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Infocracia e crise da democracia: Resenha do livro de Byung-Chul Han | Luiz Marques

O arcabouço disciplinar da sociedade industrial pressupõe a exploração dos corpos e energias. O “panóptico de Bentham” é o símbolo do período, com as celas isoladas em torno da torre de vigilância no centro de um presídio. A invenção funcionava com poucos guardas (dois no máximo, por andar) na reeducação dos movimentos corporais dos prisioneiros (The Big Brother is watching you / O Grande Irmão está vigiando você). Hoje, concentra-se na coleta de dados e de informações que, além da inspeção, asseguram o controle e o prognóstico dos comportamentos. Os dados são fornecidos por cada criatura que ingressar no nebuloso ciberespaço, munida com um smartphone.

Daí o título do ensaio Infocracia: digitalização e a crise da democracia, de Byung-Chul Han, publicado em alemão em 2021, e vertido ao português pela editora Vozes em 2022. O curioso é que pessoas submissas ao regime de informação supõem-se livres, autênticas e criativas. Produzem-se (produire, em francês, significa deixar-se ver) para performar. Antes, forçava-se uma visibilização através das câmeras de segurança espalhadas pelas ruas, viadutos, lojas, condomínios. Agora, de forma espontânea, as pessoas visibilizam-se da manhã à noite por inteiras com um inocente clic.

Das mídias eletrônicas às digitais

Para McLuhan, as mídias eletrônicas produziam o ser humano de massa, como o torcedor anônimo em um estádio de futebol. Então, “perfil” era conversa de policial para a investigação de crimes e criminosos. Nas mídias mais modernas todos fazem jus a um perfil específico. Com a lupa da inteligência artificial, instrumentos captam o “inconsciente digital”, para apoderar-se de camadas pré-reflexivas, pulsionais e emotivas de condutas particulares. Eis a “psicopolítica”. Diz-se após a Primeira Guerra que a soberania é de quem decide sobre o Estado de exceção. Após a Segunda Guerra, é de quem dispõe das ondas espaciais com as inovações tecnológicas. Na atualidade, o soberano é quem detém informações em rede para garantir a dominação, na dialética do poder.

As mídias convencionais calam os receptores com uma emissão vertical, sequestram a discussão sobre questões relevantes da pólis e abstraem do imaginário social os ideais utópicos. A sociedade posta-se na plateia para assistir ao espetáculo. A racionalidade deteriora-se em um entretenimento. O negócio da diversão nasce em sintonia com a decadência do juízo. A midiocracia inaugura a teatrocracia – a medida do que usufruir para uma convivialidade. O discurso se degrada em show e propaganda. Conteúdos vão para o ralo. Vale a performance (Margaret Thatcher, Ronald Regan, Collor de Mello). Os suspiros confinam-se na stand-up comedy, para exaltações narcísicas. Como no Admirável mundo novo, de Aldous Huxley, a coação à felicidade obrigatória rege a vida.

Nas últimas décadas do século XX, as belas almas se iludem com a perspectiva da democracia no futuro. Sopra uma brisa de esperança libertária na tecnologia, no incipiente neoliberalismo que abre as asas. Passaram-se quatro decênios até a descoberta do óbvio. Os agrupamentos construídos por algoritmos não têm autonomia para agir. Os followers (seguidores) nas mídias sociais “prestam-se adestrar em gado de consumo por smart influencers (influenciadores inteligentes)”, com a canga da despolitização e da alienação. Lucra a Big Tech, com receitas maiores que a de muitos países.

Em vez de reprimir, o objetivo passa a ser perscrutar a liberdade. O regime de informação apresenta a dominação como libertação. As mídias comparam-se à comunidade de uma igreja; os likes, a um “amém”. Compartilhar o pão remete à comunicação. O séquito encena uma eucaristia digital. Não é preciso temer a revolução. O termo alemão para ação (handlung) significa o que é feito pelas mãos, não pelos dedos. Trata-se de um totalitarismo sem ideologia. Se dispusesse de uma ideologia, uniformizaria as massas; na sua ausência, singulariza os consumidores para o deus-mercado.

Fim da liberdade e da democracia

As telas e monitores são substituídas pelo touchscreen (tela sensível ao toque). Telespectadores passivos assumem o papel de emissores ativos. Nas mídias digitais não é a diversão que ameaça a esfera pública, mas “a propagação e proliferação viral de informação – a infodemia”, salienta o professor da Universidade de Berlim. Acelera-se a difusão informativa e se atropela a cognição. A infocracia não visa a compreensão ou a conscientização, senão o convencimento de curto prazo pelo Twitter. Os exércitos de trolls (comentários para desestabilizar um debate) intervêm para fomentar as notícias falsas e as teorias da conspiração – com ódio. Argumentos racionais sofrem nocaute.

A verdade perde a aura que teve por milênios na coesão da civilização humana. Programas políticos são trocados por memes, nas eleições; imagens não fundamentam raciocínios, mobilizam afetos. As redes sociais brotam em espaços privados e se dirigem a espaços privados. Sua ação comunicativa bloqueia o movimento de ir e vir plural e público do discursus que, em latim, significa andar ao redor. A alteridade desaparece e, junto, a possibilidade de um pensamento. Como pondera Byung-Chul Han, “O filtro da bolha envolve um looping-do-eu permanente”. A democracia torna-se inútil, meramente decorativa. É como se voltássemos à segunda etapa do desenvolvimento cognitivo (7 a 12 anos), da teoria de Jean Piaget, avaliando o mundo com a potência egoica do umbigo.

A tribalização das redes para refatualizar o real galvaniza a extrema direita, pela urgência desta em achar uma identidade própria para rasgar o contrato social de pertença à modernidade. Esquisitices tipo “a terra é plana” contribuem para o biótipo tribal; são demarcatórias. Renunciar ao bizarro leva a uma falência identitária nas redes cujas opiniões ungem o sagrado, não o conhecimento. O pacto dialógico é abandonado. Os idólatras do Big Data, a máquina que elabora as quantidades de dados complexos, projetam um consenso sobre o status quo sem a luta de classes e os partidos políticos. As decisões viram uma prerrogativa exclusiva da artificial intelligence. Promessas individuais e coletivas de bem-estar são terceirizadas na magia algorítmica, com uma servidão voluntária.

Os dataístas veem na sociedade um organismo funcional. Entre órgãos não há discursividade, o que importa é a troca eficiente de informações entre unidades de função para um melhor desempenho. Política e governo saem; entram em cena o controle e o condicionamento. Para os behavioristas, a interação democrática exala obsolescência – prenuncia o fim da liberdade e da democracia. Na contramão, Shoshana Zuboff, em A era do capitalismo de vigilância, alerta: “Para renovar a democracia, precisamos de um sentimento de indignação, uma sensibilidade para perceber o que nos está sendo tomado – a vontade de querer e o espaço público em que age essa vontade”.

Manter viva a vontade da verdade

A refatualização prova que o ditado (“contra os fatos não adianta brigar”) caducou. Os ditos “fatos alternativos” protegem as tribos. A verdade já não serve de anteparo à guerra de todos contra todos, para alçar a sociabilidade comum. O Dicionário Oxford, em 2016, escolheu a expressão post-truth (pós-verdade) de emblema para um tempo em que os fatos objetivos são menos influentes do que as emoções e as idiossincrasias. O referendo britânico sobre a União Europeia (Brexit) e a eleição de Donald Trump foram o estopim. Não faltou o simulacro brasileiro para ilustrar o ápice do processo denunciado pelo New York Times – nos idos de 2005 – ao eleger o neologismo truthiness, algo parecido com “veridade”, para destacar a crise da verdade e do entendimento no século XXI.

A ordem digital abole a solidez do fatual. A fotografia digitalizada, idem, ao refazer a estética para o visual. Celulares costumam vir programados para fazer maquiagens automáticas, o que estimula o habitus de negação da facticidade. A sociedade informacional tem no DNA a desconfiança. Reina a desorientação, na abundância de informações que afirmam a contingência e a ambivalência de tudo. A verdade é outra mercadoria sujeita às oscilações da Bolsa de Valores. As grandes narrativas evaporam. O paradigma da comunicação discursiva é suplantado pela brutal enxurrada de informes desencontrados. A imensa crise da verdade conduz à crise da sociedade, incapacitada de avançar em bloco.“Há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha nossa vã filosofia”, avisa o bardo inglês.

O premier Benjamin Netanyahu ordena os bombardeios na Faixa de Gaza. Depois de milhares de mulheres e crianças mortas, deduz-se que a limpeza étnica prepara o terreno para a engenharia colonial, na região. O genocídio obedece à gramática da acumulação capitalista. A ideia é construir o Canal Ben-Gurion, homenagem ao pai fundador do Estado israelense David Ben-Gurion, entre Eilat e Gaza, para multiplicar o fluxo de navios em ambas as direções. A obra une o Mar Vermelho ao Mar Mediterrâneo em escala gigante. Substitui o estreito Canal de Suez. Interessa à geopolítica dos Estados Unidos e da Europa. Israel faz o serviço sujo. A meta é o domínio de grande parte do comércio mundial marítimo, pelo Ocidente. O Estado palestino inviabiliza o projeto. É o obstáculo tático a remover. O Hamas é o mote para ativar o antigo plano. Entende-se o “apoio incondicional” de Joe Biden (EUA) e os rompantes de Emmanuel Macron (França) e de Olaf Scholz (Alemanha). O acontecimento acima é a mais recente aplicação da post-truth para esconder as intenções.

A esquerda deve manter viva a “vontade da verdade”: (a) participar do espaço público e; (b) zelar pelo que os gregos chamavam parrhesia, o dever de dizer a verdade. Na alegoria da Caverna, de Platão, um prisioneiro conhece a realidade que projeta sombras no fundo da gruta. Relata o que viu aos companheiros de infortúnio. Esse parresiasta revela perseverança na “guerra de posição”, para dar início ao tempo da liberdade e da democracia. Não adula a ignorância. Rompe grilhões das fake news. Para Byung-Chul Han, “evidentemente a época da verdade passou”. Logo, mais necessária é a coragem heroica para uma emancipação dos povos. O combate à infocracia e ao neofascismo exige uma práxis ideológica transformadora. Com o otimismo de Lula: A verdade vencerá.

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Luiz Marques é Docente de Ciência Política da UFRGS, ex-Secretário de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul.

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