Para lembrar Athos Pereira (1946-2024), militante.
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Recupero, sem pretensões indevidas, parte da reflexão com que abri o volume “A Estrela Imperfeita”: um conjunto de poemas dedicados à trajetória do Partido dos Trabalhadores, dirigidos ao coração de sua militância, em tempos de crise.
A poesia em certos momentos, quando nos vemos emparedados ou confusos diante da magnitude dos desafios que a história nos impõe, entoa impossíveis canções que nos embalaram o berço e vem em nosso socorro. Lança luzes para além dos “surrados argumentos da razão”.
Antecipo que não se trata de fuga do “excesso de realidade” com que a luta social nos aprisiona, ou de mero apelo às reservas insondáveis da vontade.
Penso – e espero – que ela, a poesia, talvez ainda guarde potência suficiente para desafiar nossa imaginação política.
Está escrito num verso escrito lá atrás: “A poesia é o impossível/ ao alcance da voz”. Aqui talvez resida um ponto de contato entre duas aventuras aparentemente tão distantes: a criação da poesia como esforço para reinventar os horizontes da língua e o exercício político como ação revolucionária que se propõe a reinventar as relações sociais.
Esse diálogo subterrâneo, às vezes apenas sugerido, às vezes explícito, de algum modo marcou a grande literatura ao longo dos séculos.
Penso que não preciso me estender sobre o estado de confusão e angústias em que nos encontramos no momento presente.
Imersas num composto tóxico e vertiginoso, respirando informações, desinformações e contrainformações resultantes da revolução digital, as sociedades ocidentais contemporâneas mal conseguem distinguir os contornos daquela tormenta vencida há 80 anos com a rendição do nazifascismo, no 9 de maio de 1945.
Desfila em na nossa memória o cortejo macabro dos nomes dos campos de extermínio: Buchenwald, Dachau, Auschwitz, Birkenau, Chelmno, Sobibor, Treblinka, Majdanek… agita-se como um presságio, diante dos nossos olhos uma espécie de geografia da morte.
Tão recente – e tão reveladora das atrocidades de que são capazes as tiranias geradas pela força bruta do Estado e pela indiferença à dor do outro, disseminada nas sociedades – que só um estado de hipnose social induzido pode explicar: a prevalência de uma espécie de presente contínuo e circular, que abole o passado e o futuro, como se fosse capaz de interromper o próprio fluxo da História. De provocar, em suma, a morte da História, devorada pelo senso comum.
De repente, diante de nós, emerge o monstro nazifascista amamentado no leite do neoliberalismo – expressão política contemporânea do capitalismo financeiro – reencarnado em máxima potência e ferocidade, afinal reveladora de sua própria crise.
Em nome da liberdade, nos oferece o ópio digital. E com ele nos devora as últimas migalhas do tempo disponível para viver, quando regressamos para casa – os que ainda temos casa – depois da jornada extenuante, embalados pelas soluções simples, milagrosas, acionadas com um mágico toque dos dedos.
Na manhã seguinte despertamos anulados, submetidos a uma servidão ainda mais profunda.
Os fornecedores do ópio digital nos capturam o essencial: o tempo. Disputam mesmo, entre eles, as horas do nosso sono. Nos subtraem a vontade. Substituem a palavra e o gesto herdados da remota humanidade que nos restou depois de décadas envenenados pela miragem paralisante. Nos saqueiam diariamente o idioma que usávamos para dizer o que pensávamos, sentíamos ou como identificávamos nossa presença no mundo.
Autômatos, com o polegar rolamos a tela hipnotizados por essa letargia alienante de quem se rendeu à condição de meros espectadores da própria vida. Ela mesma, a vida, se evade na vertigem. Inatingível do lado oposto da tela.
“O que fazer quando os donos do espaço digital e da palavra capturam a memória das batalhas que travamos, e sobrepõem como num palimpsesto, um novo texto – uma nova imagem – onde não nos reconhecemos? E nos roubam a voz da garganta e já não alcançamos os ouvidos e o coração de nossa gente”?
Nesses momentos a palavra arranca energia do vivido e, como poesia, se insurge. Mais do que nunca os militantes são convocados a reencantar o árduo exercício da política. E definir sua ação como a capacidade de fazer o extraordinário invadir a monotonia embrutecedora do quotidiano. De surpreender o inimigo. De transgredir. De criar o impensado. E afirmar-se como militantes, precisamente pela transgressão da lógica neoliberal dominante, para reconstruir o discurso humano e, por isso, de alguma forma misteriosa, reconstruir o destino humano.
Quarenta e cinco anos depois, nos vemos diante desse imperativo.
A necessidade de “Retirar do barro o espelho que oculta nossa face desfigurada. Lavá-lo com a água da palavra. E levantá-lo contra a luz crua da tragédia que nos colheu. Limpo. Para mirar o rosto que esculpimos com mão incerta, sem os piedosos véus da hipocrisia. E oferecê-lo, sob o sol da praça, aos olhos incrédulos e indignados de nossa gente que vigia e chora, mas teima em manter o frágil pulso da esperança”.
A irrevogável esperança que nos mantém de pé enquanto passa esse vendaval que tudo arrasta e já não reconhecemos no meio dos escombros de sonhos e obstinações, fragmentos das razões que nos guiaram os passos na difícil passagem entre uma a outra geração de lutadores.
“Repare: estão inscritos na planta dos nossos pés. Fecundaram os caminhos que nos trouxeram até aqui: para os altos e para os pântanos. Sem concessão ao veneno da palavra dos nossos inimigos, fazem parte da nossa verdade profunda. Da nossa grandeza e das nossas misérias”.
O que resta ao poeta condenado ao combate senão a sina de combater? Olhar em volta e recobrar na minha voz a voz dos que não puderam palmilhar a contraditória manhã que acendemos no coração da tempestade, nos olhos de nossa gente…
Interpelações:
1.Democracia.
Nascemos para construir uma sociedade sem explorados e sem exploradores. Está escrito no nosso Registro Civil. Nenhum militante do PT deve utilizar a expressão “Democracia” em abstrato. Será digno nos contentarmos com o duvidoso título de defensores mais consequentes da democracia liberal, num país oligárquico?
2.Soberania.
Depois do golpe de estado contra o Brasil, que afastou a Presidente Dilma (2016), para manter sob controle do Império os recursos estratégicos indispensáveis ao nosso desenvolvimento soberano e desmontar as conquistas de um século de lutas dos trabalhadores, cumpre – no novo cenário das disputas geopolíticas no mundo – reafirmar a política externa ativa e altiva. Desejamos honestamente superar a condição secular de colônia e assumirmos o controle do nosso próprio destino como nação?
3.Cultura.
No 10 de fevereiro de 1980, emergimos na cena histórica do Brasil, como um fato político-cultural. Viemos de fora dos beirais da Casa Grande. Fomos, ao nascer, condenados a amar a diferença. A amar os diferentes. Recusamos a homogeneidade e recusamos a submissão. Somos diversos. Sem desenho prévio.
Temos o direito de não sermos patéticas caricaturas dos anglo-saxões. Somos filhos do sol: indígenas, afros, mamelucos, cafuzos, somos da raça de cobre. Pretos, brancos, amarelos, azuis, de todas as cores. Somos ibéricos e barrocos. Porque soubemos digerir o barroco e o devolvemos sob o calor dos trópicos, metabolizado em novas sínteses de beleza que seus criadores originais não tiveram as mãos mutiladas do Aleijadinho para elaborar. Com que mãos, símbolos, vontades vamos defender essa fisionomia cultural moldada ao longo dos séculos?
4.Sustentabilidade.
Não há como defender um desenvolvimento ambientalmente sustentável e socialmente justo sem resgatar o compromisso com a democratização da propriedade da terra por meio da Reforma Agrária Popular. O modelo de propriedade e produção dominante no campo brasileiro, ancorado no agronegócio concentrador de terra, renda e na tecnologia do veneno, reproduz com insumos modernos o cadáver do modelo agrário-exportador que herdamos desde o desembarque dos capitães ibéricos há quinhentos anos. Essa reprodução do passado resolve os problemas de segurança e qualidade da alimentação da sociedade brasileira?
A poesia não sabe de respostas. É afeita à irreverência, ao incômodo, ao desafio ao já pensado, às perguntas inconvenientes. E, sempre, à esperança que nos move os corações. Aos quarenta e cinco anos “para nascer, nascemos”.
Brasília, 10 de fevereiro de 2025
Pedro Tierra é Poeta e Militante do Partido dos Trabalhadores desde a fundação.
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