Democracia Socialista

Inaugurando um novo período histórico

Ontem o movimento da Economia Solidária (ES) do Rio Grande do Sul obteve uma importante vitória que tem um significado também histórico que vai além do objeto da matéria aprovada. Digo isso em função de que com a aprovação do projeto que institui a Política Estadual de apoio a ES é a primeira vez na história do parlamento gaúcho que uma Lei de iniciativa Popular é aprovada.

Paulo Marques *

Portanto, não é apenas a aprovação de uma importante lei que reconhece a especificidade dos Empreendimentos Econômicos Solidários e cria um conjunto de ações de fomento do poder público é também a aprovação de uma proposição elaborada e apresentada pelo próprio movimento social que a reivindica, algo não muito comum em nossa democracia representativa cuja prerrogativa de “poder”, ou seja, do processo decisório é restrita aos “representantes do povo” que nem sempre legislam em prol de quem os elegeu.

Uma outra questão importante sobre a aprovação desta Lei é o histórico que envolve esse processo, que são os 7 anos de tramitação na Assembléia, sendo 2 anos como projeto do Deputado Elvino Bohn Gass e mais 4 como Projeto de Iniciativa Popular.

Mas então porquê no Estado do Rio Grande do Sul, que é considerado pelo próprio movimento da ES como o mais avançado demorou 7 anos para aprovar uma lei estadual? Para compreender isso é necessário uma contextualização do processo significado dese processo no âmbito da disputa de projetos políticos no Estado.

Foi na gestão de Olívio Dutra(PT) no governo do Rio Grande do Sul( 1999-2002) que é criada uma primeira política pública de abrangência estadual para apoio e fomento aos empreendimentos da chamada Economia Solidária. Essa economia que emergia no meio rural e urbano como resistência dos trabalhadores(as) a ampliação do desemprego e da exclusão social(efeitos diretos das políticas neoliberais dos anos 90) ganhava força política com o envolvimento de movimentos sociais como o MST e o movimento sindical cutista. Surgia assim o “novo cooperativismo” de base popular e comunitária, tanto nos assentamentos como nas empresas recuperadas. Guardadas suas especificidades a identidade comum destas experiências era o resgate dos princípios e valores do trabalho cooperado baseado na autogestão e democracia participativa, práticas perdidas no chamado “cooperativismo tradicional” subsumido na lógica capitalista, representado pelas grandes cooperativas agrícolas que hegemonizavam este campo no Estado.

A crítica ao modelo capitalista do cooperativismo tradicional surgia assim da prática da economia dos setores populares e avançava para os movimentos sociais, entidades da sociedade civil, universidades, sindicatos, confluindo para a construção de um novo movimento social cuja consigna “uma outra economia é possível” o vinculava diretamente ao movimento altermundialista que emergia no inicio do novo século(1). Não foi atoa que o governo da Frente Popular foi um dos pilares de construção do Fórum Social Mundial. As iniciativas inovadoras no campo da democracia paricipativa e do deenvolvimento econômico sob bases populares representava claramente as possibilidades de uma nova forma de fazer política que rompia com a lógica neoliberal dominante.

Para Gonçalo Guimarães ao referir-se a inédita iniciativa do governo gaúcho assinalava que “o que antes era pauta da universidades e de sindicatos passou a ser no Rio Grande do Sul programa de governo no campo das políticas públicas tendo a frente o governador Olívio Dutra”(2).

A política desenvolvida pelo governo gaúcho, portanto, não só reconhecia essas iniciativas de economia popular, garantindo-lhes acesso a financiamentos e apoio do Estado com assistencia técnica, acesso ao crédito, comercializaçao, formação, mas sobretudo, incluía essas iniciativas dentro de um projeto alternativo de desenvolvimento econômico. Ao invés do incentivo e financiamento público de grandes corporações internacionais, via guerra fiscal, o governo propôs o projeto do apoio aos Sistemas Locais de Produção, fomentando as iniciativas econômicas capazes de gerar desenvolvimento de diferentes setores econômicos articulado com a geração de trabalho e renda através do fortalecimento do tecido produtivo regional no qual os empreendimentos solidários cumpriam um importante papel de inclusão de centenas de iniciativas econômicas até então marginalizadas. O programa estadual de apoio a Economia Solidária do governo Olívio buscou também romper com a visão recorrente da Economia Solidaria como “economia dos pobres” que por isso deveria ser objeto apenas de políticas de assistência social . Foi com esse objetivo que o Departamento de Economia Solidária estava dentro da Secretaria de Desenvolvimento Econômico e Assuntos Internacionais. Conforme Leboutte(3):

“A decisão, bastante significativa, deixava claro que a Frente Popular não encarava como uma proposta de assistência social, apesar de tratar com enorme ênfase da inclusão social de desempregados, mas como uma proposta concreta de promoção do desenvolvimento econômico e social”. (Leboutte, 2003:17)

Ou seja, foi uma decisão de caráter nitidamente político. Assim como é político o fato do Rio Grande do Sul ser o único Estado que ao invés da denominação corrente de Economia Solidária utilizar o nome Economia “Popular” Solidária. Essa identificação das práticas econômicas autogestionárias como ação do campo popular sempre esteve muito presente no movimento e o programa foi um reflexo dessa realidade. Em relação a uso do conceito “popular” Leboutte destaca em seu livro que:

“[…] o popular, para definir um conteúdo de classe, não porque é de “pobre”, de miserável, de “coitadinho”, de “excluído pela sociedade capitalista. Popular porque é do povo, é das pessoas desprovidas dos meios de produção, é dos trabalhadores e trabalhadoras que compõe uma classe social bem delimitada pelo sistema capitalista. Quaisquer elaborações que não levem em conta a sociedade de classes em que vivemos não podem jamais reivindicar-se transformadora”. (Leboutte, 2003:32)

O programa gaúcho foi criado através de Decreto(4) . O fato é que a Frente Popular contava com uma bancada minoritária na Assembléia e permaneceu assim nos quatro anos de mandato, ao mesmo tempo o governo enfrentava uma maioria oposicionista das mais sectárias. Dificilmente a oposição aprovava projetos de Lei do executivo, ainda mais aqueles que beneficiavam os trabalhadores ou movimentos do campo popular.

Com a derrota da Frente Popular nas eleições de 2002 e a vitória de Germano Rigotto do PMDB, o decreto que criou o Programa foi revogado, o departamento de Economia Solidária da SEDAI foi extinto e nenhum recurso foi direcionado para qualquer ação em prol da Economia Solidária.

A partir deste desmonte da política existente no Estado o deputado Elvino Bohn Gass(PT) tomou a iniciativa de protocolar o projeto de Lei 399, baseado no Decreto do governo Olívio. O projeto ficou dois anos sem nem mesmo entrar na pauta do plenário para aprovação. No ano de 2005 o deputado Elvino, na condição de Presidente da Comissão Permanente de Agricultura e Cooperativismo, promove um grande Seminário sobre Economia Solidária que contou com as presenças, entre outros do professor Paul Singer, Secretário da SENAES, Gonçalo Guimarães da Coope/UFRJ, Angela Schwengber da rede de Gestores, diversos empreendimentos, lideranças, vereadores, pesquisadores, trabalhadores e trabalhadoras da ES, representantes dos fóruns regionais e locias de ES. A Assembléia ficou completamente lotada em uma atividade que durou todo o dia e encerrou a noite com um painel do professor Singer.

A partir dessa mobilização iniciou-se o processo de convencimento dos demais deputados para a necessidade de aprovação de uma lei que reconhecesse a especificidade da ES e garantisse por parte do poder público o fomento as centenas de empreendimentos em todo o Estado. Foram recolhidas assinaturas de apoio ao projeto que finalmente foi a votação no segundo semestre daquele ano. Antes da sessão que votaria o projeto representantes do movimento da ES tendo a frente a Irmã Lourde Dill, coordenadora do Projeto Esperança/Cooesperança que é um dos símbolos da ES no Estado, estiveram em todos os gabinetes dos parlamentares para entregar uma carta que Dom Ivo Losheider havia feito especialmente para solicitar o apoio ao projeto. A mobilização teve resultado, o projeto foi aprovado por ampla maioria com apenas um voto contrário. Mas essa vitória sofreu logo o primeiro golpe com veto total do então governador Rigotto.

Malgrado as justificativas de que “já existiam leis do cooperativismo”, todos sabiam que o governo do PMDB buscava derrotar qualquer política que tivesse alguma identidade com a esquerda e com os movimentos sociais. O veto foi mantido pela maioria governista da Assembléia, formada por deputados do PMDB, DEM, PTB, PSDB.

Sem perder tempo, no ano seguinte o deputado Elvino Bohn Gass propõe como resolução da 1 Conferência Estadual de Economia Solidária, realizada em maio de 2006, que o projeto de Lei fosse reapresentado novamente na Assembléia, mas agora não mais como iniciativa sua, mas do movimento. Confesso que não lembro de algum deputado que tenha realizado tal gesto, abrindo mão de ter seu nome relcionado a um projeto. A resolução foi aprovada por aclamação pelos 1.500 participantes da Conferência. Também foi aprovado uma estratégia de mobilização com recolhimento de assinaturas em todo o Estado. Elvino assume o compromisso de colocar seu mandato a disposição da campanha de mobilização pela Lei. Foram recolhidas mais de 15 mil assinaturas e o projeto foi protocolado, entretanto, passaram-se mais mais 4 anos no qual o PL sequer entrava na pauta de votação.

Com o governo do PSDB, eleito em 2006, a situação que era difícil ficou pior. Com o argumento do “Deficit Zero” o governo Yeda justificava seu anti-governo, de Estado Zero para qualquer gasto ainda mais de política social. A lógica do social como caso de polícia, do tempo da República Velha, renascia no governo tucano. O pior governo da história do Rio Grande não só inviabilizava ações do executivo como tinha uma maioria de deputados governistas fechados com o seu “novo jeito de (des)governar” .

Somente agora, ao apagar das luzes do desastrado mandato da coligação tucano-pemedebista foi possível aprovar o projeto. Nesse longo processo é importante destacar o incansável trabalho e compromisso do Deputado Elvino Bohn Gass que desde 2003 está envolvido na luta por uma Lei Estadual que retomasse o programa estadual interrompido pelas gestões Rigotto e Yeda.

O resultado da votação assim como em 2005 foi de aprovação unanime. O que não garante sua homologação pela governadora que repetindo seu antecessor poderá vetá-la novamente.

Através desse breve retrospecto podemos compreender e de certa forma responder a pergunta inicial deste artigo, ou seja, porque uma lei já aprovada em diversos Estados passou por toda essa dificuldade logo no Estado onde segundo o próprio movimento a ES é mais organizada e fortalecida? Exatamente porque aqui ela representa muito mais que simples “práticas”de uma economia cooperativa de setores populares, ela representa a possibilidade de um projeto politico de desenvolvimento econômico baseado em pressupostos antagônicos ao projeto liberal-conservador para quem a única economia possível é a economia capitalista. Essa realidade reforça nossa percepção de que a Economia dos trabalhadores e trabalhadoras é uma ameaça concreta quando avança no sentido de uma estratégia de um outro modelo que põe em cheque os paradigmas da economia dominante, e esse é o maior perigo.

Essa Lei foi um primeiro e importante passo para a retomada da ação pública direcionada para essa outra economia. No entanto, tão importante quanto uma legislação que reconheça a ES é o papel que a mesma, como movimento social e alternativa econômica viável para milhares de trabalhadores, poderá cumprir na reconstrução do Estado, dilapidado pelos últimos governos de corte liberal-conservador, numa perspectiva inovadora e emancipatória. É, portanto, uma Lei que poderá inaugurar um novo período histórico para a ES e para o Rio Grande.

Notas

1O Fórum Social Mundial é a expressão maior do chamado movimento altermundialista cujo lema “um outro mundo é possível”sintetizava os objetivos antisistêmicos do movimento. Ver Vivas, Esther e Antentas Josep(2009) Resistencias Globales. De Seattle a la crisis de Wall Strett. Editorial Popular, Barcelona.

2Guimarães. G. In Leboutte(2001) Economia Popular Solidária e Políticas Públicas. A experiência Poneira do Rio Grande do Sul. ITCP/COOPE, Rio de Janeiro.

3Leboutte, P.,Economia Popular Solidária e Políticas Públicas. A Experiência Pioneira do Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro, COOPE/UFRJ, 2001.

4Decreto número 41.062 , foi assinado em 21 de setembro de 2001. Ver Leboutte (2001)

* Paulo Marques é pesquisador, mestre em Sociologia pela UFRGS e doutorando em sociologia na Universidade de Granada/Espanha, com pesquisa sobre movimento social da Economia Solidária. Integra o coletivo Brasil Autogestionário.