O Projeto de Lei Complementar 92/2007, que visa regulamentar as Fundações Estatais (Fundações Públicas de Direito Privado), tem sido objeto de muita polêmica entre militantes petistas, em especial os implicados na luta pela saúde no Brasil, pois, embora o projeto se destine a diversas áreas, é na saúde que surgiu e onde ganha mais força. Neste debate vemos de um lado, parte importante do movimento sindical nacional fortemente crítico à proposta e, de outro, defendendo-a e envolvidos em sua construção, a maioria dos sanitaristas e gestores da saúde de nosso partido. Neste pequeno texto procuraremos apontar algumas questões que julgamos fundamentais para um bom debate sobre o tema. Só um franco, solidário e bom debate poderá permitir que, partindo de princípios e objetivos comuns, possamos avançar no entendimento e na construção de um consenso progressivo necessário e importante para a luta social que travamos.
EMERSON MERHY, HEIDER PINTO e TULIO FRANCO
UM DEBATE CHEIO DE CONFUNDIMENTOS NUM CONTEXTO RUIM
Em primeiro lugar é necessário reconhecer que existem diversos elementos no contexto que dificultam esse bom debate. A conjuntura não favorece, uma vez que estão colocados na pauta alguns conflitos do governo federal com o movimento sindical relacionados ao PLP 01 e à regulamentação do direito de greve do servidor público. A mídia monopolista comercial aproveita-se da situação e, ao tratar do tema, provoca uma identificação da proposta com as idéias de ataque ao servidor público e de valorização da lógica e da propriedade privada em detrimento da pública, afirmando propositalmente valores do projeto neoliberal. Além disso, o Grupo de Trabalho Interministerial formulou a proposta e encaminhou o PLP ao Congresso sem debatê-lo suficientemente com vários segmentos sociais que tinham interesse em fazê-lo. Por fim, há ainda uma enorme confusão com relação ao entendimento e uso do termo “direito privado”.
Nos diversos debates que ocorrem Brasil afora se fala que a proposta promoverá a privatização e a terceirização dos serviços públicos resultando numa desresponsabilização do Estado na garantia de direitos universais dos cidadãos. Devido a isso, denuncia-se seu suposto caráter “anti-SUS”. Fale-se também em precarização do trabalho e na não garantia dos direitos dos trabalhadores. Por fim, identifica-se a proposta como uma continuação do projeto de reforma do Estado “bresseriana” e credita-se sua proposição à permanência de uma tecnocracia neoliberal tucana no governo Lula.
É evidente que se achássemos que qualquer uma dessas afirmações fosse verdadeira seríamos obstinados oponentes da proposta, não defensores.
O PT E A CONSTRUÇÃO DA PROPOSTA DA FUNDAÇÃO ESTATAL
Ora, é importante esclarecer que, embora as Fundações Públicas de Direito Privado não sejam nenhuma novidade no setor público brasileiro, o “DNA” dessa proposição recente é petista. No Rio Grande do Sul muito se debateu no Grupo Hospitalar Conceição – dirigido por petistas – a construção de um modelo jurídico e de gestão que publicizasse o hospital ampliando sua agilidade, efetividade e a qualidade dos serviços prestados à população. Lá também foi criada nesse modelo jurídico-institucional a Universidade Estadual do Rio Grande do Sul no Governo Olívio Dutra. Foi ainda na intervenção do Ministério da Saúde de Humberto Costa em 2005 no Rio de Janeiro que, frente ao colapso do setor hospitalar carioca, se instituiu o grupo de trabalho com a finalidade de estudar alternativas de gestão que solucionassem os problemas desses serviços sem ceder à proposta neoliberal bresseriana de terceirização ao setor privado através das Organizações Sociais e OSCIP’s. E, obviamente, é o Governo Lula que apresenta a proposta ao Congresso Nacional.
Mais recentemente, foi novamente o PT que propôs um marco jurídico-institucional para a proposta das Fundações Estatais adequado e coerente com o projeto político-social defendido historicamente por nosso partido. Assim, o marco jurídico que defendemos está apontado no substitutivo à PLP 92 apresentado pelo Deputado Federal Pepe Vargas do PT-RS. O marco institucional é o da proposta de Fundação Estatal construída pelo governo Jaques Wagner da Bahia como fruto de amplo debate social. Assim, partindo do projeto do GT Interministerial, mas com base principalmente nesses dois marcos é que apontaremos as Fundações Estatais como um importante instrumento de recuperação e ampliação da capacidade de ação do Estado em alguns setores importantes para a revolução democrática defendida por nosso Partido.
O QUE É A FUNDAÇÃO ESTATAL
A Fundação Estatal é parte da Administração Indireta do Estado e foi pensada como uma instituição especializada para a prestação de serviços públicos à população. Foi desenvolvida a partir de vários estudos que envolveram a Escola Nacional de Saúde Pública e que identificaram diversos entraves administrativos, legais e de gestão dos Hospitais Públicos que dificultavam sua agilidade na contratação de pessoal e na compra de insumos, medicamentos e equipamentos, que resultavam em gastos desnecessários e que não contribuíam para a melhoria da qualidade dos serviços prestados à população.
Com o desafio de manter os hospitais como instituições públicas e remodelá-los para que pudessem ser mais ágeis e efetivos, apresentar melhor qualidade e deixar de desperdiçar recurso desnecessariamente, foi proposto um modelo jurídico-institucional que é a combinação de uma Autarquia – com todas as vantagens que essa tem em termos de descentralização administrativa e autonomia e agilidade na tomada de decisões operacionais; com uma Empresa Estatal, buscando nessa a agilidade e autonomia na gestão de pessoal, orçamentária, contábil e relacionada a compras e aquisições.
Ela difere de uma autarquia (como uma Universidade Federal) porque, assim como as Empresas Estatais, está subordinada ao código civil (chamado direito privado) no que diz respeito às compras, contabilidade e gestão de pessoal. No caso das compras está subordinada à lei das licitações (8.666), mas pode editar regime próprio e especial, o que lhe confere mais agilidade. No caso do orçamento e contabilidade, goza de muito mais autonomia e agilidade no uso dos recursos que administra, o que lhe dota de grande capacidade de enfrentar situações não previstas. No caso da gestão de pessoal, o vínculo é “celetista” assim como nas empresas estatais, o que lhe permite: fazer planos de emprego, carreira e salários específicos e adequados tanto ao serviço prestado quanto às características dos profissionais necessários; ajustar a remuneração, as avaliações de desempenho e a gestão do trabalho de modo ágil de acordo com as negociações realizadas com os trabalhadores; realizar concurso público num tempo muitíssimo inferior ao necessário na administração direta, por não ter que prever o gasto no orçamento global do respectivo ente federado e nem pedir autorização à respectiva casa legislativa, ou seja, se tem recurso suficiente, pode fazer imediatamente o concurso.
Contudo, nessa combinação, a Fundação Estatal não pode exercer poder de polícia nem autoridade de Estado como pode uma Autarquia, nem pode explorar atividade econômica como faz uma Empresa Estatal. É instituição específica para a prestação de serviços sociais. No governo federal está sendo pensada para os hospitais federais, para a nova TV Pública (a TV Brasil) e para a previdência complementar dos servidores públicos. Já nos governos petistas da Bahia e de Sergipe as propostas concentram-se no setor saúde, seja na produção pública de medicamentos, na área hospitalar ou na atenção básica à saúde.
Portanto, a Fundação Estatal é Estado, não tem nada que ver com privatização e terceirização. Sua propriedade é pública, sua direção e gestão são públicas, está subordinada aos órgãos públicos de sua área de atuação, aos controles públicos externos e internos, às leis que regulamentam as instituições públicas de seu setor de atuação (leis 8080 e 8142 no caso da saúde), aos princípios da administração pública, seus recursos são públicos e seus trabalhadores são servidores públicos.
Além disso, estuda-se a possibilidade de ter isenção de renda e patrimônio e de não ser considerada para fins da lei de responsabilidade fiscal, o que é importantíssimo em áreas como a saúde que tem sua expansão pública bloqueada pela LRF por ser um setor de capital-trabalho intensivo em que 70% dos gastos em média são em pessoal.
NÃO CONSTRUIR UMA ALTERNATIVA CONSISTENTE E VIÁVEL PELA ESQUERDA É NÃO ENFRENTAR O PROJETO NEOLIBERAL NO PLANO CONCRETO
A LRF, entraves jurídico-institucionais e custos elevados e desnecessários de certos serviços públicos são fatores que bloqueiam a expansão do setor público e a universalização do direito à saúde. Por esses motivos, concretamente no cotidiano de nossas gestões democráticos-populares, muitos de nossos prefeitos, buscando ampliar a oferta de serviços públicos e gratuitos à população, ao contrário de fazerem essa expansão por dentro do Estado, são forçados muitas vezes a utilizar instituições privadas para a contratação de pessoal para os serviços públicos e a aumentar a oferta via contratação de laboratórios de diagnóstico e leitos hospitalares privados. Já a direita defende explicitamente como alternativa ao “ineficiente setor público” o velho projeto privatizante: deu entrada no parlamento gaúcho um projeto que transforma os serviços públicos de saúde em OSCIP’s, e foi aprovado no parlamento paulistano outro projeto que permite às OS’s e Ong’s administrarem serviços de saúde sem nem sequer processo seletivo público. Ou seja, além de privatizar recursos, responsabilidades e interesses, é um campo aberto ao casuísmo e ao clientelismo político eleitoral.
A esquerda tem que construir uma alternativa efetiva a essas duas situações. Acreditamos, com base em estudos, que em certos serviços/setores a Fundação Estatal pode ser um poderoso instrumento de afirmação, expansão e qualificação do público. Só universalizando o acesso e melhorando a qualidade dos serviços públicos é que teremos na população um forte vetor de defesa do SUS ante os ataques privatistas.
Hoje, não é só o grande capital e a mídia que deslegitima o SUS, muitas de nossas organizações sindicais deixam de legitimar e fortalecer o SUS ao colocar na pauta de reivindicações o pagamento de planos de saúde privados para seus integrantes, apoiando uma importante transferência de recursos públicos ao setor privado. Isso só pode ser superado se tivermos serviços de qualidade que respondam concretamente às necessidades da população usuária. Obviamente que isso só pode ser alcançado através de várias lutas e políticas sinérgicas, dentre elas, a regulamentação da emenda 29 assumida por nosso partido é um elemento central para garantir mais recurso para a saúde. Contudo, afirmamos que a Fundação Estatal é outra medida central nessa agenda.
É importante destacar também que, ao contrário do que se diz, a Fundação Estatal no caso da saúde não pode vender serviços ao setor privado (planos de saúde, por exemplo) nem pode cobrar da população: os serviços são universais e gratuitos. Também não anula ou concorre com o Controle Social do SUS, ao contrário, além de manter sua subordinação aos respectivos Conselhos de Saúde e Conselhos Gestores de Unidades de Saúde, qualifica e aprofunda esse controle. Onde hoje quem toma as decisões executivas e operacionais dos serviços de saúde são apenas diretores de unidade nomeados, com a Fundação Estatal passa a ser um Conselho Curador composto, em parte, por nomeação e, em parte, por eleição de representantes dos gestores, especialistas, trabalhadores e usuários dos serviços. Além da proposta apontar para um quadro de gestão executiva profissionalizado.
Ou seja, há aí uma ampliação da esfera pública no seio da atividade executiva do Estado. Os interesses e atores que entram em cena com mais contundência nessa proposta são os usuários e trabalhadores e não os grupos privados interessados em realizar lucros a partir de recursos públicos como na proposta neoliberal. Esses dois elementos estão presentes e desenvolvidos de forma inequívoca tanto no Substitutivo apresentado por Pepe Vargas, quanto na proposta construída pelo Governo Wagner para a Bahia.
Têm se falado também que as Fundações Estatais vão precarizar as relações de trabalho. Ora, se CLT é trabalho precário temos que rever toda a propaganda do Ministério do Trabalho comemorando os mais de 6 milhões de empregos formais gerados no governo Lula. Na Bahia temos como herança da era ACM, quase metade da rede hospitalar estadual terceirizada, 2/3 da mão de obra dessa rede precarizada e 70% da mão de obra na estratégia de saúde da família na mesma situação. As Fundações Estatais na Bahia representam: a recuperação para o Estado do que foi privatizado; a expansão e universalização do acesso das redes básica de saúde e hospitalar; e a universalização da garantia de direitos trabalhistas e previdenciários a todos esses servidores públicos. Efetivamente é sair da defensiva e assumir com contundência e competência uma ofensiva contra-bresseriana e anti-neoliberal.
Há ainda o grande ponto da divergência: a questão da estabilidade. Ora, muitas vezes se confunde a CLT no Estado com a CLT numa empresa privada como é o caso de uma padaria ou um salão. No setor público, por incidir os princípios da administração pública (publicidade, moralidade, igualdade, impessoalidade etc.), para contratar há que se fazer concurso público e só pode haver demissão mediante processo administrativo com direito a ampla defesa onde são considerados critérios objetivos e avaliação de desempenho clara e pactuada desde a entrada do servidor no quadro.Na Bahia, a partir de debates com o movimento sindical foi proposto um modelo de comitês tripartites (gestores, trabalhadores e usuários) de arbitragem dos processos administrativos nos casos de conflito entre o empregador público e o servidor. Trata-se de uma estabilidade relativa que protege o trabalhador do mal gestor, mas sem deixar de proteger o usuário do mal trabalhador, e isso é fundamental para a legitimidade do serviço e do servidor público.
É importante ficar claro que não estamos aqui aceitando o argumento neoliberal de que a estabilidade é o mal do serviço público. Entendemos que o bom trabalho do servidor público passa pela valorização e investimento nesse servidor, por processos consistentes de educação permanente, por democratização institucional, por processos de trabalho mais criativos e com mais autonomia de planejamento e organização em equipes, por salários dignos etc. elementos que são facilitados pela Fundação Estatal graças a sua maior autonomia e agilidade na gestão orçamentária e de pessoal. Contudo, não podemos tirar o direito da massa de trabalhadores usuários dos serviços de saúde de poder, em último caso, demitir o trabalhador servidor público que não cumpre a função para a qual fez o concurso: servir ao público.
Por fim, gostaríamos de fazer uma última observação. Hoje podem ser criadas Fundações Estatais por iniciativas dos executivos das três esferas. Não há um marco regulatório que discipline em que áreas e como devem ser essas fundações. Lutar contra a regulamentação não é só abrir mão de aproveitar esse momento que estamos com maiores condições de promover uma regulamentação coerente com nossos princípios, nossas lutas, nosso projeto estratégico de Estado e de sociedade, é também cometer um erro tático deixando um “cheque em branco” para cada atual e futura prefeitura, governadoria e presidência desse país instituir Fundações Estatais como queiram. Ver como esse debate está sendo conduzido na Bahia de forma participativa e democrática (daí a razão de ter sido aprovado tanto no Conselho Estadual de Saúde quanto na maior Conferência de Saúde da história da Bahia) e debater o substitutivo apresentado por Pepe Vargas pode ser a inflexão necessária para que as forças democráticos-populares se posicionem por um debate aberto, franco e propositivo que abra caminho para uma ofensiva anti-neoliberal concreta, superando a ação exclusivamente discursiva e defensiva.
Emerson Emehry é Sanitarista, Livre Docente em Saúde Coletiva, professor aposentado da Unicamp, Professor convidado da UFRJ. Heider Pinto é Sanitarista, Diretor de Atenção Básica da Secretaria da Saúde do Estado da Bahia. Tulio Franco é Sanitarista, Doutor em Saúde Coletiva, professor da UFF.