Em 1973, o crítico literário Roberto Schwarz publicou um ensaio intitulado Ideias Fora do Lugar, que mantém toda pertinência à compreensão da incógnita Brasil. O texto apontava a contradição entre o discurso e a práxis dos brasileiros(as). Mostrava o torcicolo cultural no plano político econômico social e inclusive artístico ao espelharmo-nos no paradigma da Europa, no século 19. Éramos então, na fala, liberais no sentido político da defesa dos direitos civis, das garantias individuais e do trabalho livre. Na prática, escravocratas. É como se tivéssemos duas caras, uma para inglês ver e, outra, para que os subalternos saibam quem manda. “No campo das convicções a incompatibilidade é clara”.
Os ideais do liberalismo que embalaram nossos anseios de Independência (1822) não lograram alterar as estruturas do escravismo do sistema produtivo, que prosseguiu baseado no latifúndio. No período que separou o grito de “Independência ou morte” da abolição passaram-se 66 anos (nos Estados Unidos o intervalo foi de 89 anos). No ínterim, as pregações liberais estiveram em patamar abaixo das proezas decantadas pelo regime escravista, contraditoriamente. A vergonha externa frente aos países europeus, que haviam se afastado das desumanas estruturas de divisão do trabalho existentes nas colônias, era apresentada internamente como uma vantagem para a economia local.
Das três classes que, à época, ancoravam o sistema (a do latifundiário, a do escravo e a do homem livre) era na consciência do último que se concentravam as angústias por conta da incoerência. Faz tempo, como se nota, que para conhecer o Brasil é preciso vasculhar o hiato que há entre o que supomos de nós próprios, nos salões de festa, e o que somos in concreto na “realidade efetiva das coisas”, para evocar a expressão do pensador inscrito na história pelo profundo realismo filosófico. Coerência não é nosso forte.
Na seara jurídica, o exemplo contemporâneo notável acha-se na operação Lava Jato que, discursivamente, reivindicava a igualdade dos indivíduos perante a Constituição e a normatividade cidadã no combate à corrupção. Na vida real corrompia os processos judiciais e atropelava os dispositivos constitucionais na perseguição de objetivos para a consecução de um projeto de poder. A juíza federal Fabiana Alves Rodrigues (Lava Jato: Aprendizado Institucional e Ação Estratégica na Justiça, 2020) mostrou “evidências da atuação do Judiciário na gestão seletiva do tempo de tramitação dos casos e na escolha dos que foram priorizados, além das estratégias associadas ao uso conjugado da prisão preventiva com a colaboração premiada”. Provou que o ex-juíz Sérgio Moro, o procurador Dalton Dallagnoll et caterva cometeram graves delitos contra a legalidade. A cara de pau morou na republiqueta de Curitiba, do alto funcionalismo público.
As ilustrações se estendem por muitas áreas. Nos projetos urbanísticos das metrópoles a retórica assenta-se nos direitos universais da utilização dos espaços, mas o que vigora é a distribuição desigual do perímetro urbano por uma clivagem classista. A necessidade de prever uma função social para os territórios da cidade formal (com desconto para a informal), a cargo do Executivo não sai do papel. Prevalecem os favorecimentos privados, de caráter pessoal e clientelista. Aqui também as ideias estão fora de lugar, não correspondem aos fatos. Para encobrir o trampo, constrói-se uma ideologia de justificação para interesses que, a rigor, são específicos. “Se dá aparência de ‘natural’ e ‘geral’ a um ponto de vista parcial, que nas cidades está vinculado aos expedientes de valorização imobiliária”. (Ermínia Maricato, A Cidade do Pensamento Único, 2000).
O tecido social está infectado pelo vírus das relações atávicas, senhor vs escravo. Nos restaurantes chama a atenção o modo autoritário como os white collars dirigem-se aos garçons, com rara civilidade. Nos supermercados, ressalta a grosseria com que se aproximam do caixa sem, via de regra, dignar-se olhar e cumprimentar as invisíveis atendentes. Reproduzem a ancestral empáfia dos proprietários de engenho de cana-de-açúcar e dos pecuaristas nas charqueadas. Em ambos os casos, as classes médias ora permanecem alheias à etiqueta republicana. “Faça o que digo, não o que faço” ecoa a desculpa que se repete geração após geração. Como na Revolução dos Bichos, de George Orwell, editado no longínquo ano de 1945, “todos os porcos são iguais, mas uns são mais iguais que os outros”. Estes são os grandes fura-filas da democracia.
Habitamos, ora as ideias fora do lugar, ora o lugar fora das ideias. Nunca alcançamos fazer a conjunção. Veja-se as mobilizações do bolsonarismo, com manifestantes travestidos com camisetas verde-amarelo da corrupta Confederação Brasileira de Futebol (CBF). Arrotam um patriotismo sem a mínima sustentação fática, ao colocarem a mão no coração enquanto ouvem o hino pátrio. O governo que sustentam, de patriota, não tem nada. O presidente faz solene continência à bandeira estadunidense, jura um ridículo “I love you” ao ex-mandatário dos EUA, liquida o patrimônio nacional (Petrobrás, Eletrobrás, Casa da Moeda, Amazônia) e promove o genocídio contra o povo por intencional incúria na pandemia.
A sola nação/república que o chefe dos bolsominions defende são os negócios escusos da famiglia. “Que o Exército babe às ordens de Bolsonaro entende-se: ele o comprou a preços de Camelódromo”, realçou Ruy Castro (Folha de São Paulo, 23/02/2021). Ao que, comu a substituição ocorrida no Ministério da Saúde, acrescentou Fernando Brito: “O Exército Brasileiro está mais preocupado com a preservação de um general patusco e incapaz, Eduardo Pazuello, e com terceirizar para um civil colaboracionista o ônus do massacre que a população civil do Brasil está submetida.. Nem me ocupo da figura minúscula de Marcelo Queiroga, tão miúda que se presta no dia mais terrível para dizer platitudes como ‘use máscara’, ‘use álcool em gel’ , ‘precisamos salvar a economia’…” Indignado, concluiu: “Você precisa é salvar vidas, seu oportunista sem caráter” (Tijolaço, 16/03/2021).
Sempre o dilacerante divórcio entre a palavra e a ação, no comportamento de significativos setores da sociedade. A contradição está encravada no desenvolvimento desta colônia emancipada, mesmo em pleno século 21. A aura intelectual emprestada pelos clássicos do liberalismo, conforme destaca Schwarz, não impediu de “as elites falarem a língua mais adiantada do tempo, sem prejuízo de em casa se beneficiarem das vantagens do trabalho (neo)escravo”, graças à mão de obra barata das empregadas domésticas. A hipocrisia converteu-se no disfarce da burguesia nativa para ocultar a heterofagia.
A contribuição dada na atualidade pelo neoliberalismo, o endeusamento basbaque do mercado, está em legitimar ideologicamente a contraditoriedade, ao transformar a neoescravidão no horizonte inevitável da nação. A inesquecível campanha de Lula à presidência teve por slogan “Sem medo de ser feliz”, que representou um convite solidário à superação do persistente embate entre o imaginário e a realidade, na direção da vida, da justiça e da emancipação sociais. Com o tropel bolsonarista irrompeu em cena o chamamento fascista “Sem medo de ser perverso”, que elogia a morte, a desigualdade e o ódio à diversidade. Esta é a luta que espreita as eleições de 2022, desde já. É hora de colocarmos as ideias progressistas no lugar. E a extrema-direita, idem.
- Luiz Marques é professor de Ciência Política, UFRGS
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