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‘Jornal Nacional’: A desconstrução do mito | Eliara Santana e Juarez Guimarães

Após cumprir papel fundamental na eleição de Bolsonaro, de apoiar com identidade própria o programa neoliberal de seu governo , o Jornal Nacional agorá se lança à desconstrução frontal e sistemática de sua imagem

Nunca chegou a ser novidade o fato de que, para a Rede Globo, Jair Bolsonaro não era o candidato preferencial a ser apoiado. Era, na verdade, a única opção possível diante da “ameaça” de uma volta do PT ao governo central do país. Lula, antes e depois de ser condenado, aparecia como o candidato mais votado nas pesquisas. Depois, quando ele foi impedido de concorrer, Fernando Haddad teve um crescimento surpreendente em pouco tempo. Bolsonaro era, à época, a aposta viável para derrotá-lo, já que outros candidatos, em particular Alckmin, não decolaram.

Fazendo uma breve retrospectiva desde a eleição e a posse do novo presidente, temos alguns momentos marcantes que sinalizam um frágil e tensionado relacionamento entre a Rede Globo e o presidente eleito, com muitas idas e vindas. Além do posicionamento político da narrativa do Jornal Nacional (JN), fortes interesses corporativos da Rede Globo estavam em jogo desde o início dessa turbulenta relação. De fato, a narrativa do JN nunca se inseriu plenamente no campo e na lógica bolsonarista, marcando uma convergência forte com a agenda econômica neoliberal do governo, mas preservando a identidade e o sentido de sua narrativa. Isso será decisivo pois, em um novo momento de maior contradição, uma nova atitude do JN, de frontal oposição ao governo Bolsonaro, não parecerá uma ruptura ou uma perda de sentido da narrativa.

Começa a tensão: primeiras denúncias

Já em dezembro de 2018, surgem as primeiras denúncias que vão expor o submundo da família Bolsonaro. Elas envolvem Fabrício Queiroz, ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), o filho 01, destacando as suas movimentações financeiras suspeitas, de acordo com relatório do COAF. A reportagem do JN tem foco em Queiroz, mas não deixa de explicitar a sua estreita ligação com Flávio.

Em janeiro de 2019, depois da posse, Flávio Bolsonaro volta a ocupar a cena, e suas operações suspeitas de corrupção, ilegalidade e relação com o crime organizado são detalhadas pela bancada do JN edição após edição. Aparecem, então, detalhes das altas transações econômicas não explicadas e a relação próxima com o motorista do seu gabinete que movimenta altas quantias e tem movimentações suspeitas na conta corrente. Já presidente, Jair Bolsonaro se mantém afastado das denúncias que envolvem o filho, dando declarações superficiais pelas redes sociais.

Há uma pequena trégua, mas o JN retoma a carga com nova rodada de denúncias, mais pesadas, contra o filho 01: além das transações econômicas já explicitadas, novos e instigantes detalhes mostram a relação estreita de 01 com milicianos do Rio de Janeiro. Para que o público perceba a dimensão desse envolvimento, o JN mostra reportagens, explicando em detalhes o que são as milícias e como elas agem. Jair Bolsonaro segue ignorando a Rede Globo, falando pelas redes sociais e a partir de entrevistas na TV Record e no SBT.

No JN, ganha destaque a figura do general Mourão, ao lado do então ministro Sérgio Moro. É Mourão quem passa a falar em nome do governo. A crise no governo, com as farpas trocadas com o então ministro Gustavo Bebianno, ganha destaque também. E todo esse percurso desemboca no dia 19 de fevereiro, quando um Bebianno amargurado e traído revela a faceta instável do mito a partir de áudios no Whatsapp. A cobertura do JN, com 20 min e 36s para o assunto, dá um enorme destaque para os áudios, trazendo todas as falas, sem poupar nenhum detalhe.

Performance da voz: do silenciamento à truculência

Como estratégia editorial, o silenciamento é uma categoria muito bem utilizada pelo Jornal Nacional, uma estratégia que pode beneficiar ou prejudicar determinado sujeito. Em vários momentos do governo Bolsonaro, essa estratégia discursiva foi utilizada das duas formas. Durante a eleição, Bolsonaro não foi exposto, não falou livremente. Com o episódio da facada, ele passou a falar pelos tuítes, amplamente divulgados pelo JN. Não deu entrevistas, não debateu com ninguém. A sua voz postiça,editada, era assim ecoada pelo JN.

Logo após a eleição, aparecia com um discurso ainda bem moldado, apesar do temperamento irascível,da linguagem bruta e temperada por toda sorte de preconceitos e truculências. Com Bolsonaro, a linguagem, mais do que nunca, sempre foi uma performance da identidade fascista. Depois, já com o governo em curso, quando a intenção era preservar alguma estrutura de governo – sobretudo blindando o ministro da Economia, Paulo Guedes, e mantendo o vigor das reformas defendidas pelo Grupo Globo, em favor de Bolsonaro havia um silenciamento que podemos chamar de positivo – ele aparecia em várias imagens, mas sua fala era trazida ao público pela voz de Délis Ortiz, devidamente filtrada e editada. Ou seja, nos momentos iniciais do governo, mesmo em momentos de maior embate, o presidente não era deixado livremente para falar. Seus arroubos e grosserias não eram mostrados. Sua brutal insensibilidade não era exposta. Mas isso começa a mudar…

Mais denúncias e uma nota indignada

No dia 19 de julho, uma compungida Renata Vasconcelos lê uma nota indignada da Rede Globo contra declarações de Jair Bolsonaro. Entre várias declarações racistas, machistas e sem noção, o presidente havia chamado os governadores do Nordeste de representantes de “paraíbas” e disse que ninguém passa fome no Brasil. Por fim, em reunião com os correspondentes estrangeiros, referiu-se à jornalista Miriam Leitão sugerindo que ela havia mentido sobre a tortura na ditadura militar quando estava grávida.

Em agosto, nova rodada de embates, quando as declarações de Bolsonaro colocaram em risco as relações externas do Brasil. Naquele momento, o JN vê sua audiência aumentar significativamente ao se colocar em confronto direto com Jair.

No final de outubro de 2019, o JN tornou público um depoimento do porteiro do condomínio onde Bolsonaro mora,dando conta da vizinhança com os assassinos confessos de Marielle Franco e de uma suposta autorização do próprio Bolsonaro para uma entrada dos assassinos no condomínio na véspera do assassinato. O caso gravíssimo, marcado por seguidas reviravoltas, de confirmações e desmentidos, envolvendo o próprio ministro da Justiça Sérgio Moro, procuradores e a Polícia Federal, acabou por não ter um seguimento maior no JN.

De fato, no segundo semestre, o JN foi o principal veículo de divulgação,fazendo coro a praticamente toda mídia empresarial brasileira, do juízo de que os indicadores econômicos estavam, enfim, mostrando uma forte retomada da economia brasileira, a ser consolidada no ano de 2020.O tema tornou-se praticamente uma campanha sistemática com reflexos fortes na própria curva de popularidade do governo Bolsonaro, que suspendeu suas tendências de forte queda e teria retomado, nos meses finais de 2019, uma certa tendência de estabilização ou de leve crescimento. A artificialidade dos dados econômicos manipulados, sua parcialidade, sua inconsistência ficariam logo demonstrados nos meses iniciais de 2020 que precederam a chegada da pandemia ao Brasil.

Mas isso se altera em 2020 à medida que Bolsonaro se mostra mais incontrolável no exercício do governo e à medida que ele parte para um enfrentamento aberto com a imprensa, Globo incluída. O que vemos, então, é um espaço cada vez maior para mostrar os desatinos e virulências de Bolsonaro, seu destempero, claro que ainda com filtros, pois havia um governo a preservar.

Com a pandemia, o JN se legitima na oposição a Bolsonaro

O novo período que se inicia, então, é muito didático para compreender a capacidade de reposição da narrativa do JN, a escala da influência e sua potência de auto-legitimação. Pois se o JN, nas eleições de 2018, funcionou como uma espécie de reserva de credibilidade e de apoio à ascensão de Bolsonaro, agora ele disputa com Bolsonaro, inclusive com suas redes de apoio e de fake news, a consciência e a opinião dos brasileiros.

A postura radicalmente negacionista do governo Bolsonaro diante da pandemia do coronavírus – de fato, assumindo uma sinistra liderança mundial – serviu como cenário para um primeiro momento editorial sistemático e continuado de desconstrução frontal da liderança de Bolsonaro por parte do JN. Se o episódio do suspeito e provável envolvimento de Bolsonaro e seus familiares no assassinato de Marielle Franco, através de gravações da portaria do condomínio, não teve,de fato, continuidade, a cena duradoura e centralizadora da agenda da pandemia parece marcar um novo momento da relação entre o JN e Bolsonaro, não mais de oposição delimitada a certos temas e atitudes no interior de uma convergência programática neoliberal, mas de uma desconstrução frontal da sua liderança pública.

Essa opção por uma desconstrução frontal da imagem de Bolsonaro vem em um momento no qual a tendência ao crescimento da sua impopularidade apresentava já um viés de retomada, após a pausa dos meses finais do ano passado, quando houve uma convergência midiática cerrada – inclusive com a participação decisiva do JN –em torno à idéia do início de uma forte retomada do crescimento da economia brasileira. Os meses iniciais do ano desmentiram frontalmente essas previsões, artificialmente construídas, inclusive com adulteração de indicadores macroeconômicos. O JN vinha tentando equilibrar um apoio ao programa neoliberal radical do governo Bolsonaro com um distanciamento crítico em relação às suas pautas mais fundamentalistas, em particular no plano da moral, seguindo um paradigma de um neoliberalismo progressivista, como o das lideranças do Partido Democrata norte-americano. A postura de desconstrução frontal da liderança de Bolsonaro marca, agora, um novo momento de deslegitimação do governo.

A mudança de postura em relação ao governo Bolsonaro não aparece como uma ruptura da narrativa ou a sua negação, já que os elementos de distanciamento e de oposição em relação à liderança de Bolsonaro já vinham sendo construídos anteriormente. Para o espectador do JN, essa postura de desconstrução frontal da liderança de Bolsonaro aparece, pois, como um desdobramento possível da narrativa diante de um recrudescimento das suas posições obscurantistas e criminosas.

Essa desconstrução frontal da imagem de Bolsonaro não tem uma consequência política na cobertura editorial do JN no apoio a qualquer medida de impedimento democrático do mandato de Bolsonaro. Entidades democráticas, movimentos sociais, representantes do meio científico e do sanitarismo brasileiro, partidos políticos de oposição já definiram posicionamento pelo afastamento de Bolsonaro por crimes flagrantes de responsabilidade. Mas essa notícia não se tornou ainda uma agenda do JN.

Na recente crise gerada pela pandemia no país, a opção inicial do JN foi a de centralizar a edição no conflito Bolsonaro x Mandetta, dando protagonismo aos governadores e a Rodrigo Maia na defesa de medidas contra a pandemia. As oposições de esquerda e centro-esquerda, o próprio consórcio dos governadores do Nordeste, certamente a iniciativa institucional mais relevante até então construída no combate ao coronavírus, não tiveram, de fato, acolhida na cobertura.

Nos momentos iniciais da polarização, com Mandetta ainda à frente do Ministério da Saúde, não havia uma crítica sanitarista fundamentada sobre a inconsistência fundamental das medidas já tomadas em relação à pandemia: a não construção de um sistema de informações sobre a evolução da pandemia devido à opção/incapacidade das testagens em massa (o JN divulgava os dados colhidos nas secretarias estaduais de saúde sobre o número de casos e mortos sem questionamentos, embora o fantasma da subnotificação já rondasse o país há muito tempo), sobre o não investimento necessário no SUS (financeiro e como autoridade sanitária necessária para centralizar o conjunto da rede pública e privada) e as medidas completamente insuficientes ou antitrabalhadores já aprovadas, que estimulam o desemprego e a redução dos salários. O protagonismo era do então ministro, e o silenciamento foi imposto a Jair Bolsonaro – ele não mais aparecia nas edições do JN. Era como se, de repente, o país não tivesse mais presidente, tivesse apenas um ministro da Saúde, o qual respeitava os preceitos científicos e tentava conduzir a nação em meio ao caos da pandemia.

No entanto, Bolsonaro não se contentou com o esquecimento nem admite que subordinados brilhem mais que ele e, então, passa a desafiar tanto os preceitos da OMS quanto as recomendações do próprio ministro da Saúde. Ele retorna, então, às edições do JN como aquele que promove aglomerações, não usa máscara, desgasta publicamente o ministro e se opõe frontalmente às recomendações da OMS em relação ao isolamento social e à não abertura da economia.

Ocorre, então, uma expressiva mudança na cobertura do jornal, e o protagonismo negativo do presidente é cada vez mais exposto. Há dois, entre muitos, movimentos interessantes na estrutura da narrativa nas coberturas do JN a partir desse momento: 1. a referência ao sujeito – “o presidente Jair Bolsonaro” se torna cada vez mais, sobretudo nas menções do âncora William Bonner, “Bolsonaro” ou “Jair Bolsonaro”, sem a investidura do cargo máximo a representá-lo; 2. os números são humanizados, ou seja, há uma referência marcada a vidas perdidas, brasileiros que perderam a vida, no balanço da doença no Brasil, reforçando uma ideia de que, ao ignorar de propósito das recomendações da ciência, o presidente da República coloca vidas em risco.

Recentemente, pesquisas atualizadas sobre as postagens na rede digital indicam um importante enfraquecimento do protagonismo de Bolsonaro diante da polarização “isolamento social” versus “retorno já à rotina econômica”, deslocando fortemente a centralidade de seu poder de convencimento.Esse é um dado importante que evidencia o poder comunicativo do JN e a influência sempre mediada e condicionada das redes virtuais. Estas,quando trabalham em aberta oposição às grandes empresas de comunicação, têm a irradiação e a influência severamente restringidas. O JN tem aumentado a sua audiência nos tempos de coronavírus, mostrando que continua a ser a principal âncora da grande narrativa que organiza o paradigma de leitura através do qual os brasileiros vêem a realidade.

Esta grande âncora demonstra, assim, sua capacidade de relegitimação na grande crise nacional iniciada em 2014: apoiou Aécio Neves, mas sobreviveu ao fim de sua influência central na política brasileira; apoiou o governo Temer, mas distanciou-se de sua impopularidade e ocaso; foi fundamental para a vitória eleitoral de Bolsonaro, e agora surge como um epicentro da oposição a ele. A narrativa do JN, expressão e instrumento de seu poder comunicativo, continua no centro da formação do juízo e da opinião dos brasileiros.

Buscar compreender esse fenômeno no campo da comunicação nos dará a percepção de um contexto pleno de significados, possibilitará ver que a imprensa corporativa é uma instância de poder que se alinha aos grupos dominantes e que, na recente história do país, amenizou uma situação inaceitável, humanizando um candidato fascista e homofóbico e relativizando atitudes inaceitáveis. Pois essa narrativa também contribuiu para que um ex-militar de muito baixa patente, conhecido e reconhecido pela verborragia racista, homofóbica e preconceituosa conseguisse alcançar a presidência da República de um país gigante, rico, plural e que conquistou tantos avanços econômicos, sociais e democráticos em um passado recente.

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