O ano de 2019 marca os 55 anos do início da ditadura militar que, durante duas décadas, imprimiu um regime de exceção pelo uso de extrema violência e de abusos de poder no Brasil. Em 31 de março – na verdade 1º de abril – de 1964, os militares, com o apoio de parte da elite econômica civil, tomaram o poder por meio de um golpe de Estado. Golpe este feito pelo uso da força, de forma inconstitucional e antidemocrática, retirando do poder um governo democraticamente eleito. Sobre este fato, não cabe qualquer mediação política ou revisionismo.
A ditadura militar é um fato histórico e político do qual muitas pessoas são testemunhas vivas, dentre as quais me incluo. Vivemos a censura, a perseguição, o fechamento das instituições democráticas, o exílio e a clandestinidade.
Uma geração que viu familiares e amigos desaparecem. Que viveu sob o medo da tortura e dos porões, ameaçada por atos que eram considerados “subversivos” – conceito usado de acordo com a interpretação das forças repressoras militares. Foram mais de 434 pessoas assassinadas ou desaparecidas neste período. Entre 30 e 50 mil pessoas presas e torturadas, dentre essas, 8 mil indígenas, segundo estimativas da Comissão Nacional da Verdade.
Cabe destacar que estes crimes, que vitimaram milhares de pessoas, não incorreram em nenhuma punição. Ninguém foi responsabilizado pessoalmente ou institucionalmente por tais barbaridades graças à Lei da Anistia. Essa foi a condição das forças repressoras militares para a transição democrática.
Somente em 2012 o Estado brasileiro, sob a Presidência de Dilma Rousseff – que foi presa e torturada nos porões da ditadura – criou a Comissão Nacional da Verdade com vistas a efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional. O trabalho desta comissão permitiu a rediscussão e o conhecimento a respeito dos crimes cometidos durante a ditadura militar com a realização de julgamentos, audiências públicas e concessão de reparações históricas às vítimas de tortura e prisões.
Após 34 anos de regime democrático, o Brasil volta a sentir o espectro do fascismo e do autoritarismo emergir do submundo da história pela voz do atual Presidente da República. Jair Bolsonaro é um contumaz defensor da ditadura militar, da tortura e da violência praticada pelas forças repressoras militares. Quando deputado federal, manifestou que “o erro da ditadura foi torturar e não matar, que não houve golpe militar em 1964”. Quando votou a favor do impeachment da presidenta Dilma, Bolsonaro fez uma criminosa homenagem ao Coronel Brilhante Ustra – indicado como responsável pela morte ou desaparecimento de mais de 45 pessoas.
A trajetória política de Bolsonaro evidencia o seu apoio incondicional a todas as atrocidades criminosas cometidas durante a ditadura militar. Sua campanha presidencial foi pautada por apologia ao ódio e incitação a todas as formas de violência. As declarações de Bolsonaro significaram uma espécie de autorização para que vozes fascistas emergissem, sem o menor constrangimento, para ecoar posições violentas e autoritárias, baseadas em factoides ou notícias falsas, as famosas fake news.
Bolsonaro está hoje na condição de Presidente da República, cargo que exige, entre outras prerrogativas, decoro e responsabilidade em acordo com a Constituição Federal de 1988. É de extrema gravidade o comunicado oficial em nome do Presidente República incitando as forças militares a prestarem as comemorações devidas de uma data que marca um golpe de Estado que deu início a um regime de gravíssimas violações dos direitos. Sem dúvida, ele atenta contra as prerrogativas do cargo ao tomar essa iniciativa. Bolsonaro incorre em crime de responsabilidade, de acordo com o Artigo 85 da Constituição que, entre outros, determina que os atos do Presidente da República não podem atentar contra: o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação; o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais; a segurança interna do País.
Qualquer comemoração em torno do Golpe Militar de 1964 significa o apoio a um regime que cometeu graves crimes contra a humanidade, conforme entendimento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da Comissão Nacional da Verdade e da Procuradoria-Geral da República. Não podemos ser tolerantes com mais esse atentado contra os princípios democráticos, que, desde o golpe que afastou Dilma Rousseff e a prisão política e ilegal do presidente Lula, têm servido aos interesses dos ideólogos do mercado para retomar o poder.
O dia 31 de março de 1964 é uma data vergonhosa para o Brasil, assim como os 20 anos de ditadura militar. Repudio completamente a incitação de Bolsonaro, assim como qualquer iniciativa no sentido de comemoração de um regime criminoso, pois isso significa o desprezo pela vida de milhares que tombaram na resistência.
Ditadura não se comemora. É preciso lembrar deste período para resistir. Para que não se esqueça. Para que nunca mais aconteça. A democracia pertence ao povo brasileiro e é preciso estarmos, sempre, atentos e fortes para lutar contra o fascismo e o Estado de Exceção.
Arlete Sampaio é deputada distrital pelo PT.
Originalmente publicado aqui.