mais recentemente, se candidataram à condição de novos partidos a Rede Sustentabilidade (Rede) e o Mobilização Democrática (MD), proveniente da fusão entre PPS e PMN.

Embora a liberdade partidária seja um valor caro ao PT, é inevitável perguntar: qual o lastro sociopolítico desses partidos? Eles representam visões distintas de Brasil, por assim dizer? A resposta é não. É consenso no meio acadêmico que o espectro ideológico dos partidos brasileiros não tem polarização acentuada. Mas isso não implica ausência de problemas na tomada de decisões pelo Congresso. No início da atual legislatura, como resultado das eleições de 2010, havia quinze partidos no Senado Federal e 22 na Câmara dos Deputados. Isso significa um número de partidos efetivos muito alto, de 7,6 e 10,8, respectivamente, para as Câmaras Alta e Baixa (Ranulfo, 2010). Segundo Jairo Nicolau (2010), “a Câmara dos Deputados brasileira é, atualmente, a mais fragmentada do mundo democrático”. Embora, na ciência política, haja divergência em relação ao diagnóstico sobre se os partidos brasileiros são fortes ou fracos, parte expressiva, se não majoritária, dos pesquisadores os considera fracos, sobretudo na arena eleitoral (Ames, 2001; Pereira e Mueller, 2003; Guarnieri, 2011).

Contudo, em relação à fragmentação partidária, deve-se observar que ela é alta no Legislativo, mas declinante no Executivo. O Brasil possui, hoje, um multipartidarismo forte nas eleições proporcionais, mas fraco nas majoritárias, especialmente nas eleições para os governos federal e estaduais, em que dois grandes blocos têm polarizado a disputa: PT e seus aliados versus a coligação liderada pelo PSDB (Limongi e Cortez, 2010). As causas da fragmentação partidária no Congresso são várias, entretanto, cada vez mais, uma hipótese se destaca. A lista aberta é uma das principais causas, sobretudo quando associada ao financiamento privado de campanhas eleitorais, como é o caso no Brasil. Onde há lista aberta, há mais conflito e fragmentação nos partidos (Idea, 2005).

Mas o que são partidos fortes ou fracos? A resposta a essa pergunta envolve elementos explicativos e normativos. Como são os partidos brasileiros e que sistema partidário se quer ter? Segundo Mainwaring e Torcal (2005), em um sistema partidário forte, os partidos possuem sólido enraizamento na sociedade: há fortes vínculos programáticos ou ideológicos entre eleitores e partidos, fracos vínculos personalistas entre candidatos e eleitores e um alto nível de institucionalização dos partidos. De outro lado, em sistemas partidários fracos, há fortes vínculos personalistas entre eleitores e candidatos, personalismo nas práticas internas, alta competição interpartidária e um baixo nível de institucionalização dos partidos. Lembremos, por exemplo, que, na América Latina, Fernando Collor de Mello e Alberto Fujimori criaram partidos para se candidatar à Presidência de Brasil e Peru, respectivamente, elegeram-se e sofreram impeachment.

Nas eleições majoritárias, nas quais há um cargo em disputa, quando a competição é pelo Executivo federal ou pelos Executivos estaduais e um ou dois cargos em disputa quando se trata do Senado, tem ocorrido uma tendência bipartidária: bloco PT versus bloco PSDB. Nesses casos, observa-se maior coordenação estratégica das elites e maior compreensão da disputa por parte do eleitorado (Limongi e Cortez, 2010).

Já nas eleições proporcionais, o grande número de cargos em disputa e o incentivo institucional representado pela lista aberta, que induz ao lançamento voluntarista de candidatos, as listas são definidas em convenções partidárias que frequentemente apenas homologam candidaturas de fundamento motivacional individualista. Mas a liberalidade da lista aberta não impede que, em alguns partidos, existam caciques e tendências oligárquicas. O grau de democracia interna dos partidos varia interpartidariamente e, também, intrapartidariamente, conforme, por exemplo a região. Ao mesmo tempo, os dados mostram que, quanto mais financiamento privado os candidatos conseguem, maior a chance de se elegerem. O relatório da reforma política feito pelo deputado Henrique Fontana (PT-RS), por exemplo, evidencia vários desses dados. Ou seja, as campanhas proporcionais, em boa medida, têm se transformado em um empreendimento econômico-personalista ou em microempreendedorismo político-individualista. Nesse quadro, os eleitores têm dificuldade de fazer distinções entre os partidos (Kinzo, 2005).

Nas eleições proporcionais não há partidos X, Y ou Z se apresentando ao eleitorado, mas inúmeros candidatos que, só formalmente, se lançam pelas legendas X, Y e Z, pois assim exige a legislação. Os eleitores não veem os partidos, e sim um amontoado de candidatos de vinculação partidária não identificada. Muitas candidaturas até se esforçam para esconder o nome de seu partido ou coligação. O foco é o candidato, não o partido. O candidato é o produto. O partido é apenas a pessoa jurídica formalmente necessária para o lançamento do produto político no mercado eleitoral.

Não à toa, é comum o eleitor ter a impressão, ao assistir ao horário eleitoral gratuito, de que está vendo uma comédia ou, pior, tragicomédia. É frequente também o eleitor perceber que está vendo um lamentável espetáculo de propaganda comercial-política, protagonizado por personas que se candidatam ao sistema representativo. O foco na pessoa faz o horário eleitoral gratuito e a campanha eleitoral tornarem-se um mercado político-popular, que, apesar das aparências, está de costas para o povo. Não se trata de uma crítica elitista, e sim da defesa da instituição partidária contra práticas políticas personalistas e mercantes. Urge que os partidos, com base no debate interno sério, definam suas listas preordenadas de candidatos.

Multipartidarismo: qual é a avaliação?

O multipartidarismo no Poder Legislativo atrapalha ou não? As posições sobre esse assunto na ciência política, entre os políticos e na sociedade em geral não são consensuais. Este texto se identifica com a análise do problema presente em declaração do deputado Ibsen Pinheiro (PMDB-RS): “Com maiorias precárias, os grandes partidos perdem poder de deliberação e as minorias ganham poder de obstrução e de barganha. Como, nesse cenário, a deliberação é extremamente difícil, há a necessidade de muita negociação, em que o interesse contrariado tem poder de veto”. (3)

Na avaliação do deputado gaúcho, a permissão de coligações proporcionais é a principal causa da proliferação de partidos na Câmara dos Deputados. Pode-se aprofundar essa análise incluindo a lista aberta. Os candidatos midiáticos, por exemplo, por se exibirem nos palcos (palanques) cotidianos propiciados pelos meios de comunicação de massa, se aproveitam do personalismo estimulado pelo sistema eleitoral de lista aberta para ingressar, de modo oportunista, em algumas legendas, sobretudo nas de pequeno porte, e lançar-se às eleições proporcionais visando converter sua popularidade televisiva em votos. Alguns partidos inclusive vão atrás de personalidades da TV com o intuito de incentivar essas candidaturas artificiais. (4) Mas ainda outro elemento precisa ser introduzido nessa equação: o financiamento privado das campanhas eleitorais. O oportunismo corrói o sistema político tanto pelo personalismo do sistema eleitoral como pelo microempreendedorismo político-individualista do poder econômico, que tem sido a alavanca material de financiamento do aventureirismo eleitoral privado.

A análise de Ibsen Pinheiro também aparece na ciência política. Autores como Kinzo (2005), já mencionada, Cintra (2008) e Rebello (2012) corroboram a tese de que a fragmentação é excessiva, dificulta a tomada de decisões, não expressa representatividade dos partidos e tampouco é um problema de somenos apenas pela inexistência de acentuada polarização ideológica no sistema partidário. “A tendência de alta de fragmentação não significa, necessariamente, que eventual reforma política deva realizar um enxugamento imediato do sistema partidário, mas significa que alguns elementos essenciais ao desenvolvimento democrático como a representatividade e o voto não estão positivamente relacionados com tamanha dispersão partidária” (Rebello, 2012).

Uma coisa é o princípio constitucional do pluralismo político, conquista do Estado Democrático de Direito que precisa ser respeitada e ter as condições de efetivação garantidas, através, entre outras, da liberdade partidária; outra coisa são o oportunismo político e a liberalidade partidária, que implicam colonização da política pelos que não querem a ela servir enquanto prática coletiva para a realização do bem comum, mas sim dela servir-se para fins privados e mesquinhos.

A proliferação de partidos tem muito a ver com essa liberalidade, uma liberdade partidária sem limites, que acaba pondo em xeque a funcionalidade e a legitimidade dos partidos e do sistema partidário. Do ponto de vista sociológico-político, a pulverização partidária no Brasil tem muito a ver com a colonização do sistema político por esse oportunismo, elemento que se combina com práticas como clientelismo, patrimonialismo e corrupção. Esta última, sobretudo, tem sido um grande problema do sistema político brasileiro ao qual o financiamento privado das campanhas eleitorais está relacionado.

A excessiva fragmentação na Câmara dos Deputados e no Senado Federal dificulta a tomada de decisões. O custo decisório torna-se alto. Não há falta de consenso apenas em relação à reforma política, mas também em outras matérias, como ocorreu recentemente na discussão do Código Florestal e na distribuição dos royalties do petróleo. Matérias tributárias, federativas e outras são muito polêmicas. Quando a obtenção de consenso se torna problemática, uma ou duas dezenas de votos no Congresso Nacional ganham uma importância muito maior do que realmente têm quando se trata da votação de matérias não polêmicas. Essa inflação da importância do voto parlamentar converte-se, então, para alguns partidos e congressistas, em demanda por recursos institucionais, cargos no Executivo ou no Legislativo, recursos para campanha eleitoral, emendas parlamentares etc. Isso ocorre mesmo nas fileiras da base governista.

O chamado presidencialismo de coalizão brasileiro tem convivido com essa barganha por demais oportunista. Mas há também situações de veto ainda mais graves, nas quais nem barganha ocorre, nem esta funciona como destravamento, caso, por exemplo, do impasse na reforma política. A despeito das dificuldades, a reforma política é necessária para superar ou, ao menos, minimizar problemas de tomada de decisão no sistema político, baixa institucionalização do sistema partidário, representatividade no regime democrático e influência do poder econômico sobre o resultado das eleições, que restringe o acesso dos menos favorecidos aos Parlamentos, assim como aos Executivos das três instâncias da federação.

Raízes do Brasil e as instituições políticas

A excessiva fragmentação partidária nas eleições proporcionais explica-se por fatores institucionais – o financiamento privado, a lista aberta, as coligações proporcionais e a insuficiência das regras de fidelidade partidária. Mas tais fatores não se originam e se encerram nas instituições políticas stricto sensu, pois são escolhas institucionais vinculadas a algumas características importantes da estrutura social brasileira.

O Brasil é o inventor da lista aberta, introduzida aqui em 1935, enquanto na Finlândia só o foi em 1955 e, no Chile, em 1958 (Nicolau, 2006). Na Assembleia Constituinte de 1934, reuniu-se uma comissão especial para propor mudanças no Código Eleitoral de 1932. Como resultado, em maio de 1935 foi aprovada a Lei nº 48, em que aparece, pela primeira vez, o sistema proporcional de lista aberta, embora, então, fosse permitida a candidatura avulsa, por requerimento dos eleitores, simultaneamente às candidaturas registradas por partidos ou alianças de partidos. O golpe que deu origem ao Estado Novo, em 1937, implicou a anulação das eleições agendadas para 1938. A lista aberta só foi introduzida nas eleições gerais de 1945, apoiada no Decreto-Lei nº 7.586, naquele ano, conhecido como Lei Agamenon, que por sua vez se inspirou na referida lei de 1935. Assim, os partidos conquistaram o monopólio do lançamento de candidaturas (Pires, 2009). Mas o interessante nessa história é compreender o quanto a escolha da lista aberta é um fruto das raízes do Brasil. Vale a pena reproduzir um momento representativo, entre outros, dos debates sobre a introdução da representação proporcional de lista, na Comissão Especial da Reforma Eleitoral, instituída pela Constituinte de 1934: (5)

João Villasbôas – A classificação deve ser dada pelos partidos. Se o partido arca com a responsabilidade de colocar determinados candidatos na cabeça das cédulas, em primeiro turno, se ele tem a certeza de que não serão vitoriosos nas urnas todos os candidatos e de que fará, apenas, um representante, por que não assume a responsabilidade da colocação de todos os demais nomes?

Adolfo Bergamini – Por ordem preferencial partidária?

Pedro Aleixo – Meu receio é que fôssemos instituir dentro dos partidos a possibilidade de abusos pelas direções partidárias. Preferi entregar aos eleitores do partido a escolha dos seus candidatos a deixar que a direção partidária fique discricionariamente dispondo da colaboração dos candidatos (DPL, 1935, p.1227-1229).

A posição de João Villasbôas é favorável à lista fechada, enquanto Pedro Aleixo, defensor do posicionamento vencedor, apoia a lista aberta. Essa escolha não foi fortuita. Pode-se iluminá-la referindo-se à obra clássica Raízes do Brasil, do historiador Sérgio Buarque de Holanda, publicada em 1936, que ao analisar a formação histórica brasileira visualiza elementos como personalismo exagerado, falta de coesão social, incapacidade de livre e duradoura associação, patriarcalismo, espírito de facção e patrimonialismo. Comparando os ibéricos em relação aos europeus de outras regiões, Sérgio Buarque de Holanda escreve: “É que nenhum desses vizinhos soube desenvolver a tal extremo essa cultura da personalidade, que parece constituir o traço mais decisivo da gente hispânica, desde tempos imemoriais. Pode-se dizer, realmente, que pela importância particular que atribuem ao valor próprio da pessoa humana, à autonomia de cada um dos homens em relação aos semelhantes no tempo e no espaço, devem os espanhóis e portugueses muito de sua originalidade nacional”. Em outro trecho, ele constata: “É frequente imaginarmos prezar os princípios democráticos e liberais, quando, em realidade, lutamos por um personalismo ou contra outro. O inextricável mecanismo político e eleitoral ocupa-se continuamente em velar-nos esse fato. Mas, quando as leis acolhedoras do personalismo são resguardadas por uma tradição respeitável ou não foram postas em dúvida, ele aparece livre de disfarces”.

Ao mesmo tempo, o historiador identifica a revolução brasileira, processo lento, que se processa com a Abolição, a decadência do agrarismo tradicional, a República, a urbanização. E vaticina: “Essa vitória nunca se consumará enquanto não se liquidem, por sua vez, os fundamentos personalistas e, por menos que o pareçam, aristocráticos, onde ainda assenta nossa vida social”. (6)

Há nas ciências sociais um debate clássico sobre a relação entre dois elementos-chave: estrutura e ação. A polêmica visa responder se o comportamento humano explica-se, primariamente, pelas ações e escolhas individuais ou pela conformação do indivíduo a estruturas sociais preexistentes. Essa discussão pode ser útil para iluminar a problemática da origem e transformação das instituições políticas. O sociólogo britânico Anthony Giddens (1989) dá uma contribuição importante, com sua teoria da estruturação, para a superação do dualismo, existente nas ciências sociais, entre objetivismo (estrutural-funcionalismo e estruturalismo) e subjetivismo (hermenêutica e fenomenologia). “A constituição de agentes e estruturas não são dois conjuntos de fenômenos dados independentemente – um dualismo –, mas representam uma dualidade (…) as propriedades estruturais de sistemas sociais são, ao mesmo tempo, meio e fim das práticas que elas recursivamente organizam. (…) Estrutura não deve ser equiparada a restrição, a coerção, mas é sempre, simultaneamente, restritiva e facilitadora. Isso, é claro, não impede que as propriedades estruturadas de sistemas sociais se estendam, no tempo e no espaço, para além do controle de quaisquer atores individuais.” (7)

Giddens identifica três tipos de estrutura em sistemas sociais: de significação, legitimação e dominação. Tais estruturas podem ajudar na compreensão da escolha e da permanência da lista aberta. Esta pode ser vista como uma instituição política vinculada à estrutura de dominação construída pelas conexões entre dois princípios estruturais, o personalismo e o poder econômico. À medida que o financiamento privado vai ganhando prevalência na dinâmica e nos resultados eleitorais, essa estrutura de dominação e sua casamata institucional se reforçam no tempo e no espaço.

Mas a lista aberta e o financiamento privado de campanhas eleitorais são, também, instituições que se apoiam em estruturas de significado e de legitimação. Segundo seus defensores, tais instituições expressariam a liberdade individual e o mérito liberal, o direito democrático do candidato se lançar às eleições, dispondo dos recursos que conseguir mobilizar na sociedade, e o direito democrático do eleitor votar no candidato de sua preferência. Estabelece-se aí uma hierarquia do que seria mais democrático; nela, votar no indivíduo é mais democrático que votar em uma lista estabelecida pelos partidos. E o controle pelo eleitor de uma lista de candidatos, que aparece em ordem meramente alfabética, sem hierarquização, é mais importante do que o partido ser uma estrutura efetivamente coletiva na qual o indivíduo deveria se inserir democraticamente.

Alimentando o personalismo exagerado e suas implicações na falta de coesão social, a incapacidade de livre e duradoura associação, o patriarcalismo, o espírito de facção e o patrimonialismo, ou seja, as mais nefastas raízes do Brasil, alguns se beneficiam e seus ideólogos defendem, descuidando dos interesses maiores da Nação, a manutenção do casamento arcaico entre personalismo e poder econômico, que subordina os partidos políticos, em pleno século 21, ao pior do iberismo da formação sociopolítica nacional e se opõe ao avanço da revolução democrática brasileira.

A lista aberta e o financiamento privado compõem uma equação entre ação e estrutura que hoje é extemporânea. Essa equação é um elemento explicativo importante do grau ainda baixo de institucionalização dos partidos políticos brasileiros e das insuficiências do sistema partidário. Ela não é a melhor síntese entre ação e estrutura para um país que passa por relevantes transformações nas ordens econômica, social e política e ainda tem pela frente inúmeros desafios para promover o desenvolvimento sustentável, a justiça social e um padrão mais participativo de democracia. A melhor síntese seria entre alguma modalidade de lista preordenada – fechada ou flexível – e o financiamento público exclusivo de campanhas. Outro ingrediente dessa melhor síntese poderia ser o fim das coligações proporcionais, para o que o relatório do deputado Henrique Fontana (PT-RS) tem como alternativa a criação da federação de partidos.

Hoje, apesar da rotinização perversa de práticas políticas apoiadas nos princípios estruturais do individualismo egoísta, personalismo e poder econômico, que capturam e colonizam a política com a lista aberta, o financiamento privado e o oportunismo da criação desenfreada de partidos artificiais, descortinam-se e reforçam-se horizontes democráticos promissores, emergentes de práticas originais de atores coletivos, cidadãos ativos, sujeitos nascentes de um Brasil que se constrói nas novas relações entre Estado e sociedade. São seres humanos equipados com desejos, ideias, valores progressistas diversos e vontade protagonista, que atuam em movimentos sociais, sindicatos, pastorais de base, comunidades, redes sociais, universidades, partidos de esquerda, Parlamentos, enfim, em condições estruturais mutáveis, nas quais, se ainda o poder econômico existe e fortalece-se, seu casamento com o personalismo pode ser dissolvido por um novo matrimônio, que vincula os sujeitos sociopolíticos coletivos a diversos modos de empoderamento democrático. Esses dois novos princípios estruturais, os sujeitos coletivos transformadores e o empoderamento democrático, já existem, estão em conflito com o velho personalismo e o poder econômico. Se muitos dos novos sujeitos coletivos são sem dinheiro para concorrer às eleições, são também sem medo de ser feliz. A lista partidária preordenada e o financiamento público exclusivo de campanhas eleitorais são as instituições políticas que mais dialogam com os novos tempos, tempos de remoção de velhas raízes do Brasil e de enraizamento de novas.

Recentemente, o Diretório Nacional do PT aprovou uma importante campanha de mobilização visando tirar o processo da reforma política do impasse. O centro da campanha é a coleta de assinaturas para viabilizar um projeto de lei de iniciativa popular sobre a reforma política. O projeto inclui quatro pontos:

1º) Instituir o financiamento público exclusivo de campanhas políticas mediante alterações na Lei nº 9.504/97;

2º) Voto em lista preordenada para os Parlamentos, mediantes alterações nas Leis nº 4.737/65, nº 9.096/95 e nº 9.504/97, observada a autonomia partidária (artigo 17, § 1º da CF);

3º) Aumento compulsório da participação feminina nas candidaturas mediante alteração da Lei nº 9.504/97;

4º ) Convocação de Assembleia Constituinte exclusiva sobre reforma política.

Diante da dificuldade de obtenção de consenso para fazer a reforma política e levando em conta que as instituições políticas resistentes à mudança têm sólidas raízes estruturais, que remontam ao passado e à persistência de seus fundamentos ao longo do tempo, o melhor a ser feito é organizar a mobilização para alterar a relação de forças e mudar as instituições que promovem o arcaico casamento entre personalismo e poder econômico. Como está no cerne da epígrafe deste texto, a luta pela reforma política precisa encontrar o conjunto de interseção entre o ideal e o possível. O Brasil precisa de um sistema político mais moderno e democrático, de partidos mais representativos e programáticos, de um sistema partidário mais forte, com maior nível de institucionalização, e de uma estrutura de financiamento político que não se baseie na colonização das instituições representativas pelos ricos e favorecidos, e sim faculte aos lutadores do povo o legítimo ingresso nos Parlamentos e Executivos do Estado Democrático de Direito.

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* Marcus Ianoni é professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense