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Golpe no Paraguai: Entrevista com o ex-ministro da Cultura Tito Escobar

317181Crítico de arte e militante dos direitos humanos, Ticio Escobar foi – até 22 de junho passado – ministro da Cultura do governo de Fernando Lugo. Nesta entrevista ao jornal argentino Página 12, o ex-ministro defende que o maior problema de Lugo foi que ele não conseguiu organizar uma base política de apoio, grande o suficiente para dar estabilidade a seu governo. Para ele, o governo possuia “uma enorme adesão cidadã que não se traduziu em quadros políticos”.

Escobar fala ainda sobre as causas que levaram a queda do presidente constitucional e sobre os desafios que a esquerda paraguaia terá daqui para frente.

Do site do Página 12

Página 12 – Alguns analistas, como Milda Rivarola, assinalam que a crise política no Paraguai vinha de antes do massacre de Curuguaty. Qual sua opinião?

Tício Escobar – Sim, evidentemente vinha de antes. Mais do que uma crise, eu falaria de um processo a respeito do projeto do Presidente Lugo, que tinha e tem uma enorme adesão cidadã, porém que não se traduziu em quadros políticos e também não se traduz nos poderes do Estado. Sua base de sustentação era bastante fraca no nível das instituições, sobretudo tendo em conta que a Constituição e 1992 é excessivamente parlamentarista. Naquele momento, se redigiu a carta dessa maneira por medo de que a figura de Stroessner pudesse se repetir e o texto ficou orientado de forma exageradamente para o lado do Parlamento – a Constituição anterior era presidencialista. Foram outorgados mega poderes ao Parlamento e isso favoreceu o aparecimento de uma ditadura parlamentar. Existe uma falta estrutural de hegemonia no Paraguai, hegemonia no sentido gramscisano. Paradoxalmente Stroessner teve essa hegemonia. Formando um consenso através da repressão e da corrupção, mas que conseguiu articular uma série de interesses. Uma vez que caiu o ditador, começou a se pulverizar o Partido Colorado, porém ele se manteve no poder por um tempo. O que Lugo fez foi romper com essa continuidade dos colorados, por um lado, e, por outro, havia um cenário propício para uma nova distribuição do poder que não aconteceu: os liberais foram incapazes de ocupar esse lugar.   Há uma disseminação geral do campo político. Esse quadro facilitava um poder líquido que se instaurou no Congresso. As forças mais reacionárias e conservadoras seguiram encrustradas no Parlamento e no Poder Judicial.

 

– Quando Lugo foi destituído, chamou a atenção que apenas uma deputada e dois senadores votaram contra o juício político. Por que não houve mais apoio dos legisladores a Lugo?

– Desde o primeiro momento em que a oposição viu que Lugo não teria força parlamentar, se especulou a reaização do juício político. O último foi a 25ª tentativa de destituir o presidente constitucional. O partido liberal estava aliado à Frente Guasú e era o grande apoio de Lugo. Porém, os liberais decidiram mudar de lado e se aliaram aos colorados na conspiração. Daqui a nove meses, quando acontecem as eleições, era impensável que se pudesse romper com a ordem institucional em um país que cresce, que está socialmente controlado, com uma burguesia que tem pela frente um panorama econômico alentador. A dívida de Lugo era com os setores sociais que o apoiaram, não com a alta burguesia e os setores dominantes. Foi uma jogada eleitoral, uma virada do tabuleiro. O Partido Colorado está dividido em dois: Uma linha mais tradicional de manejo do poder, a de Lílian Samaniego (presidente do partido) e outra que representa o empresário multimilionário Horacio Cartes, que é acusado de tráfico de drogas, contrabando e negócios sujos. Era conveniente para Cartes dar aos liberais o seu sonho dourado, que era a Presidência, apostando em sua própria vitória no ano seguinte. Esses meses vão ser desgastantes para Federico Franco, com a comunidade internacional e a cidadania contra o governo, a crise e o trauma que o episódio provocou. A situação dele é complicadíssima. A disputa eleitoral já está começando. A lua de mel entre liberais e colorados foi tão curta, que Lílian Samaniego se levantou durante o juramento de Franco.

 

– Se Franco terá apenas nove meses para governar, por que aceitou esse desgaste e não esperou as eleições? 

– Como em toda história, existe um elemento pessoal que passa pelo desejo e pela ambição, assim como por uma estrutura social que a sustente. No caso dele, ser Presidente era uma obsessão. Além disso, houve uma oportunidade histórica de romper essa paralisia que o impedia entrar na casa de governo. O Partido Liberal tem buscado recompor forças: antes do golpe estava dividido em quatro e já começam a falar de um candidato de consenso. Para a direção de um governo de um partido tradicional, entrar no governo significa contar com recursos fortes e aparato do Estado para destinar às eleições. A estratégia era tirar do meio a terceira opção política e voltar a um bipartidarismo duro. Existe um pacto com os colorados de se apoiarem no parlamento. Porém, os liberais se expõem a um desgaste enorme.

 

– Quais foram os projetos que os liberais, então aliados a Lugo, travaram no Congresso e quais estão impulsionando hoje?

– Durante quatro anos sabotaram duramente o Imposto de Renda Pessoal, porém, após o golpe lhe deram sanção parcial. As empresas, como a Rio Tinto, exploradoras do meio ambiente, que foram freadas por Lugo, já começam a entrar; estão sendo pedidas instalações de bases militares norte-americanas e inglesas no Chaco; todos os programas sociais, fundamentalmente de saúde, estão sendo convertidos em questões clientelistas, tirando-lhes o componente de participação e de base. São medidas rápidas que estão sendo tomadas. A ideia é tirar todos os movimentos progressistas que conseguem se sustentar sem os liberais. Por outro lado, há uma desfiliação massiva dos partidos tradicionais, porque a decisão de destituir Lugo provocou a indignação da cidadania: foi uma decisão tomada da noite pro dia, sem a devida defesa e com absoluta deficiência formal. O nível acusatório foi ridículo, já que se baseou no massacre de Curuguaty, que foi uma medida judicial e não do Executivo. Um grupo de fiscais queria averiguar a tomada de algumas terras que eram indevidamente habitadas por camponeses. Não era uma questão confrontativa: a primeira fila da polícia entrou sem armas e foi atacada por matadores profissionais. A segunda fila de policiais uniformizados então entrou e terminou o massacre, com 17 mortos. Existe a possibilidade de que tenha sido uma armação, com a contratação de atiradores profissionais. Porém, a investigação que Lugo começou foi cancelada pelo novo governo.

 

– Por que não houve maiores mobilizações nas ruas em apoio ao Presidente destituído?

– Houve muita mobilização em todo o país. Se deu um processo interessante de resistência na rádio e na TV pública, onde o novo governo não pode entrar. As pessoas tomaram o espaço durante 12 dias seguidos, com o microfone aberto, até que decidiram convocar manifestações de modo mais específico. Não se podia manter a tensão, estava começando a fazer frio, os camponeses mobilizados e indígenas vinham de outras partes do país e não podiam ficar nos protestos de forma constante. O que acontece é que essas notícias não apareceram em nenhum meio de comunicação.

 

– Por que foi tão difícil para Lugo instalar meios alternativos?

– Lugo tinha medo de criar uma rádio ou televisão propagandística e não encontrou o ponto intermediário de ser crítico, porém não fora do governo. Foi um déficit do governo, não teve tempo e nem a possibilidade de contruir um sistema de comunicação alternativo e dar respostas à enorme demanda cidadã, que se vê refletida hoje nas redes sociais. Essas pessoas fazem manifestações relâmpago aqui e ali. É um movimento que expressa um descontentamento e indignação que não é necessariamente um apoio a Lugo, porém mostra um descontentamento com a quebra democrática do Paraguai.

 

– Como se explica que o golpe institucional deu certo dessa vez?

– Teve que acontecer uma série de fatores para que eles levassem adiante esse golpe parlamentar. A desculpa foi a matança em Curuguaty, porém o pano de fundo é a indefinição do panorama eleitoral. Os colorados e os liberais queriam ter acesso a mais recursos para impulsionar suas candidaturas. Era claro que Lugo era um obstáculo, porque ele não se conduzia pela via da corrupção. Os colorados entregaram a etapa mais suja aos liberais, que assumiram o papel de traidores, de ter passado para o outro lado.

 

– Lugo não poderia tinha o poder de dissolver o Parlamento?

– Não, precisamente pela Constituição de 92. O que poderia fazer era levar os tanques de guerra para as ruas para responder ao golpe, porém ele quis evitar o derramamento de sangue.

 

– Houve mudanças no Tribunal Superior Eleitoral?

– Por agora não houve nem mudanças de ministros nem do estatuto. Existe um pedido cidadão de instalação de uma constituinte para fazer uma reforma do judiciário. Isso teria que ser feito depois que assumir o novo governo, que será eleito em abril de 2013. Os juízes não podem ser removidos, pois seus cargos são vitalícios.

 

– Os meios de comunicação conservadores demonizam a figura de Chávez e usam isso para atacar Lugo. Por que comparam Lugo a Chávez?

– Mal assumiu o poder, Lugo se viu vinculado a Chávez, a Correa, ao “eixo do mal”. No Paraguai se deu uma gestão de social-democracia liviana. Porém, para a ultradireita que comanda a imprensa, Lugo ia por um caminho parecido como de Chávez. Agora as forças se polarizaram no Paraguai e se volta a escutar termos como “bolche” ou “vermeho”. Até o administrador de Ciudad del Este, do Partido Colorado, demoliu um busto de Bolívar! A paranóia é total! Lugo tinha boas relações com Evo, Chávez e com Correa. Porém, para os meios de comunicação por trás de Lugo se escondia Chávez. O golpe institucional também foi um corte simbólico: para a direita defensora da propriedade privada e do progresso do campo, era importante derrubar o processo bolivariano.

– A destituição converte Lugo em um mártir?

– Eu creio que sim. Ele posicionou bem sua figura internacionalmente. Era um político que se interessou pelos pobres e vivia de forma austera. Quando se mudou para o palácio presidencial foi com uma malinha e quatro bíblias. Sua figura promove em todo mundo uma reação de solidariedade e apoio. Lugo recuperou popularidade, ele aparece nas ruas e as pessoas o saúdam, o abraçam. Em oposição, Franco não se atreve a sair as ruas por medo de ser hostilizado.

– Se Lugo quisesse, poderia tentar se apresentar para concorrer à presidência com o argumento de que não terminou seu mandato?

– Teoricamente sim. A Constituição proíbe que o último Presidente posse ser reeleito. E Lugo não é mais o último. Porém, em minha opinião, seria ruim apresentar uma candidatura agora, sem a construção de uma base de poder político real. Poderia ser candidato em 2018, teria 66 anos. Haveria um tempo de construção de uma força de esquerda e uma contra-hegemonia por onde canalizar este enorme impulso cidadão, um campesinato que tem demandas claríssimas e que se desagrega por não possuir os canais adequados. É preciso construir esfera pública e contra-hegemonia. Foi um milagre que Lugo tenha conseguido se sustentar durante quatro anos sem apoio parlamentar. Seu glamour é esse espírito conciliador, clerical, que é remédio e veneno ao mesmo tempo. Ele escuta a todos, às vezes se exaspera em seu jeito confessional. Muitas pessoas se chocaram com essa espécie de submissão que ele teve no dia de sua destituição. As pessoas o elegeram com essa característica e ele foi fiel a seu papel.

 

– Lugo promoveu a desconcentração da propriedade das terras?

– A questão agrária foi o outro déficit do seu governo. Cerca de 80% das terras está nas mão de um punhado de pessoas. Mudar isso supõe uma rearticulação muito forte de setores diversos e a organização de um sistema cadastral. O governo não deu os passos paralelos prévios, como a quantificação e o mapa das terras, ao menos os territórios habitados irregularmente. Lugo trabalhou a parte política, mas faltou trabalhar a parte técnica. A maior dívida de seu governo foi com os setores sociais. O crescimento econômico não veio acompanhado de uma redistribuição de substancial dos recursos, ainda que a pobreza e a indigência extrema tenham sido reduzidas.

 

– Qual a força da temática indígena no Paraguai?

– Está muito vinculada com o tema da terra. Existe uma assimetria estrutural desde os tempos da colonização. Os indígenas que vivem em comunidades tribais e religiosas são muito poucos, cerca de 1% da população. Porém, cerca de 85% da população é falante do Guarani.  Quando foram vendidas as terras e as entregaram, depois das guerras, os índios iam incluídos. Eles já não podem recuperar seus territórios ancestrais inteiros. Porém, ao mesmo tempo não podem renunciar a ser o que foram, por que para eles a sustentabilidade cultural passa por seus territórios originais. O governo de Lugo realizou plans de assistência imediata de saúde, água e moradia, e iniciou um processo para que os próprios indígenas sejam consultados nos assuntos que lhe dizem respeito.

 

– A postura que o Mercosul assumiu, sancionando o Paraguai, colocou o tema no campo internacional. Que efeitos o senhor acha que isso terá a curto e médio prazo para o país? 

– Creio que é um momento favorável porque aponta para uma filosofia regional de defesa da democracia. Algum custo vai ter para a população também, porém não haverá medidas econômicas e todos os compromissos comerciais estão sendo cumpridos. O que acontece é que o Paraguai perdeu credibilidade como um lugar para se fazer investimentos. O turismo também foi bem abalado: ninguém quer ir a um lugar traumatizado. São conseqüências do golpe mesmo. É o que tem que fazer a região, por que é um precedente muito importante. É um mal necessário. Eu creio que o custo seria muito pior se todos dissessem que “aqui não aconteceu nada”, seria desmobilizante para o povo paraguaio. Daqui a um tempo, os golpistas irão pensar duas vezes.

* Tradução: Rodrigo Mathias. 

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