Se houvesse uma escala Richter – aquela que mede a intensidade dos terremotos – para a política alemã, ela certamente explodiria na semana passada.
A semana começou com a comemoração na segunda-feira 27 dos 80 anos da libertação do campo de concentração nazista de Auschwitz-Birkenau, na Polônia, pelo Exército Vermelho da União Soviética, em 1945. O assunto é delicado e sempre deixa os nervos germânicos à flor da pele.
Na quarta-feira, 29, o parlamento alemão, o Bundestag, aprovou uma moção proposta pelo líder da oposição, Friedrich Merz, da União Democrata Cristã (CDU, na sigla alemã), para que se endurecessem as leis e regras da imigração e concessão de asilo.
A moção vinha na esteira bastante emocional de crimes cujos acusados são imigrantes de países predominantemente muçulmanos. O primeiro ocorreu em dezembro do ano passado, quando um imigrante oriundo da Arábia Saudita usou um caminhão para investir contra os frequentadores de uma feira de natal, em Magdeburgo, matando 6 pessoas e ferindo mais de 300.
O segundo aconteceu no dia 22 de janeiro, quando um imigrante vindo do Afeganistão atacou a facadas algumas pessoas em Aschaffenburg, matando duas delas, inclusive um bebê de 2 anos, e ferindo outras três.
Tais acontecimentos atiçaram o fantasma do “terrorismo islâmico”, sempre assim chamado pelos xenófobos da extrema-direita, embora até o momento tudo indique que tenham sido atos individuais de pessoas com problemas psiquiátricos.
No Bundestag votaram a favor da moção 348 deputados, com 345 contra, dez abstenções e 30 ausências. Os votos decisivos para aprovar a moção vieram dos deputados pertencentes ao partido Alternative für Deutschland (AfD), Alternativa para a Alemanha, de extrema-direita. Alice Weidel, a líder do AfD no Parlamento, comemorou o resultado, dizendo que Merz lançara uma moção que, na verdade, pertenceria ao seu partido. Anteriormente Merz declarara que tudo faria para que a moção fosse aprovada, mesmo que isto implicasse em contar com votos do AfD.
Foi aí que o terremoto começou. Ocorre que desde o fim da Segunda Guerra e do regime nazista firmou-se uma tradição entre os partidos tradicionais de não negociar com a extrema-direita. Ela tem um nome: “Brandmauer”, referência a uma parede corta-fogo entre as de dois prédios geminados. E a
disposição de Merz foi lida por muita gente como uma ruptura desta tradição.
As reações foram rápidas e veementes. Michel Friedman, influente membro da CDU, ex-presidente do Conselho Central de Judeus na Alemanha, anunciou que se desligava do partido. Albrecht Weinberg, de 99 anos, sobrevivente do Holocausto, ex-prisioneiro de Auschwitz, condecorado pelo governo alemão, disse que estava devolvendo a medalha por não aceitar a ruptura daquela tradição no Bundestag.
A ex-chanceler Angela Merkel saiu de seu silêncio obsequioso desde que renunciou ao cargo e à liderança do partido, criticando publicamente a atitude de Merz. O atual chanceler Olaf Scholz, do Partido Social-Democrata (SPD) e políticos de outros partidos também criticaram Merz.
Em Berlim uma gigantesca manifestação com milhares de pessoas repudiou a atitude de Merz e o AfD. Outros manifestantes acorreram à frente da sede da CDU, na Klingenhöferstrasse n. 8, pressionando o partido para rever sua posição.
O resultado foi contundente. Na sexta-feira 31 Merz apresentou a proposta de transformar a moção aprovada na quarta-feira em lei, agora com efeito vinculatório. O debate foi descrito na mídia como “acalorado”, “emocional”, “histórico”. E no final da tarde, computados os votos, constatou-se a derrota da proposta por 350 votos contrários, 338 a favor, cinco abstenções e 40 ausências. Apesar do voto ser secreto, ficou evidente que houvera defecções dentro do próprio partido de Merz.
Como ler esta sequência de eventos? Aparentemente, Friedrich Merz, candidato a chanceler, lançara um balão de ensaio, a fim de fortalecer sua posição de liderança a três semanas das eleições para o Bundestag. Nas pesquisas de intenção de voto a CDU aparece em primeiro lugar e o AfD em segundo. E outras pesquisas indicam que uma maioria de eleitores favorece uma maior rigidez quanto à imigração e à concessão de asilos.
Agora pairam dúvidas sobre como esta semana turbulenta poderá afetar ou não as eleições. Pode ser que Merz tenha ido buscar lã, saindo tosquiado. Ou por outra, que, tendo forçado o muro corta-fogo, tenha no mínimo se chamuscado.
Flávio Aguiar é jornalista e escritor, é professor aposentado de literatura brasileira na USP.