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Jessé Souza e o fantasma do “identitarismo” | Erick Kayser

Na esteira da divulgação de seu último livro, “O pobre de direita — a vingança dos bastardos”, o sociólogo Jessé Souza concedeu entrevista ao jornal O Globo, na qual comenta o resultado das eleições municipais de 2024. Polemista, Jessé é um autor perspicaz em produzir manchetes eficazes na atual economia de atenção algorítmica e nesta entrevista não foi diferente. Ganhou repercussão, para endosso ou crítica, alguns de seus vaticínios sobre a esquerda e o PT.

Mesmo com os limites que uma entrevista curta possibilita – e também descontando a opção jornalística do veículo, que assim como outros da grande mídia é sempre sedento por diagnósticos apocalípticos sobre o presente e o futuro da esquerda – não podemos deixar passar incólumes alguns de seus profundos equívocos.

Utilizando como exemplo a candidatura para a prefeitura de São Paulo de Guilherme Boulos (Psol), Jessé afirma que a perda de votos nas periferias pela campanha ocorreu por privilegiar pautas “identitárias”, a qual teria se descolado dos problemas “reais” dos pobres. Segundo ele, “não basta essa esquerda ‘legal’, que discute gênero e raça”. Sem explicar muito bem o que é “identitarismo”, o termo é mobilizado como uma espécie de fantasma, que atormenta a esquerda e seria o grande responsável, senão o único, pelas dificuldades eleitorais.

Se o único equívoco de Jessé fosse acusar a campanha Boulos de ser “identitarista”, algo que não corresponde à realidade, o problema talvez fosse menor. Contudo, deste apontamento, segue para uma caracterização do PT e da conjuntura mais geral da esquerda.

Jessé ampara sua análise na categoria “pobre de direita” e a partir dela, extrapola suas conclusões. Não vamos aqui debater sobre a validade desta categoria que o autor apresenta como novidade – pobres votarem na direita em eleições é muito mais normal que excepcionalidade recente, bastando ver o perfil político da maioria dos parlamentares, prefeitos e governadores eleitos nos últimos trinta anos no país –, mas apenas apontar aqui que este tipo ideal é pouco fundamentado. Reduções sociológicas como esta não capturam a complexidade de determinados processos, como o das disputas eleitorais nos municípios.

Em conjunturas complexas, explicações monocausais estão necessariamente erradas. O Brasil, assim como muitos outros países, enfrenta um processo de crise democrática. A vitória de Lula nas eleições presidenciais de 2022, foi como um freio de emergência acionado para impedir o país de cair no precipício do autoritarismo. Mas ainda estamos longe de uma conjuntura estável e as esquerdas vivem um momento de reconstrução, caracterizada por uma preocupante perda de ofensividade política.

De um lado, Jessé acerta quando afirma que na disputa para “conquistar os corações e as mentes dos mais pobres”, o “trabalho das igrejas evangélicas, marcado pelo anti-esquerdismo, ganha sentido político”, tendo peso social e preenchendo um “vazio que foi criado pela falta de mobilização e disputa de narrativas” da esquerda. Por outro lado, erra ao debitar esta ausência mobilizadora da esquerda em sua suposta guinada identitária.

Agrupa toscamente as lutas por igualdade racial, de gênero, sexualidade, entre outras, sob o rótulo de identitárias, negando-lhes, de antemão, seu potencial emancipatório e até mesmo anticapitalista. Também ignora que muitas destas lutas não são novas e possuem uma longa linhagem de intelectuais e lutadores sociais, que já nos primórdios da formação da esquerda moderna no século XIX, traziam bandeiras como os direitos das mulheres e o antirracismo. Este tipo de silenciamento, de certa forma, é uma rendição ao discurso liberal progressista, que busca domesticar as demandas de reconhecimento através de sua suposta inclusão pelo mercado.

O fantasma do “identitarismo” funciona aqui como uma muleta intelectual para tentar manter de pé argumentos precários. Uma ascensão de movimentos ligados a questões de identidade nas últimas décadas não ocorre em oposição a uma esquerda classista. O avanço de um e o declínio de outro não ocorrem por questões diretamente correlatas, ainda que a sincronia destes processos históricos possa dar esta impressão. Exemplificando, não foi o surgimento de movimentos feministas de massa que enfraqueceram os sindicatos, mas sim mudanças no mundo do trabalho.

A ausência de um discurso mais forte da esquerda relacionado a questões estruturais da sociedade capitalista, como as desigualdades econômicas, dá-se muito mais por recuos pragmáticos e capitulações programáticas ao ideário neoliberal, ocorridos em parte da esquerda, do que devido a algum tipo de silenciamento ou censura promovido pelos “identitários”. Em termos organizativos, se está correto o diagnóstico de Jessé que a esquerda sequer “tenta ir às periferias urbanas e rurais”, também é difícil justificar qual a responsabilidade do fantasma do “identitarismo” nisso.

Nunca é demais lembrar que lutas sociais e resultados eleitorais são processos que eventualmente podem confluir, mas que possuem dinâmicas muito distintas. No Brasil, onde a reforma política sempre foi um tema adiado, sendo conduzida de forma “fatiada” com pequenas reformas eleitorais – financiamento público das campanhas, cláusula de barreira, criação das federações partidárias, etc –, que avançaram em pontos importantes, manteve intacta uma estrutura política construída para perpetuar o poder de partidos de direita marcadamente fisiológicos, eufemisticamente chamados de “centrão”. Nesta dinâmica, turbinada recentemente com as emendas parlamentares, está muito da explicação para o sucesso eleitoral deste ano de partidos como PSD, MDB, PP, União Brasil, entre outros. Portanto, fatores ideológicos ou discursivos têm um papel eleitoral reduzido, menor do que apontado por Jessé.

Afirmando categoricamente que o “pobre de direita” não se interessa por questões identitárias, ele conclui que “o identitarismo ecoa na classe média e na elite, não no pobre, jogado na lata de lixo pelo preconceito racial e agora vítima de racismo cultural”. Palavras fortes de Jessé que buscam colocar uma moldura elitista no “identitarismo”, além de retirar capacidade de agência dos pobres. Mesmo que venha a ter alguma filigrana de verdade nesta sentença, algo que o resultado das urnas não parece apontar, ele desconsidera que a própria direita tem disputado o “discurso identitário”, de forma distorcida, como no movimento de mulheres bolsonaristas. Se fosse algo tão irrelevante eleitoralmente, a direita não faria esta ação.

Por fim, cabe comentar a solução apontada por Jessé para este problema do “identitarismo” da esquerda: um retorno ao trabalhismo de Getúlio Vargas. Mesmo reconhecendo a dificuldade e insuficiência desta proposta, ela é utilizada como forma de reforçar sua tese de uma esquerda elitizada. Nesta ideia, Jessé vai além, afirmando que o “PT nasceu dando de ombros para a herança getulista, opondo o sindicato livre ao peleguismo trabalhista. Tudo bem. Mas, sendo simplista, PT e PSDB são mais parecidos do que imaginamos, nascidos de braços diversos da mesma elite paulista com pendores social-democratas. Quem ofereceu a face popular ao PT foi o Lula. Depois dele, o PT pode estar destinado à mesma – pouca – relevância do PSDB hoje.” Essa acusação de que o PT seria um partido “nascido da elite paulista” é tão tresloucada, que basta lembrar alguns dos fundadores do PT que estavam ao lado de Lula, como Apolônio de Carvalho, figura histórica da esquerda brasileira; Olívio Dutra, bancário do Rio Grande do Sul; Chico Mendes, líder seringueiro em Xapuri, no Acre; Benedita da Silva no Rio, entre tantas e tantos outros, que derrubam esta afirmação, dispensando maiores argumentos.

O PT no futuro poderia eventualmente perder relevância eleitoral, contudo, não pelas razões apontadas por Jessé, mas por insuficiências políticas e organizativas que sequer foram tangenciadas pelo autor. Os desafios da esquerda, e do PT em particular, são imensos, mas seguramente os caminhos para esta necessária reconstrução não passam pela busca de espantalhos dentro da própria esquerda.

O momento exige menos uma busca por realçar particularismos e dogmatismos, mas por avançar para convergências e politização das lutas. Em uma conjuntura polarizada, é fundamental que a esquerda recupere uma condição discursiva universalizante, capaz de mobilizar a maioria das pessoas que estão sendo cotidianamente exploradas por condições de trabalho precarizadas e excluídas de uma vida digna. O processo para isto, ainda está por ser construído e não passa por negar alguma luta, mas incluir a todas.

Jessé confunde sintomas com diagnósticos, levando-o, por consequência, a receitar remédios errados, que na melhor das hipóteses não passam de placebos, mas que eventualmente, quando sobredosados e levados às últimas consequências, podem se tornar uma “cloroquina de esquerda”.

Erick Kayser é mestre e doutorando em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS e Secretário-geral do PT de Porto Alegre.

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